As matérias penais editadas pelo legislativo encontram-se pouco exploradas no que tange à análise doutrinária feita pelos estudiosos para a pacificação dos entendimentos entre os operadores do Direito. Abrigado nessa necessidade, visando uma contribuição singela a esta comunidade jurídica e ainda com o intuito de nortear idéias e servir de base para os futuros trabalhos acadêmicos, constata-se mister trazer à discussão um assunto paradoxal: tão recente, em termos de tipificação penal; e tão vetusto em termos de existência fática, como é o assédio sexual visto e estudado agora como um crime objetivado pela legislação penal.
II. CONCEITO
Nasce para o mundo jurídico, tal previsão, quando editada a Lei Nº. 10.224 de 15 de Maio de 2001, entrando em vigor em 16 de Maio de 2001, que acrescenta ao Capítulo dos Crimes Contra a Liberdade Sexual, o tipo penal, in verbis:
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – Detenção de 01 (um) a 02 (dois) anos.
Parágrafo Único – VETADO.
Tendo como um conceito do que seria o assédio sexual temos, ipisis litteris, as palavras escritas em pena de ouro pelo Dr. Rômulo Moreira:
O assédio sexual criminoso pode ser definido como um constrangimento físico, moral ou de qualquer outra natureza, dirigido a outrem (homem ou mulher), com inafastáveis insinuações sexuais, visando a prática de ato sexual, prevalecendo-se o autor (homem ou mulher) de determinadas circunstâncias que o põe em situação destacada e de superioridade em relação à pessoa assediada, seja em razão do seu emprego, da sua função ou do seu cargo.(Rômulo Moreira, 2001)
III. TIPIFICAÇÃO PENAL DO ASSÉDIO SEXUAL ANTES DO ADVENTO DA LEI 10.224/2001.
De difícil aceitação pelos jurisconsultos era o fato de que o assédio sexual, como hoje definido, fosse enquadrado como um constrangimento ilegal ou contravenção descrita pela Lei das Contravenções Penais (LCP).
O princípio da Reserva Legal, elencado pelo direito penal no art. 1º. da Lei Nº. 2.848/40, diploma que Instituiu o Código Penal (CP), deixa claro que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”, sendo assim esse princípio também exige a necessidade do perfeito encaixe entre a conduta humana transgressora e o tipo legal objetivo, caso contrário o crime ou delito seria atípico, inquinando de nulidade qualquer tentativa de punibilidade do autor do fato, sendo esta tipicidade uma exigência do princípio da legalidade. Quanto a tipicidade criminal Cézar Bitencourt afirma ser “a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal” (Rômulo Moreira, 2001).
O constrangimento ilegal é um delito previsto no art. 146 do CP tendo como redação “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou fazer o que ela não manda”. Para que a conduta seja devidamente tipificada é necessário que o agente use de grave ameaça ou de violência, devendo-se interpretar a grave ameaça como algo tão intimidativo que force a vítima ceder aos apelos do agente, e a violência como sendo a física, vis corporalis, e ainda presumindo que a redução da capacidade de resistência venha a produzir qualquer um dos efeitos ventilados a pouco. O constrangimento tem que ser atingido para que o crime se aperfeiçoe, caso a vítima não faça o que a lei permite ou faça o que ela não manda, o crime não terá sido cometido. Esta é a grande diferença entre os dois tipos e o que faz jus ao assédio sexual ser merecidamente tipificado, já que neste a vítima não necessita prestar os favores sexuais, caso isto ocorra será simples exaurimento do crime.
Tentava-se enquadrar também a conduta descrita atualmente como assédio sexual, nos artigos 61 e 65, ambos da LCP, que discorriam em seu texto as condutas de “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público de modo ofensivo ao pudor” e ainda a de “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável”.
Destarte, as formas de tipificação do delito esbarravam em alguns entraves e eram insuficientes, apesar de opiniões diversas, que dispensariam a tipificação penal para o tipo estudado, alegando que a matéria penal já tratava do assunto nos tipos mencionados, que conforme veremos, não bastam para a coerção do assédio sexual.
Se no constrangimento ilegal apareciam as figuras da violência ou da grave ameaça, que nem sempre estão presentes no assédio sexual, não parecia este tipo ser o mais indicado para subsumir à conduta do assédio. No art. 61 da LCP, exigi-se que o fato der-se em local público ou com acesso ao público, sendo improvável que alguém vá assediar outra pessoa senão em local discreto ou entre quatro paredes. O art. 65 da mesma LCP que trata da perturbação da tranqüilidade, não trata do assunto com a devida precaução e tutela, sendo genérico e não atendendo ao princípio da legalidade.
