1. Introdução.
Questão bastante relevante no ramo do Direito Administrativo diz respeito ao prazo de vigência dos contratos administrativos e à possibilidade de sua prorrogação quando se trata de fornecimento de bens com natureza contínua.
A discussão demonstra notável importância, sobretudo se se considerar a divergência de entendimentos entre o Tribunal de Contas do Distrito Federal e o Tribunal de Contas da União, como se verá a seguir.
2. DESENVOLVIMENTO.
O artigo 57, da Lei 8.666/93, dispõe que:
“Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos:
I - aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório;
II - à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses; (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
III - (Vetado). (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
IV - ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato.
V - às hipóteses previstas nos incisos IX, XIX, XXVIII e XXXI do art. 24, cujos contratos poderão ter vigência por até 120 (cento e vinte) meses, caso haja interesse da administração. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)” (grifou-se).
O art. 57, §4º, da lei nº 8.666/93, preceitua que, em caráter excepcional, devidamente justificado e mediante autorização da autoridade superior, o prazo de que trata o inciso II acima transcrito poderá ser prorrogado por até doze meses.
Toda prorrogação de prazo deve ser justificada por escrito e previamente autorizada pela autoridade competente para celebrar o contrato, sendo vedado o contrato com prazo indeterminado. Permanece a regra, portanto, de se fixar a sua duração, principalmente quando há obrigações de trato sucessivo, em que o prazo fica adstrito à vigência dos respectivos créditos orçamentários.
Marçal Justen Filho[1] assim leciona:
“A regra geral para os contratos administrativos é de que não podem ultrapassar os limites de vigência dos créditos orçamentários correspondentes. A regra é consentânea de outras disposições da Lei. Não se admite a licitação ou a contratação sem previsão de recursos orçamentários para seu custeio.”
O art. 57, inc. II, da lei citada, dispõe sobre uma das exceções à regra da duração do contrato vinculada à vigência do respectivo crédito orçamentário, qual seja, a relativa aos contratos de prestação de serviços executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a 60 (sessenta) meses, admitindo-se, excepcionalmente, mais uma prorrogação de 12 (doze) meses, a teor do disposto no art. 57, § 4º, da lei nº 8.666/93.
Em outras palavras, é possível a prorrogação da vigência do contrato quando se tratar de serviço a ser executado de forma contínua, desde que a prorrogação se dê por igual período ao inicialmente pactuado; possibilite à Administração obter preços e condições mais vantajosas; não ultrapasse o limite de 60 (sessenta) meses; e que haja justificativa por escrito e prévia autorização pela autoridade competente.
Complementando esse rol de exigências, o Tribunal de Contas da União elenca mais os seguintes pressupostos para a prorrogação contratual: previsão da possibilidade de prorrogação no contrato; existência de interesse tanto por parte da administração quanto pela sociedade contratada; e comprovação de que a parte contratada mantém as condições iniciais de habilitação[2].
O conceito de serviço contínuo, por não ter sido definido na lei, teve que ser construído pela doutrina e jurisprudência.
Sobre tal definição, assim entendeu o Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 132/2008, 2ª Câmara), in verbis:
“2. O caráter contínuo de um serviço é determinado por sua essencialidade para assegurar a integridade do patrimônio público de forma rotineira e permanente ou para manter o funcionamento das atividades finalísticas do ente administrativo, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional.”
A Instrução Normativa nº 02/2008, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, define serviços continuados como “aqueles cuja interrupção possa comprometer a continuidade das atividades da Administração e cuja necessidade de contratação deva estender-se por mais de um exercício financeiro e continuamente”.
Vê-se, portanto, que a continuidade do serviço está relacionada à sua essencialidade ou necessidade permanente para a consecução da missão institucional do ente público licitante.
A aferição a respeito da caracterização de um serviço como contínuo ou não deve ser realizada a partir de aspectos objetivos, tomando-se por base a definição de tais serviços.
