Introdução
Clássica é a divisão dos sistemas jurídicos entre os países de origem anglo-saxônica (common law), a exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra, e aqueles de origem romano-germânica (civil law), característicos dos países da Europa Continental e da América Latina.
Tais sistemas surgiram em circunstâncias políticas e culturais completamente distintas, o que naturalmente levou à formação de tradições jurídicas diferentes, definidas por institutos e conceitos próprios a cada um dos sistemas[1].
No sistema da common law os precedentes judiciais, principalmente aqueles emanados da Corte superior, são dotados de eficácia vinculante não só para a Corte de onde proveio como para os juízos que lhe são hierarquicamente inferiores[2]. Vale dizer, em tal sistema os precedentes constituem antecedentes de caráter vinculativo, de observância obrigatória, para os demais órgãos jurisdicionais.
Por sua vez, nos países que seguem a linha do civil law os precedentes, tradicionalmente e em regra, apenas orientam (mas não vinculam) o pedido ou o julgamento de casos posteriores sobre a mesma matéria[3]. Por consequência, a principal fonte de produção jurídica, no âmbito da civil law, é a lei, funcionando o precedente como uma espécie de reforço argumentativo da disposição legal.
Mesmo havendo essa nítida diferenciação entre os sistemas jurídicos acima mencionados, a teoria dos precedentes judiciais vem ganhando cada vez mais destaque no nosso ordenamento jurídico,historicamente vinculado à tradição do civil law.
Por conta dessa influência, o presente trabalho visa abordar, ainda que de maneira sucinta, alguns conceitos básicos inerentes à teoria dos precedentes judiciais, como a própria noção de precedente, jurisprudência, súmula, ratiodecidendi, obter dictum, distinguishing e overruling.
Os conceitos básicos inerentes à teoria dos precedentes judiciais
Antes de adentrar na análise dos mencionados conceitos, uma observação é necessária: ao decidir uma demanda judicial, o magistrado cria, necessariamente, duas normas jurídicas[4].
A primeira, de caráter geral, é construída, consoante lição de Luiz Guilherme Marinoni[5], “a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle da constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais no caso concreto”. Trata-se de uma norma jurídica, contida na fundamentação do julgado, criada para justificar sua decisão.
A segunda, de caráter individual, é a própria decisão do magistrado acerca daquela situação específica que lhe é submetida à análise. Trata-se da norma jurídica individualizada, contida no dispositivo da decisão, que decide um caso concreto[6].
Aquela norma jurídica, de caráter geral, criada pelo magistrado e constante da fundamentação do julgado, que consubstancia a tese jurídica a ser adotada em determinado caso, é justamente a ratiodecidendi.
Fredie Didier[7] leciona que “a tese jurídica (ratiodecidendi) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela em que foi originariamente construída”.
Por conta desse caráter geral e da possibilidade de se desprender de um determinado caso concreto, a ratiodecidendi constitui a essência do precedente judicial, entendido como sendo “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”[8].
Ao lado da ratiodecidendi, o precedente judicial também é composto por considerações periféricas, desprovidas de força vinculante para julgamentos posteriores, chamadas de obiterdictum que são os “argumentos jurídicos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos normativos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão”[9].
Estabelecido, portanto, o precedente como uma decisão judicial cuja ratiodecidendi pode ser utilizada em julgamento de casos futuros, cumpre distingui-lo de jurisprudência e súmula, ainda que se tratem de noções umbilicalmente ligadas.
Um precedente judicial, quando reiteradamente aplicado, se transforma em jurisprudência[10], que, assim, se apresenta como o conjunto de julgados harmônicos entre si, fruto da reiterada e constante interpretação e aplicação da lei num determinado sentido[11].
Por sua vez, se a jurisprudência – conjunto de precedentes – passa a ser dominante num determinado tribunal, esta corte pode, de acordo com as regras regimentais, editar uma súmula. A súmula, desta forma, é um enunciado normativo, enumerado e publicado por um dado tribunal, que retrata o seu posicionamento predominante acerca de um determinado tema, pois extraído da ratiodecidendi de casos anteriormente julgados.
