“A corrupção prejudica a capacidade das nações de prosperar e crescer”
Min. Celso de Mello
Breve intróito
Com origem norte-americana (willful blindness doctrine - traduzida para “doutrina da cegueira intencional”), a teoria da cegueira deliberada ou teoria do avestruz foi criada para situações em que o agente finge não conhecer a origem de bens, valores e direitos, com o intuito de auferir vantagens.
Sendo assim, para a aplicação de tal doutrina, mister que o agente tenha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens, valores ou direitos sejam provenientes de crimes e que o agente tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento. Pode-se afirmar, então, que a teoria visa punir àquele que se coloca, intencionalmente, em estado de desconhecimento ou ignorância, para não conhecer detalhadamente as circunstâncias fáticas de uma situação suspeita.
A teoria do avestruz e o dolo eventual
Entende-se por dolo eventual aquele em que o agente, mesmo sem querer, inicialmente determinado resultado, assume o risco de produzi-lo (art.18,inciso I, in fine, Código Penal brasileiro). Por tal motivo, parte da doutrina entende que o agente, no caso em questão, age com dolo eventual.
Não existe, pois, a possibilidade de se aplicar tal teoria aos crimes culposos, pois o escopo dessa doutrina é justamente o dolo eventual do agente, ao evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores que estão envolvidos na transação comercial.
Caso prático nos EUA
É oportuno, também, mencionar a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a Conscious Avoidance Doctrine. Trata-se do caso “In re Aimster Copyright Litigation”. No caso em análise, a Corte Suprema firmou o entendimento de que, na hipótese de violação de direitos autorais, o acusado não poderia alegar em sua defesa que não tinha conhecimento ou condições de saber que os arquivos que tinha disponibilizado apresentavam violação de direitos autorais. Dessa maneira, a Suprema Corte afastou a alegação de ignorância do acusado em relação aos fatos, por entender que o acusado, de forma deliberada, manteve uma indiferença e um desconhecimento intencional da situação ocorrida e por isso responderia por contributory infringement (conduta de contribuir com a violação de direitos autorais).
Eis um trecho da decisão:
“Cegueira voluntária é o conhecimento (...) é a situação em que o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso. Em United States v. Giovannetti (1990) restou estabelecido que o esforço deliberado para evitar o conhecimento da ilicitude é tudo que a lei exige para estabelecer a culpa do acusado.”
Casos práticos no Brasil
O caso mais conhecido sobre a teoria foi o assalto ao Banco Central. Em 2007, dois sócios de uma concessionária de Fortaleza foram condenados por lavagem de dinheiro por receberem um total de R$ 980 mil, em notas de R$ 50, pela venda de nove veículos a um mesmo comprador. A compra ocorreu na manha seguinte ao grande assalto ocorrido a uma das agências do BACEN na mesma Capital, em 2005. O juiz de primeira instância entendeu, à época, que não havia como os dois sócios desconhecerem a origem do dinheiro. Foi a primeira vez que a Justiça Federal aplicou a teoria no país.
Os dois sócios restaram absolvidos em segunda instância, o TRF 5ª Região entendeu que adotar que teoria da cegueira deliberada é quase que o mesmo que adotar uma responsabilidade penal objetiva no Brasil, exceção apenas permitida aos casos de crimes ambientais.
O TRE/RO também aplicou a teoria, em 2010, em caso de corrupção eleitoral. Senão vejamos:
“Corrupção eleitoral. Eleições 2004. Materialidade e autoria comprovadas. Prova testemunhal abundante. Dolo configurado. Teoria da cegueira deliberada. Crime formal. Condenação mantida. Recurso desprovido. I - Corrupção eleitoral comprovada: entrega a eleitor de senha, tipo vale-brinde (telefone celular), para obtenção de voto. II - Materialidade constituída pela apreensão da senha, de par à prova oral. III - Autoria apoiada na confissão extrajudicial da acusada e nos depoimentos colhidos em juízo, sob o crivo do contraditório. IV - Retração parcial em juízo, em si, é inservível a espargir qualquer efeito, exatamente por contrastar uma declaração precedente. Não basta alegar. Faz-se mister comprovar. Eficácia da confissão policial, em sua integralidade, dêsque não demonstrado, no crivo do contraditório, o seu caráter ilegítimo.V - Ausência de resquícios de propalada "armação" contra a acusada, supostamente urdida pela oposição a então candidato.VI - "Dolus directus" presente. Imputação viável, no mínimo, a título "dolus eventualis" (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, o agente não se deteve, conformando-se ao resultado. Teoria da "cegueira deliberada" ("willful blindness" ou "conscious avoidance doctrine"). VII - A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, "basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, destarte, pelo menos, ameaçada", segundo Nélson Hungria.VIII - Condenação mantida. Recurso conhecido e desprovido. (872351148 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de Julgamento: 30/11/2010, Data de Publicação: DJE/TRE-RO - Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral, Data 06/12/2010)
Caso Mensalão
Na Ação Penal nº 470, caso conhecido como Mensalão, o Min. Celso de Mello fez menção à teoria, caracterizando as condutas de alguns réus na ação como delituosas, nos termos da Lei de Lavagem de Capitais. Houve, para o Ministro, ao menos dolo eventual.
