1. Introdução.
A lei nº 11.101/2005, conhecida como Lei de Falências, trouxe dispositivo legal que dispõe sobre matéria de natureza eminentemente processual penal e que é objeto de controvérsia doutrinária: o artigo 99, inciso VII, da lei nº 11.101/2005 seria constitucional no que tange à possibilidade de o juízo falimentar decretar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores?
A resposta há de ser negativa!
2. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO artigo 99, inciso VII, da lei nº 11.101/2005 E A INAPLICABILIDADE PRÁTICA DE TAL DISPOSITIVO.
Dispõe o art. 99, da lei nº 11.101/2005, que:
Art. 99. A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações:
I – conterá a síntese do pedido, a identificação do falido e os nomes dos que forem a esse tempo seus administradores;
II – fixará o termo legal da falência, sem poder retrotraí-lo por mais de 90 (noventa) dias contados do pedido de falência, do pedido de recuperação judicial ou do 1º (primeiro) protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para esta finalidade, os protestos que tenham sido cancelados;
III – ordenará ao falido que apresente, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, relação nominal dos credores, indicando endereço, importância, natureza e classificação dos respectivos créditos, se esta já não se encontrar nos autos, sob pena de desobediência;
IV – explicitará o prazo para as habilitações de crédito, observado o disposto no § 1º do art. 7º desta Lei;
V – ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o falido, ressalvadas as hipóteses previstas nos §§ 1º e 2º do art. 6º desta Lei;
VI – proibirá a prática de qualquer ato de disposição ou oneração de bens do falido, submetendo-os preliminarmente à autorização judicial e do Comitê, se houver, ressalvados os bens cuja venda faça parte das atividades normais do devedor se autorizada a continuação provisória nos termos do inciso XI do caput deste artigo;
VII – determinará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das partes envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crime definido nesta Lei;
VIII – ordenará ao Registro Público de Empresas que proceda à anotação da falência no registro do devedor, para que conste a expressão "Falido", a data da decretação da falência e a inabilitação de que trata o art. 102 desta Lei;
IX – nomeará o administrador judicial, que desempenhará suas funções na forma do inciso III do caput do art. 22 desta Lei sem prejuízo do disposto na alínea a do inciso II do caput do art. 35 desta Lei;
X – determinará a expedição de ofícios aos órgãos e repartições públicas e outras entidades para que informem a existência de bens e direitos do falido;
XI – pronunciar-se-á a respeito da continuação provisória das atividades do falido com o administrador judicial ou da lacração dos estabelecimentos, observado o disposto no art. 109 desta Lei;
XII – determinará, quando entender conveniente, a convocação da assembléia-geral de credores para a constituição de Comitê de Credores, podendo ainda autorizar a manutenção do Comitê eventualmente em funcionamento na recuperação judicial quando da decretação da falência;
XIII – ordenará a intimação do Ministério Público e a comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento, para que tomem conhecimento da falência.
Parágrafo único. O juiz ordenará a publicação de edital contendo a íntegra da decisão que decreta a falência e a relação de credores. (grifou-se).
O dispositivo de interesse para o presente estudo é o art. 99, inc. VII, da Lei de Falências.
O professor Denílson Feitoza entende ser perfeitamente possível que a prisão preventiva seja decretada pelo juízo falimentar, nos termos preconizados na lei de Falências, entendendo que, se assim a lei o prevê, não haveria violação ao juiz natural.
A simples leitura de tal dispositivo há de levar à conclusão, diga-se, precipitada, de que o juízo falimentar pode determinar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores. Contudo, essa conclusão trivial não é a que se espera no cotejo dessa regra com o ordenamento jurídico pátrio.
Não se espera do operador do direito a simples repetição de dispositivos legais; mais do que isso, há de se interpretar as normas e se perquirir se tal previsão legal é consentânea com a Constituição da República de 1988.
O art. 99, inc. VII, da Lei de Falências, não passa pelo crivo da constitucionalidade, ao menos no que diz respeito à possibilidade de o juízo falimentar determinar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores.
E essa conclusão pela inconstitucionalidade de sobredito dispositivo se baseia não em um, mas em diversos fundamentos jurídicos, os quais serão explicitados a seguir.
Inicialmente, deve-se lembrar que a prisão por dívidas não é permitida pelo direito brasileiro, salvo no caso de inadimplência voluntária e inescusável de obrigação alimentícia, em razão do que disciplina o artigo 7º, parágrafo 7º, do Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992. Nesse sentido, convém citar o entendimento do Supremo Tribunal Federal consignado nos Recursos Extraordinários nº 349.703 e 466.343 e no Habeas Corpus nº 87.585.
De fato, o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais executórios postos à disposição do credor para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Por outro lado, o dispositivo legal objeto de análise não traz em seu bojo qualquer dos fundamentos exigidos para a prisão cautelar, é dizer, inexiste, a priori, os requisitos da cautelaridade.
