1. Introdução.
O artigo 117, da lei nº 7.210/84, trata da prisão domiciliar em sede de execução penal, ao passo que o artigo 317, do Código de Processo Penal, disciplina a prisão domiciliar enquanto medida cautelar substitutiva da prisão preventiva.
Essa simples noção já demonstra claramente que a prisão domiciliar prevista na Lei de Execuções Penais não guarda qualquer relação com a prisão domiciliar explicitada no Código de Processo Penal.
Inobstante, resta uma importante indagação: seria possível valer-se das mesmas hipóteses de cabimento da prisão domiciliar da lei nº 7.210/84 para fins de concessão de prisão domiciliar prevista no Código de Processo Penal? A resposta é positiva!
2. DA INEXISTÊNCIA DE DISCRÍMEN A JUSTIFICAR O TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE AS HIPÓTESES DE CABIMENTO DA PRISÃO DOMICILIAR DO ART. 117, DA LEI Nº 7.210/84, E AQUELAS PREVISTAS NO ART. 318, DO CPP.
Dispõe o art. 117, da lei nº 7.210/84, que:
Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de:
I - condenado maior de 70 (setenta) anos;
II - condenado acometido de doença grave;
III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;
IV - condenada gestante.
Por sua vez, o art. 318, do CPP, preceitua que:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
I - maior de 80 (oitenta) anos;
II - extremamente debilitado por motivo de doença grave;
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV - gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
Antes de adentrar propriamente ao mérito do presente artigo, convém acentuar que, de fato, a prisão domiciliar do art. 117, da LEP, não guarda qualquer relação com a prisão domiciliar do art. 317, do CPP.
Mas isto, por si só, não impede a análise das situações de cabimento de ambos e da discussão acerca da possibilidade de se estender, à prisão domiciliar do CPP, as hipóteses trazidas pela prisão domiciliar veiculada na Lei de Execuções Penais.
A prisão domiciliar do art. 117, da LEP, “substitui” o cumprimento da pena em casa de albergado (regime aberto) e tem natureza de prisão-pena. É cabível para condenados maiores de 70 anos (limite etário este não alterado pelo Estatuto do Idoso); condenados cometidos de doença grave; condenadas com filho menor ou deficiente (em razão do princípio da isonomia, abrange os condenados, desde que comprove a dependência do filho); condenadas gestantes.
Por outro lado, a prisão domiciliar do art. 317, do CPP, “substitui” a prisão preventiva e tem natureza de medida cautelar. É cabível para acusados maiores de 80 anos de idade; acusados extremamente debilitados por doença grave; acusados com filhos menores de seis anos ou deficientes; e acusadas gestantes no sétimo mês ou gravidez de risco.
Feitos esses esclarecimentos, torna-se à indagação: é razoável a distinção das hipóteses de cabimento da prisão domiciliar do art. 117, da LEP, e o art. 318, do CPP? Seria possível conferir à prisão domiciliar do CPP as mesmas hipóteses de cabimento da prisão domiciliar do art. 117, da LEP?
Uma primeira noção de suma importância para tratar da questão acima perpassa pela análise do princípio da isonomia.
Nos termos do ordenamento jurídico vigente, não se pode descurar da importância dos princípios, que, de acordo com Robert Alexy[1], são mandados de otimização, normas que ordenam que algo seja cumprido na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, a partir de um juízo de ponderação.
Segundo a máxima aristotélica e de acordo com a interpretação conferida por Ruy Barbosa, por força do princípio da isonomia, há de se tratar as pessoas iguais de forma igual e as desiguais de forma desigual, na medida de sua desigualdade.
Há algum tempo foi consagrado que o preceito da isonomia é norma dirigida quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Segundo Hans Kelsen[2], "a igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres".
No presente caso, vê-se a inexistência de efetivo discrímen a incidir nas hipóteses de prisão domiciliar trazidas pelo art. 117, da LEP, e art. 318, do CPP, inobstante tratar-se de prisões domiciliares substancialmente diversas, conforme anotado acima.
Desse modo, não se deve admitir sejam fixadas hipóteses de cabimento da prisão domiciliar tão diferentes, frise-se, por não se vislumbrar situação jurídica diversa a impor o tratamento desigual àqueles que se encontram em regime de segregação.
Em outras palavras, há de se admitir a concessão da prisão domiciliar prevista no art. 317, do CPP, para aqueles acusados que se enquadrem nas hipóteses do citado dispositivo do Codex Processual, permitindo-se, ainda, a concessão daquele benefício, substituto da prisão preventiva, acaso se verifique uma das situações previstas no art. 117, da LEP.
Não se pode olvidar que o preceito da igualdade visa firmar a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas, o que, de certo modo, ocorreu no cotejo do art. 117, da LEP, e do art. 318, do CPP.