Percebe-se que o novo tipo é pluriofensivo. Por encontrar-se no capítulo que trata especificamente dos crimes contra a liberdade sexual, logicamente tutela esta mesma liberdade, contudo, é de se aceitar que o dispositivo entre no mundo jurídico com o intuito de proteger bens subjetivos, como a honra e ainda o direito de não ser descriminado em suas relações educacionais ou laborais, podendo-se falar ainda em defesa da decência e as normas de convivência estabelecidas no ambiente laboral.
Esta Lei não tem efeito ex nunc, ou seja, não retroage, já que a lei penal só retroagirá no caso de benefício para o réu (Art. 5º, XL, Constituição Federal), no caso, os crimes só poderão ser enquadrados a partir da vigência da Lei 10.224/2001.
Tanto o homem quanto a mulher podem figurar como sujeitos ativos e passivos do crime, podendo inclusive, os dois sujeitos pertencerem ao mesmo sexo, desde que, respeitada a ascendência do sujeito ativo em relação ao passivo, ou seja, o sujeito passivo tem que estar em estado subalterno em relação ao sujeito ativo, por isso denominar-se tal crime de próprio.
O núcleo da norma está no verbo “constranger” que aqui tem a mesma denotação dada nos crimes de estupro, do atentado violento ao pudor, etc. Isto posto, constranger está imputado na lei como tolher a liberdade, coagir, forçar alguém. Na legislação não se especificou qual o meio utilizado para que a vítima fosse constrangida, por isso é denominado o crime como de forma livre, onde sua execução pode se dar por quaisquer meios aptos a realizar o constrangimento.
O artigo determina algumas elementares para que o crime seja configurado: deve-se ter a ação de constranger; abuso de poder, já que o agente tem que necessariamente estar em superioridade hierárquica ou em ascendência em relação à vítima, primazia essa que deve existir em função de cargo, emprego ou função; objetivo de obter vantagem ou favorecimento de natureza sexual e, finalmente, legitimidade do direito ameaçado ou injustiça que o sujeito passivo deva suportar em não ceder os apelos do agente.
Os termos utilizados, como “superioridade hierárquica” e “ascendência”, em relação à vítima, merecem uma rápida análise. Superioridade hierárquica, como se depreende do próprio nome, refere-se às atividades laborais, de relação de trabalho. Já a relação de ascendência é aquela gerada na relação entre professor e aluno, ou seja, que deriva de sua função laboral. Mister lembrar que o agente deve sempre constranger fazendo uso das atribuições inerentes ao emprego, cargo ou função que o mesmo ocupa.
O elemento subjetivo do tipo é o dolo com o fim específico de obter vantagem ou favorecimento sexual, respeitando a condição de dominação entre o coator e o coagido advinda de relação de superioridade hierárquica ou de ascendência. Não se pode falar na modalidade culposa para o crime.
O crime é formal, já que descreve a conduta e o resultado visado pelo sujeito, mas não exige que os mesmos sejam atingidos.
Consuma-se o assédio com a ação de constranger, independente de se obter ou não as vantagens ou os favores sexuais pretendidos, caso haja a consecução dos fins espúrios, tem-se mero exaurimento do crime. A tentativa é possível, como no caso de bilhete que é interceptado antes de chegar ao conhecimento do futuro agente passivo da relação criminal, contendo no mesmo a ameaça e a solicitação dos favores sexuais.
V. DA AÇÃO PENAL E DO ÔNUS PROBATÓRIO.
Por ser um crime de natureza eminentemente clandestina, difícil será o agente que praticará a conduta reprovável na presença de terceiros. Tendo em vista tal constatação bem como a condição de hipossuficiência da vítima, esta tem em sua palavra um relevo especial, ganhando status de presunção relativa de veracidade, já que se assim não fosse raramente alguém seria condenado por este tipo de crime.
O julgador deve atentar-se para a verossimilhança entre o depoimento da vítima e a composição dos autos sendo de suma importância a harmonia entre suas declarações e as outras provas colhidas.
A pena para tal crime é de um a dois anos de detenção. Tendo como base raciocínio extraído do estudo realizado pelo Ilustríssimo Damásio Jesus, temos que :
...adotando-se a tese de que o parágrafo único do art. 2º. Da Lei dos Juizados Especiais Criminais Federais (Lei 10.259, de 12.07.2001), admitindo, para essa qualificação, delitos que comine pena máxima não superior a dois anos, derrogou o art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei Nº. 9.099/95). Diante disso, é de entender-se que o delito de assédio sexual é de competência dos juizados Especiais Criminais da Justiça Comum. (Damásio Jesus, 2001).