O entendimento consolidado no âmbito do Tribunal de Contas da União é no sentido de que os contratos firmados para a prestação de serviços não classificados como contínuos tenham vigência adstrita aos respectivos créditos orçamentários (TCU – Processo nº TC-004.724/1995-0. Decisão nº 301/1997 – 2ª Câmara).
Há relevante discussão acerca da possibilidade ou não da prorrogação dos contratos de fornecimento contínuo de bens.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal conferiu interpretação extensiva ao artigo 57, inc. II, da Lei de Licitações, admitindo que a exceção também autorize as situações de fornecimento contínuo de bens, devidamente fundamentadas pelo ente público interessado. Na assentada que consolidou esse entendimento (autos nº 4.942/95, de 10.11.1999), consignou-se haver lacuna na referida lei no que tange à prorrogação de contrato de fornecimento contínuo de materiais. Nesse sentido, confira-se trecho do voto do Conselheiro José Eduardo Barbosa, nos autos mencionados:
“(...)
Concluímos, então, que há vaccum legis, vez que o não reconhecimento da figura do fornecimento contínuo inviabiliza o atendimento estrito da Lei nº 8.666/93.
(...)
Partindo-se do pressuposto de que a Lei das Licitações não tem por objeto inviabilizar as aquisições de forma continuada de materiais de que a Administração não possa prescindir, e que não é esta a intenção do legislador, a melhor alternativa para permitir o fornecimento contínuo de tais materiais imprescindíveis é, sem dúvida, admitir-se a interpretação extensiva do dispositivo constante do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93 para tais casos.
(...)
Ante o exposto, entendemos que esta Corte possa, usando da prerrogativa a ela conferida no art. 3º da sua Lei Orgânica, firmar entendimento no sentido de permitir a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, aos casos caracterizados como fornecimento contínuo de materiais.
(...)”.
E este entendimento da Corte de Contas Distrital ensejou Decisão Normativa sobre o tema, como se vê a seguir:
“Fornecimento Contínuo. É admitida a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, às situações caracterizadas como fornecimento contínuo, devidamente fundamentadas pelo órgão ou entidade interessados, caso a caso.
DECISÃO NORMATIVA Nº 03, DE 10 DE NOVEMBRO 1999
Dispõe sobre a interpretação extensiva do disposto no inciso II do artigo 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. O PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso XXVI, do Regimento Interno, aprovado pela Resolução/TCDF nº 38, de 30 de outubro de 1990, e tendo em vista o decidido pelo Egrégio Plenário, na Sessão realizada em 03 de dezembro de 1998, conforme consta do Processo nº 4.942/95, e Considerando a inexistência de melhores alternativas, como exaustivamente demonstrado nos autos do Processo 4.942/95, que possibilitem à Administração fazer uso do fornecimento contínuo de materiais; Considerando o pressuposto de que a Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993, não tem por objeto inviabilizar as aquisições de forma continuada de materiais pela Administração, nem foi esta a intenção do legislador; Considerando que, dependendo do produto pretendido, torna-se conveniente, em razão dos custos fixos envolvidos no seu fornecimento, um dimensionamento do prazo contratual com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração; Considerando a similaridade entre o fornecimento contínuo e a prestação de serviços contínuos, vez que a falta de ambos "paralisa ou retarda o trabalho, de sorte a comprometer a correspondente função do órgão ou entidade" (Decisão nº 5.252/96, de 25.06.96 – Processo nº 4.986/95); Considerando a prerrogativa conferida a esta Corte no art. 3º da Lei Complementar nº 01, de 09 de maio de 1994; Resolve baixar a seguinte DECISÃO NORMATIVA: a) é admitida a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, às situações caracterizadas como fornecimento contínuo, devidamente fundamentadas pelo órgão ou entidade interessados, caso a caso; b) esta decisão entra em vigor na data de sua publicação.”