Para analisar a existência de isonomia em cada caso deve-se: a) verificar o elemento tomado como fator discriminante; b) estabelecer uma relação lógica abstrata entre o fator e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico; c) verificar a consonância dessa correlação com o ordenamento jurídico[3].
Para que não haja ofensa ao princípio da isonomia, é mister que os três aspectos sejam observados cumulativamente, sob pena de descumprimento desse preceito constitucional.
Com efeito, cumpre explicitar os pontos acima elencados para a correta compreensão da situação fática, a ser verificada no momento da aplicação do direito: a) o elemento tomado com fator discriminante no caso em análise é o fato de se tratar de prisão domiciliar (prisão-pena) ou prisão domiciliar (medida cautelar); b) não se vislumbra a disparidade estabelecida no tratamento jurídico de ambos os casos a partir da análise do art. 117, da LEP, e art. 318, do CPP, restando, neste ponto, afastada a possibilidade de tratamento desigualitário; c) dessa forma, não há perfeita correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional.
Impende destacar que, sob certo aspecto, o ordenamento pátrio está tratando a prisão domiciliar enquanto medida cautelar (art. 317, do CPP) de modo mais rigoroso do que a prisão domiciliar enquanto prisão-pena (art. 117, da LEP), o que demonstra clara violação à garantia constitucional da não-culpabilidade.
Há de se repelir qualquer alegação no sentido de que a desigualdade fática residiria no fato de que, no caso do art. 317, do CPP, por se tratar de medida cautelar substitutiva da prisão preventiva, haveria certa distinção em relação à prisão-pena do art. 117, da LEP, o que justificaria o tratamento desigual.
Isto porque, em nenhum momento pretendeu-se afirmar que tais prisões domiciliares eram iguais; ao contrário, demonstrou-se que realmente são diferentes. Contudo, o que não se justifica é trazer hipóteses de cabimento mais restritivas previstas no art. 318, do CPP, do que aquelas constantes no art. 117, da LEP, justamente porque não há descrímen apto a figurar como fundamento para tanto.
Tal raciocínio leva à inafastável conclusão de que esse tratamento diferenciado não está alicerçado em critério justificável de discriminação, sendo certo que a diferenciação não apresenta razões jurídicas que a fundamente.
Dessa maneira, verificando-se que o acusado sujeito à “prisão domiciliar medida cautelar” e o réu sujeito à “prisão domiciliar prisão-pena” estariam, neste aspecto, em situação equivalente, mas sendo tratados de forma diversa pela lei especificamente quanto às hipóteses de cabimento de cada uma daquelas medidas, há de se concluir pela ocorrência de ofensa ao princípio da isonomia.
Sob outro prisma, não se afigura correto imaginar que aquele que responde por determinado crime tenha situação mais gravosa do que aquele que se encontra definitivamente condenado por decisão judicial transitada em julgado, sob pena de ofensa ao princípio da não-culpabilidade e ao próprio princípio da razoabilidade.
Em outras palavras, o preso provisório está numa situação mais desvantajosa do que o preso condenado por decisão judicial transitada em julgado, conquanto incida sobre aquele o princípio da presunção de não-culpabilidade.
Nesse sentido, não se afigura razoável trazer hipóteses mais restritas de cabimento da prisão domiciliar (medida cautelar) para o preso provisório do que as possibilidades de cabimento previstas para a prisão domiciliar (prisão-pena) para o preso condenado definitivamente.
3. CONCLUSÃO.
Dessarte, é forçoso concluir que as hipóteses de cabimento da prisão domiciliar do art. 117, da lei nº 7.210/84, devem ser admitidas para fins de concessão da prisão domiciliar prevista no art. 317, do Código de Processo Penal, sob pena de violação ao princípio da não-culpabilidade e ao princípio da razoabilidade, tão caros ao Estado Democrático de Direito.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2a edição. Editora Malheiros, 2011.
- CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal para Concursos (LEP). Editora Juspodivm, 2012.
- KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a edição. Paris: Dalloz, 1962. Tradução francesa da 2a edição alemã, por Ch. Einsenmann.
- MARCAO, Renato Flávio. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 2004.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. Editora Malheiros, 2011.
[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2ª edição. Paris: Dalloz, 1962. Tradução francesa da 2 edição alemã, por Ch. Einsenmann.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. pg. 21.
Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Gustavo D' Assunção. As hipóteses de cabimento da prisão domiciliar prevista no artigo 117, da Lei de Execuções Penais, e sua aplicabilidade à prisão domiciliar do artigo 317, do Código de Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35876/as-hipoteses-de-cabimento-da-prisao-domiciliar-prevista-no-artigo-117-da-lei-de-execucoes-penais-e-sua-aplicabilidade-a-prisao-domiciliar-do-artigo-317-do-codigo-de-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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