1. DA EXCEÇÃO À REGRA:
Sabe-se que a Constituição Federal estabeleceu como regra a realização de prévia licitação pelo Poder Público para contratação de obras, serviços, compras e alienações, admitindo, porém, exceções a serem disciplinadas por Lei.
Visando disciplinar tais exceções, a Lei de Licitações trouxe em seu artigo 24, hipóteses em que é possível a contratação direta por dispensa, dentre elas aquela prevista no inciso XI, que assim estabelece:
Art. 24. É dispensável a licitação
(...)
XI - na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior e aceitas as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço, devidamente corrigido;
Pela leitura do inciso acima mencionado, verifica-se que a letra da lei exige os atendimento dos seguintes requisitos para que seja possível a contratação por dispensa de remanescente de obras ou serviços:
a – existência de licitação anterior;
b – contratação do objeto com o licitante vencedor e extinção do contrato;
c – observância da ordem de classificação
d – contratação de remanescente;
e – condições e preços do licitante vencedor.
Pois bem. Questão a ser enfrentada é a referente à possibilidade de se utilizar da regra insculpida no inciso XI do artigo 24 para contratar, por dispensa, o licitante classificado em segundo lugar quando, embora assinado o contrato, não houver o início da execução do objeto pactuado.
O doutrinador Jorge Ulisses Jacoby Fernandes[1] entende que, “para que a contratação direta se enquadre nesse dispositivo, é imprescindível que a execução do objeto tenha sido iniciada. Se o licitante vencedor assinou o contrato mas não deu início à execução, pode o contrato ser rescindido e convocado o segundo licitante, na forma do art. 64, parágrafo segundo, da Lei 8.666/93.”
Para referido doutrinador, “os efeitos são, na prática, absolutamente equivalentes, repousando o exato enquadramento na nota diferenciadora: num caso – que é tratado neste inciso – houve início de execução, pouco importando o quanto foi realizado; noutro, nada chegou a ser executado (art. 62, ).
2. DO ENTENDIMENTO DO TCU
Em 2012, o Plenário do Tribunal de Contas da União acolheu os encaminhamentos sugeridos pela SECOB 2, em caso de contratação da segunda colocada, por dispensa de licitação, com base no inciso XII do artigo 24 da Lei 8666/93, quando não houve início da execução do objeto contratado.
Na visão do SECOB, acatada pelo Plenário do TCU, “A interpretação apresentada vai de encontro ao próprio conceito da palavra remanescente, que significa "o que resta". Assim, infere-se que para o devido enquadramento do caso analisado nesse parâmetro legal era necessário que houvesse a execução de parte dos serviços contratados, situação não verificada no caso concreto relatado” (006.166/2012-1, Ac.199/2012, Plenário). Desta feita, no caso levado a julgamento pelo TCU, foi considerada ilegal a dispensa de licitação com base no inciso XI do artigo 24 da Lei 8666/93, uma vez que não houve início da execução do objeto contratado pela vencedora do certame.
Também nesse sentido os Acórdãos 1.317/2006 e 701/2008 Plenário, da mesma Corte de Contas, senão veja-se:
‘16. O enquadramento da dispensa da licitação aqui discutida como contratação de remanescente de serviço prevista no inciso XI do art. 24 da referida lei não tem nenhum fundamento uma vez que, no contrato anterior (....), não houve a prestação de nenhum serviço. Nas suas alegações,os responsáveis não mencionaram que o verdadeiro motivo da rescisão do Contrato (...) foi o não início dos serviços pela empresa contratada (....)., conforme se comprova pelos documentos constantes às fls. 1056, 1059, 1061/1064, 1089/1093 e 1099/1108 do Anexo 3, Volume 5. Se não foi prestado nenhum serviço, não há que se falar em remanescente de serviço. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO TC-003.732/2005-76 (...)