Sobre o tema, dispõe o Código de Processo Penal, alterado pela Lei nº 12.403, de 2011, que:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
IV - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
Art. 314. A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada.
Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Por certo, o art. 99, inc. VII, da lei nº 11.101/05, sequer tangencia a necessária existência dos fundamentos ensejadores da decretação da prisão preventiva, quais sejam, garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Desse modo, resta claro que o único intento daquela segregação prevista na lei falimentar seria salvaguardar os interesses dos credores, o que não encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio.
Ademais, a possibilidade de decretação da prisão preventiva pelo juízo falimentar viola flagrantemente as garantias do devido processo legal e do juiz natural, previstas respectivamente no art. 5º, incisos LIV e XXXVII, da Constituição da República de 1988 (vide STF, RHC 67232).
Nesse sentido, o professor Paulo Rangel entende que o juiz cível não poderia decretar a prisão preventiva, pois ele só poderia ordenar a prisão civil de devedor de alimentos, devendo aquele magistrado dar ciência ao Ministério Público para que este, se entender cabível, a requeira perante juiz criminal.
Nesse passo, convém citar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ipsis litteris:
HABEAS CORPUS. ORDEM DE PRISÃO. DESOBEDIÊNCIA. NÃO-COMPROVAÇÃO DE DEPÓSITO DE ALUGUÉIS. ILEGALIDADE. JUÍZO CÍVEL.
1. É entendimento assente no Superior Tribunal de Justiça que decreto de prisão decorrente de decisão de magistrado no exercício da jurisdição cível, quando não se tratar das hipóteses de devedor de alimentos, é ilegal.
2. Habeas corpus concedido. (HC 125.042/RS, 4ª Turma, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 23/03/2009).
Em síntese, a inconstitucionalidade do art. 99, inc. VII, da lei de Falências, reside no fato de: i) a aludida prisão preventiva possuir nítida natureza de prisão por dívidas, o que há muito é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio; ii) inexistir os requisitos da cautelaridade; iii) caracterizar verdadeira ofensa ao princípio do devido processo legal e ao princípio do juiz natural.
Convém elucidar que os fundamentos insertos acima não afastam outros tantos aventados pela doutrina brasileira, sendo certo que o presente artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, como não poderia ser diferente.
Poder-se-ia cogitar da interpretação do art. 99, inc. VII, da lei de Falências, no sentido de que essa prisão preventiva só poderia ser decretada se preenchidos os requisitos constantes no Código de Processo Penal. Todavia, tal raciocínio tornaria letra morta aludido dispositivo legal.
E isto por uma razão muito simples: se deve existir os requisitos da prisão preventiva constantes no CPP, qual a razão de o art. 99, inc. VII, da lei nº 11.101/2005, prever tal modalidade constritiva da liberdade? Seria o mesmo que prever nessa lei que, se se estiver em situação de flagrância nos moldes previstos no Codex Processual, admitir-se-ia a prisão em flagrante! Daí a conclusão de que tal dispositivo, nesse aspecto, é despiciendo.
Por certo, se praticado algum crime e estiverem presentes os requisitos para a prisão preventiva previstos no CPP, é óbvio que o juízo – diga-se, criminal – poderá decretar a prisão preventiva, independentemente da previsão daquele artigo da Lei de Falências.
Desse modo, há de se concluir pela inconstitucionalidade da expressão “podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crime definido nesta Lei” prevista no art. 99, inc. VII, da lei nº 11.101/2005. Entendendo desse modo, ainda se encerraria também a discussão acerca da possibilidade de se prever a prisão por dívidas e quanto à competência do juízo falimentar para determinar a prisão preventiva, argumentos esses que restaram afastados segundo os fundamentos expostos acima.
Saliente-se, por fim, que não se reputa inconstitucional, em princípio, a primeira parte do referido dispositivo (“determinará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das partes envolvidas”).
3. CONCLUSÃO.
Diante dessas considerações, há de se concluir que o art. 99, inc. VII, da lei nº 11.101/2005, é inconstitucional no que tange à expressão “podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crime definido nesta Lei”, à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR; Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. Salvador: JusPodivm, 2008.
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
FEITOZA, Denílson. Reforma processual penal: Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008: uma abordagem sistêmica. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. A inconstitucionalidade da possibilidade de decretação de prisão preventiva pelo juízo falimentar e a inaplicabilidade prática do artigo 99, inciso VII, da Lei nº 11.101/2005 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2013, 07:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36260/a-inconstitucionalidade-da-possibilidade-de-decretacao-de-prisao-preventiva-pelo-juizo-falimentar-e-a-inaplicabilidade-pratica-do-artigo-99-inciso-vii-da-lei-no-11-101-2005. Acesso em: 23 dez 2024.
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