E por que esta teoria foi determinante? Porque a figura delitiva prevista no art. 1º, caput, da Lei de Lavagem de Capitais não admite a modalidade culposa. Ou seja, para que os réus fossem condenados por lavagem de capitais, seria necessária a caracterização, pelo menos, do dolo eventual, o que veio a ocorrer, na formação do convencimento do Min. Celso de Mello, por intermédio do auxílio da teoria da cegueira deliberada.
O uso da cegueira deliberada e do dolo eventual chegou a ser questionado no próprio julgamento do mensalão pelo ministro Marco Aurélio Mello, que, durante o julgamento de Anderson Adauto, João Magno e Paulo Rocha, alertou os colegas do plenário sobre o perigo de um entendimento "elástico" do Supremo em relação à lavagem de dinheiro, pois ele vai balizar a primeira e a segunda instâncias do Poder Judiciário e também a atuação do Ministério Público. "Preocupa-me sobremaneira o diapasão que se está dando ao tipo lavagem de dinheiro", afirmou.
Marco Aurélio manifestou o temor de que, aceito o dolo eventual, comecem a surgir acusações por lavagem de dinheiro contra advogados que defendem traficantes, por exemplo, já que nesses casos há sempre a possibilidade de que os honorários pagos sejam provenientes do tráfico de drogas. "Assusta-me brandir que, no caso da lavagem de dinheiro, contenta-se o ordenamento jurídico com o dolo eventual", disse Marco Aurélio. Na sequência, Gilmar Mendes afirmou que "é preciso que haja a prova do dolo", mas continuou ao afirmar que esta só é possível pela confissão do réu. Segundo ele, "a precária situação do PT na época dos fatos evidencia a origem do dinheiro". "A Corte quer do MP a prova diabólica, a impossível, e assim escancara a porta da impunidade", disse o ministro.
Conclusão
Ainda é muito questionada a teoria no Brasil. Não há uniformidade na jurisprudência para a sua adoção. É certo que a aplicação de tal doutrina encontrará muitas dificuldades, nos casos concretos, para se averiguar se o agente atuou, ou não, com dolo eventual (difícil comprovação prática). Não concordo com a dita aproximação da teoria com a responsabilidade penal objetiva, tendo em vista que, neste caso, não há que se falar em dolo ou culpa. A figura do dolo eventual é tema bastante polêmico, pois, para a acusação conseguir prová-lo, encontra quase que uma prova diabólica a ser demonstrada em juízo e, atribuí-lo a todo e qualquer agente, seria deturpar o instituto, bem como a presunção de inocência.
Bibliografia
1. http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-teoria-da-cegueira-deliberada-no-julgamento-do-mensalao Acesso em 24 jul2013.
2. ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte dos Estados Unidos. In re Aimster Copyright Litigation (2003). Disponível em: <http://homepages.law.asu.edu/~dkarjala/cyberlaw/inreaimster(9c6-30-03).htm>. Acesso em: 24 jul 2013.
3. CABRAL, Bruno Fontenele. Breves comentários sobre a teoria da cegueira deliberada (willful blindness doctrine). Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3193, 29 mar. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21395>. Acesso em: 24 jul. 2013.
Procuradora Federal. Advogada. Especialista em Direito Público (UERJ). Aprovada em concursos públicos para provimento de cargos de advogado do BNDES (2013); advogado da Caixa Econômica Federal (2010); analista judiciário do TRE-RJ (2012); técnico do Ministério Público do Rio de Janeiro (2011); analista judiciário do TJRJ (2011); advogado da Companhia de Desenvolvimento de Nova Iguaçu (2010). Foi estagiária da Procuradoria Regional da República na 2ª Região (2006-2008). http://about.me/fabiana_coutinho
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Fabiana de Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36047/a-teoria-da-cegueira-deliberada. Acesso em: 23 dez 2024.
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