18. Dessa forma, comprovado o não início dos serviços pela (....), não há que se falar em remanescente de serviço, portanto a dispensa da licitação para a contratação aqui discutida não se enquadra no inciso XI do art. 24 da Lei nº 8.666/93. Sobre o enquadramento da dispensa de licitação neste dispositivo legal, leciona o professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (Contratação Direta Sem Licitação, 5ª edição, página 401): ‘Para que a contratação direta se enquadre nesse dispositivo, é imprescindível que a execução do objeto tenha sido iniciada. Se o licitante vencedor assinou o contrato mas não deu início à execução,pode o contrato ser rescindido e convocado o segundo licitante, na forma do art. 64, § 2º, da Lei nº 8.666/93.’(...)
20. No caso aqui tratado, o licitante segundo classificado no certame, o (...), foi convocado e contratado com base no valor de sua própria proposta reajustada, e não da proposta da licitante classificada em primeiro lugar, como impõe a Lei nº8.666/93, portanto essa convocação e contratação foi irregular.
(...)
44. Do voto condutor do decisum impugnado, colhemos os seguintes elucidativos e concludentes trechos, in litteris:
‘3. Conforme ressaltou a Unidade Técnica, não havia respaldo para que a contratação se desse com base no citado dispositivo, uma vez que ele trata de contratação de remanescente de obra ou serviço, ou seja, de obra/serviço iniciado e não concluído. No caso em tela, a licitante vencedora sequer tinha iniciado a execução do serviço, conforme fica evidente em diversos documentos constantes do processo (fls. 1056, 1059, 1061/1064, 1089/1093, 1099/1108, anexo 3, volume 5).
4. Uma vez que o contrato chegou a ser celebrado com a licitante vencedora, tampouco poder-se-ia fundamentar a contratação no art. 64, § 2º, da Lei nº 8.666/93, que faculta à administração ‘quando o convocado não assinar o termo de contrato ou não aceitar ou retirar o instrumento equivalente no prazo e condições estabelecidos, convocar os licitantes remanescentes, na ordem de classificação,para fazê-lo em igual prazo e nas mesmas condições propostas pelo primeiro classificado, inclusive quanto aos preços atualizados de conformidade com o ato convocatório, ou revogar a licitação...’.
(..)
45. Portanto, como a (....), empresa vencedora do certame licitatório, sequer iniciou a prestação de qualquer serviço (circunstância inclusive afirmada na própria peça recursal do recorrente), não há que se falar que a contratação da segunda empresa mais bem colocada no certame, (...), se enquadra na hipótese de dispensa de licitação prevista no art. 24, inciso XI da Lei n° 8.666/93, que prevê a contratação direta de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em conseqüência de rescisão contratual. À evidência, se não houve qualquer serviço prestado, não se pode cogitar da contratação da execução de seu remanescente. (sem a indicação das partes envolvidas, conforme consta do texto original do Acórdão).
Contudo, recentemente o TCU, em novo julgado, entendeu de forma diversa qual seja, é possível utilizar-se da previsão contida no artigo 24, XI da Lei 8666/93, para contratar por dispensa de licitação quando não houver tido o início da execução do objeto pactuado.
O fundamento do recente do TCU é no sentido de que a ausência de expressa previsão legal para a contratação da segunda colocada quando a vencedora do certame tiver assinado o contrato mas não iniciado a execução do objeto não pode ser interpretado como um caso de manifesta vedação legal, senão veja-se algumas passagens do Acórdão 740/2013 Plenário:
10. Conforme se depreende da literalidade dos dispositivos legais mencionados, as hipóteses abarcam as situações em que a execução contratual foi iniciada, porém interrompida em consequência de rescisão contratual (art. 24, inciso XI); e em que sequer houve a assinatura ou retirada do termo de contrato ou instrumento equivalente, tendo a licitante vencedora desistido da avença.
11. Ficou de fora da disciplina legal a situação fática trazida nos presentes autos, na qual houve a assinatura do contrato com a licitante vencedora e esta, posteriormente, desistiu de executar a avença, tendo anuído a rescisão do ajuste anteriormente firmado.
12. Todavia, entendo que a ausência de expressa previsão legal para a contratação da segunda colocada, quando a vencedora do certame tiver assinado o contrato e em seguida houver desistido do ajuste, não pode ser interpretada como um caso de manifesta vedação legal, ou, utilizando a expressão mencionada por Norberto Bobbio, como uma lacuna voluntária e consciente do legislador (NORBERTO BOBBIO, "Teoria do Ordenamento Jurídico", p. 143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis).