Avancemos um pouco mais.
A aplicação de um precedente judicial, nas hipóteses em que o juiz a ele se encontra vinculado, não pode ser feita de qualquer maneira. O magistrado deve comparar o caso concreto posto à sua apreciação com a ratiodecidendi firmada na decisão que constitui o precedente judicial, a fim de verificar se guardam alguma semelhança.
Segundo Cruz e Tucci[12], esse método de confronto, “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”, denomina-se distinguishing (ou distinguish).
Consoante ensinamento de Fredie Didier[13] “pode-se utilizar o termo ‘distinguish’ em duas acepções: (i) para designar o método de comparação entre o caso concreto e o paradigma (distinguish-método); (ii) e para designar o resultado desse confronto, nos casos em que se conclui haver entre eles alguma diferença (distinguish-resultado)”.
Essa diferença – segunda acepção – pode ocorrer por conta dos fatos fundamentais discutidos serem diversos daqueles que serviram de base à ratiodecidendi do precedente ou, mesmo havendo aproximação entre eles, se alguma peculiaridade no caso em julgamento afastar a aplicação do precedente[14].
Importante fazer menção, ainda, às técnicas de superação do precedente.
Segundo Fredie Didier[15], “overrulingé a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente”. Trata-se de método em que os tribunais, depois da reavaliação dos fundamentos que levaram à formação de um precedente que ordinariamente se aplicaria ao caso em julgamento, decidem cancelar a fórmula anterior e atribuir uma interpretação, total ou parcialmente, diferente da antecedente[16].
Essa superação do precedente judicial pode ocorrer com eficácia extunc (restrospectiveoverruling), quando o jurisdicionado é julgado com base na regra nova, mesmo que inexistente no momento do fato que deu ensejo à demanda, ou com eficácia ex nunc (prospectiveoverruling), quando a nova orientação do valerá da data da decisão em diante[17].
Exemplo de técnica de superação de precedentes, no nosso ordenamento jurídico, é o processo para revisão ou cancelamento de súmulas vinculantes, previsto no artigo 103-A, § 2º da Constituição Federal.
Conclusão
Os conceitos acima mencionados, aqui expostos em linhas gerais e de maneira sucinta, constituem as diretrizes básicas da teoria dos precedentes judiciais.
Mesmo diante da nossa tradição de civil law, parcela significativa da doutrina tem, cada vez mais, sinalizado favoravelmente à adoção de técnicas de respeito aos precedentes judiciais, em especial como forma de garantir isonomia na aplicação da lei.
Isso porque o Judiciário do civil law, preso à tradicional não vinculação dos precedentes, acaba por não se submeter ao princípio da igualdade no momento de decidir[18], na medida em que, diante de dada situação concreta, chega a um determinado resultado e, diante de outra situação concreta semelhante à primeira, chega a solução distinta[19].
Visando evitar tais situações, necessário a observância do princípio da igualdade perante as decisões judiciais, ideal que apenas se alcançará com relativo respeito ao precedente, que deve ser visto como baliza para solução de casos futuros.
Referências
[1]MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 49, p. 11-58, 2009.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 8ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 438.
[3]VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. A força dos precedentes no moderno Processo Civil Brasileiro. In Direito jurisprudencial. Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 2012, p. 553/674.
[4] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 428..
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, v. 1, p. 99.
[6] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 318.
[7] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 428.
[8] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 427.
[9] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 430.
[10] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 450.
[11] VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Obra citada, p. 553/674.
[12] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 174.
[13] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 454.
[14] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 454.
[15] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 456.
[16] VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique.Obra citada, p. 553/674.
[17] VOLPE CAMARGO, Luiz Henrique. Obra citada, p. 553/674.
[18] MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. A força dos precedentes. Luiz Guilherme Marinoni (coord.). Salvador: JusPodivm, 2010, p. 228-233.
[19] DIDIER JR., Fredie. Obra citada, p. 446.
Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Oldack Alves da Silva. Conceitos básicos inerentes à teoria dos precedentes judiciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35680/conceitos-basicos-inerentes-a-teoria-dos-precedentes-judiciais. Acesso em: 23 dez 2024.
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