Em sentido diametralmente oposto, o Tribunal de Contas da União entende que a interpretação do art. 57, inc. II, da Lei 8.666/93, deve ser restritiva, no sentido de que só se deve considerar possível a prorrogação nos casos de prestação de serviço contínuo, sendo que os contratos firmados para a aquisição de bens devem ter vigência adstrita aos respectivos créditos orçamentários, como se extrai da decisão a seguir:
“Evite realizar prorrogações indevidas em contratos e observe rigorosamente o disposto no art. 57, inciso II, da Lei no 8.666/1993, considerando que a excepcionalidade de que trata o aludido dispositivo está adstrita à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, não se aplicando aos contratos de aquisição de bens de consumo. Acórdão 1512/2004 Primeira Câmara.” (Grifou-se).
De fato, merece acolhimento o entendimento do Tribunal de Contas da União, conforme abalizada doutrina administrativista, capitaneada pelo professor Marçal Justen Filho[3], ipsis litteris:
“A regra não abrange as compras. A distinção se reporta a questões apontadas nos comentários ao art. 6º. Em termos sumários, existe serviço quando a prestação consiste em obrigação de fazer. Já a compra envolve prestação versando sobre obrigação de dar. A distinção se faz em função da prestação principal, que dá núcleo e identidade à prestação. É perfeitamente possível, porém, avençar obrigações acessórias de natureza distinta da principal, sem que isso afete a natureza da contratação. Assim, uma obrigação de dar (principal) pode ser acompanhada de uma de fazer (acessória) e vice-versa. Como exemplo, uma compra pode ser acompanhada do dever de entregar em determinado local o bem vendido. O transporte da coisa vendida é obrigação de fazer, de natureza acessória. Sua existência não transforma a compra em serviço. Deve apurar-se o fim visado pelas partes e é óbvio que a administração não realizou o contrato buscando obter prestação de transportar. O fim que motivou a contratação foi a aquisição do domínio sobre o produto. Não há possibilidade de mascarar contratos de compra em prestação de serviço. De nada serve adicionar a transferência de domínio do bem em favor da Administração (objetivo fundamental das partes) alguma prestação de fazer. Se o núcleo do contrato é uma prestação de dar, não se aplicará o regime do dispositivo ora comentado.”
Por outro lado, segundo o princípio da legalidade, o administrador público só pode fazer aquilo que a lei expressamente lhe autoriza. Então, se o legislador infraconstitucional foi expresso ao permitir a prorrogação dos contratos administrativos por até 60 (sessenta) meses especificamente para a prestação de serviços a serem executados de forma contínua, não caberia ao intérprete e/ou ao administrador público estender tal possibilidade também ao fornecimento contínuo de bens.
3. CONCLUSÃO.
Desse modo, não há de se admitir a aplicação da exceção prevista no art. 57, inc. II, da Lei de Licitações, àquelas hipóteses de fornecimento contínuo de materiais, até mesmo porque, afora os fundamentos acima trazidos pela Corte de Contas da União, as lições iniciais de Direito e a jurisprudência[4] ensinam que as normas de exceção devem ser interpretadas restritivamente, sendo certo que entendimento diverso do proferido pelo TCU caracteriza ofensa ao princípio da legalidade.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2004.
- GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.
- JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª Ed., Dialética. São Paulo: 2009.
- Tribunal de Contas da União. Licitações e Contratos: Orientações Básicas. 3ª edição. Brasília: TCU, Secretaria de Controle Interno, 2006.
[1] JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª Ed., Dialética. São Paulo: 2009.
[2] Licitações e Contratos: Orientações Básicas. Tribunal de Contas da União. 3. ed. rev. atual. e ampl. Brasília: TCU, Secretaria de Controle Interno, 2006, p. 331.
[3] JUSTEN FILHO. Marçal. Ob. cit., pág. 698.
[4] STJ. 2ª Turma. REsp 70689. Rel. Min. Castro Meira. Publicado no DJ de 16/08/04.
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. Uma análise acerca do prazo de vigência dos contratos administrativos no que tange ao fornecimento de bens com natureza contínua Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36337/uma-analise-acerca-do-prazo-de-vigencia-dos-contratos-administrativos-no-que-tange-ao-fornecimento-de-bens-com-natureza-continua. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.