13. Em outras palavras, penso que a situação em exame não se trata de um "silêncio" eloquente ou intencional do legislador, mas de uma típica hipótese de lacuna normativa decorrente da impossibilidade fática de o legislador prever antecipadamente todas as situações de fato passíveis de sofrerem o influxo do Direito. Nesse caso, deve o operador do direito valer-se de um dos meios de integração da ordem jurídica, podendo utilizar a analogia, os costumes ou os princípios gerais do Direito, conforme dispõe o art. 4º do Decreto-Lei 4.657, de 4/9/1942 (Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro).
14. Na situação examinada nos autos, entendo que a solução da matéria passa pela utilização do princípio geral de hermenêutica segundo o qual onde existe a mesma razão fundamental deve prevalecer a mesma regra de direito (ubi eadem est ratio, ibi ide jus).
15. Nesse caso, por estarem presentes os mesmos princípios inspiradores dos arts. 24, inciso XI e 64, § 2º da Lei 8.666/1993, quais sejam, os valores da supremacia do interesse público e da eficiência, julgo pertinente o uso da mesma solução jurídica enfeixada por essas normas, para o fim de permitir a contratação das demais licitantes, segundo a ordem de classificação e mantendo as mesmas condições oferecidas pelo licitante vencedor, também na hipótese em que este houver assinado o contrato e desistido de executá-lo, mesmo sem ter executado qualquer serviço.
16. Afinal, não há razão lógica nem jurídica para dar consequência jurídica diversa à contração em apreço só pelo fato de a empresa vencedora ter assinado o contrato e posteriormente ter rescindido amigavelmente o ajuste. Tivesse a sociedade empresária iniciado a execução do contrato, ainda que fosse para realizar uma parcela ínfima do empreendimento, ou oportunamente decidido não assinar o ajuste, não havia de se cogitar qualquer ilegalidade na contratação da segunda colocada, visto que presentes as situações de fato previstas nas normas conformadoras. Observo, portanto, que as diferenças circunstanciais entre as situações fáticas previstas na lei e a observada nos presentes autos não são juridicamente relevantes para merecer um tratamento jurídico distinto.
17. Dito de outro modo, usando a carga principiológica afeta ao regime jurídico-administrativo e tomando por base o princípio da unidade do sistema, não vejo fundamento para diferenciar a hipótese dos autos das demais especificadas na lei. Trata-se, em verdade, de situações fáticas semelhantes, a merecer, portanto, consequências jurídicas iguais, com vistas a preservar a coerência e a unidade do sistema.
18. Com relação à observação de que a seleção da melhor proposta está jungida ao princípio da legalidade, cumpre ressaltar que a obrigatória subserviência à lei não implica que a Administração não possa valer-se da analogia para extrair o exato sentido das normas jurídicas. Afinal, o comando do art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, segundo o qual "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.", tem como destinatário qualquer operador do direito, podendo o Administrador utilizar-se destes recursos para desvelar o correto sentido das normas jurídicas que regem sua atuação administrativa.
3. CONCLUSÃO
Por tudo que foi exposto, o recente acórdão do Tribunal de Contas da União apresenta mais uma alternativa para a Administração Pública, que constantemente se depara com a inexecução total do objeto pactuado por empresas que se aventuram, especialmente, no ramo de prestação de serviços.
[1] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby, Contratação direta sem licitação, 7. Ed., Belo Horizonte:Fórum, 2008, p.411
Procuradora Federal da PGF/AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SALVADOR, Juliana Lima. Possibilidade de contratação, por dispensa de Licitação com base no inciso XI do artigo 24 da Lei 8666/93 quando não houver início da execução do objeto do contrato firmado com a licitante vencedora Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 ago 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36349/possibilidade-de-contratacao-por-dispensa-de-licitacao-com-base-no-inciso-xi-do-artigo-24-da-lei-8666-93-quando-nao-houver-inicio-da-execucao-do-objeto-do-contrato-firmado-com-a-licitante-vencedora. Acesso em: 23 dez 2024.
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