Assim sendo, ante esta tese, está a competência para julgar e processar o crime de assédio sexual declinada aos juizados especiais, tomando fôlego e celeridade no rito sumaríssimo.
A ação penal acolhida pelo tipo foi a privada, com as exceções próprias dadas aos crimes carnais (Art. 225, § 1º., incisos I e II, do CP). Ao nosso ver o legislador pecou ao determinar este tipo de ação para o tipo em comento. Muito vai tolher e mitigar dos assediados, tendo em vista a preponderância do sujeito ativo sobre o passivo, levando-se em conta que há aqui, sempre e necessariamente, uma relação de submissão entre as partes. Descabida é este tipo de ação pois a parte mais forte pode chantagiar de forma abrupta a vítima, tendo em vista a sua condição privilegiada em relação à delatora, sendo desperdiçada toda a boa intenção do legislador em coibir tal conduta. Também não vemos boa a opção de se determinar a Ação Penal Pública como Incondicionada, já que de nada adiantaria o Estado apurar os fatos sem a aquiescência da parte prejudicada. Deve-se respeitar o foro íntimo da vítima em ter sua vida exposta ou não, sendo dever do Estado tutelar também a honra da pessoa assediada.
Solução prática e visível seria o texto legal ter determinado para esse tipo penal a Ação Penal Pública Condicionada, ou seja, o Estado só agiria em favor da vítima se a mesma solicitasse, cabendo antes de se intentar a ação representação da pessoa constrangida, desta forma evitar-se-iam os abusos que o agente poderia cometer para que o fato não chegasse ao conhecimento da autoridade e ao mesmo tempo respeitar-se-ia o íntimo da vítima, tendo sua total colaboração para a busca da verdade real.
O artigo 216-A acrescentado ao Código Penal pela Lei 10.224/2001 previa em sua redação original um parágrafo único que determinava que decorriam na mesma pena quem “I – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; II – com abuso ou violação de dever inerente a ofício ou ministério” desse ensejo ao assédio sexual. A razão para que o presidente vetasse o parágrafo único encontra-se em sua Mensagem Nº. 424/2001 onde o mesmo alega, resumidamente, que o parágrafo único descrevia situações que já eram causas especiais de aumento de pena no art. 226 do CP, o que não permitiria a sua incidência no caso de assédio sexual, pois caso fosse usada a majorante haveria uma violação do princípio do non bis in idem.
Para Luiz Flávio Gomes o veto foi infeliz pois “as hipóteses previstas no parágrafo projetado, que são mais graves, não poderiam sofrer a agravação cominada no mencionado art. 226, sob pena de violar o princípio do non bis in idem.” (Luiz Gomes, 2001). Contrariamente pensa Damásio que concorda com o veto presidencial.
A nossa posição, data venia, é a adotada pelo Dr. Luiz Flávio Gomes, tendo em vista que se o parágrafo único do art. 216-A tivesse sido aprovado teríamos a punição para várias espécies de assédio sexual que são realidade em nossa conjectura social, e não somente para o assédio laboral.
Face o exposto fica claro que mais a acrescentar que a desordenar veio este artigo nascer para o mundo jurídico.
Mesmo com esse bom nascituro, o tipo merece críticas no que tange ao exagero punitivo, já que comina uma pena muito alta. Para se ter uma noção do seu exagero sua pena mínima coincide com a do aborto consentido, lesão corporal leve, entre outros tipos considerados mais graves.
Merece desaprovação também no que tange a limitação da incriminação, discutida onde se comenta o veto presidencial e na Ação Penal adotada para o tipo.
Como já dito, acrescenta-se mais que retira do ordenamento jurídico, pois trás a demonstração do amadurecimento social para a discussão de alguns temas que a sociedade reluta em se esquivar.
Em suma, entendemos que a intenção do legislador foi louvável e acima de tudo útil à ordem jurídica. Não obstante reconhecemos também a necessidade de implementação dos pontos negativos anteriormente discutidos na lei atual para que assim se possa obter a consecução da justiça. Não deve, mesmo com os pontos negativos analisados, a vítima deixar crimes desta natureza impunes, haja vista que só assim o nosso sistema irá surtir o efeito desejado, e a impunidade será impugnada e esquecida de vez por esta sociedade tão injustiçada.
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Procurador Federal. Procurador Regional da PF/ANTAQ.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FáBIO GUSTAVO ALVES DE Sá, . Breves linhas sobre o assédio sexual: uma visão geral do tipo penal (Lei 10.224/2001) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jul 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35871/breves-linhas-sobre-o-assedio-sexual-uma-visao-geral-do-tipo-penal-lei-10-224-2001. Acesso em: 23 dez 2024.
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