Resumo[i]: O presente artigo buscará, de forma sucinta, discutir os princípios educativos e filosóficos de Pedro Abelardo no contexto da educação cristã na baixa Idade Média, com base em sua obra autobiográfica denominada História Calamitatum. Nela podemos apreciar as principais lutas travadas pelo monge-educador em defesa de uma filosofia baseada no pensamento racional. Mestre da arte da dialética e professor nato fundou várias escolas de filosofia e teologia, e teve como principal característica abordar o uso da racionalidade no contexto religioso. A inclusão da razão no âmbito da fé lhe renderia dois concílios, onde foi obrigado a queimar sua obra sobre a Trindade e a calar os seus ensinamentos. Amou Heloísa e foi castrado por esta desventura. Escreveu várias obras, mas, História Calamitatum tornou-se a sua obra mais conhecida por descrever minuciosamente suas tragédias.
Palavra Chave: Direito Canônico, Filosofia, Escolástica.
Sumário: Introdução; 1. O Dilúculo de Ablardo; 1.1. História Calamitatum; 1.2. 1079 DC – Abelardo nasce para o Mundo; 2. O Crepúsculo de Abelardo; 2.1. A Paixão que imortalizou o Filósofo; 2.2. A Dor da Separação e o nascimento de Astrolábio; 2.3. O casamento secreto, a ira de Fulberto e a terrível castração de Abelardo; 2.4. A derrocada do filósofo; 2.5. Os três Deuses de Abelardo e o Concílio de Soisson; 2.6. A queima do próprio livro e a clausura do paladino; 2.7 Bernardo de Clairvaus e o Concílio de Sens; 2.8. O fechar de olhos de um gênio; 2.9 Findam as Calamidades; Considerações Finais; Referências.
Se algum dia eu acabar no Purgatório e precisar de um advogado, não terei dúvidas: escolherei Pedro Abelardo e ficarei com certeza de ir direto ao Paraíso. Nunca houve, e nunca haverá no mundo, alguém mais habilidoso com as palavras do que Abelardo. (CRESCENZO apud CORDEIRO, 2010).
A apresentação deste trabalho tem como finalidade o debate e estudo da vida de um dos maiores filósofos de todos os tempos: Pedro Abelardo. No transcurso do estudo, veremos como a legislação Eclesiástica da época em forma de Concílios conseguiu calar a voz inquietante de Abelardo.
Pedro Abelardo pode ser considerado "o primeiro intelectual da Idade Média” (LE GOFF, 1983, p. 51). “Enquanto Anselmo de Aosta foi a figura mais representativa do século XI, Abelardo foi a figura mais prestigiosa do século XII” (REALE, 1990, p. 51).
Sua importância é citada com dinamismo por Rocha, quando assim o define:
O Mestre Pedro Abelardo foi, incontestavelmente, a maior figura filosófica do século XII e teve um papel decisivo no desenvolvimento do método teológico que preparou e tornou possível o método Escolástico do século XIII. (1996, p. 183).
De Boni (2005, p. 115), realça sua imprescindibilidade, assim, dizendo:
O mais importante pensador ocidental do século XII. Renovador da Lógica, da Ética, nas quais valoriza a intencionalidade, e da Teologia. Lecionou em várias localidades, tendo sempre uma multidão de discípulos. Espírito combativo, arrumou inimigos por onde passou, contando entre eles seus mestres, Roscelino e Guilherme de Champeaux, o abade de Saint Denis e São Bernardo.
Não é difícil o conhecimento da vida de Abelardo, pois o filósofo deixou a maioria de suas desmedidas passagens documentadas em uma autobiografia denominada História Calamitatum, espécie de carta escrita a um amigo desafortunado que se acredita ter sido confeccionada no ano de 1125.
De forma sucinta, História Calamitatum mostra a passagem de Abelardo por este mundo, desde o seu nascimento em Lhe Pallet em 1079, mostrando o seu amor pelos estudos com a renúncia à carreira militar em prol da lógica e da dialética, tornando-se o maior de seu tempo em ambas as disciplinas.
Para aprofundar o seu conhecimento, Abelardo procura o magistério do mestre Roscelino, entre 1095 e 1097, e logo após, aos 20 anos, dirige-se á Paris, berço da educação medieval, e lá procura o archidiácono Guillerme de Champeaux, estudando com aquele retórica, gramática e dialéctica, entre os anos 1098 e 1100, e após, entre 1112 e 1113, estuda teologia com o conceituado Anselmo de Laon.
De temperamento inquieto, Abelardo acaba por criar inimizades com todos os mestres que o ofereceram a docência, e embora em muitos momentos de sua conturbada vida possuir milhares de seguidores, atrai infindáveis inimigos e algozes, ora por sua inteligência recatada, ora pelo seu egocentrismo narcisista.
Não obstante sua vocação para os estudos, Abelardo também teve breve dedicação a arte musical, e ficou universalmente conhecido como o filósofo e teólogo do amor, por seu enlace amoroso com a jovem Heloísa, em meados de 1115. A paixão por Heloísa, de tão intensa lhe rendeu um filho de nome Astrolábio e uma tenebrosa mutilação em seu genital, em uma emboscada liderada pelo vingativo Fulberto, tio de Heloísa. Após a sua castração, Abelardo, humilhado, sentindo-se uma aberração, tornar-se eclesiástico e convence Heloísa a também seguir a carreira religiosa. Responde ainda a dois concílios, de Laon (1121/1122) e de Sens (1139/1140). Falece em 1142, a caminho de Roma, onde pretendia apelar junto ao Papa Inocêncio II, pela condenação a ele imposta no Concílio de Sens.
O presente trabalho procura, no primeiro capítulo, contar, de forma sucinta e baseada em vários autores, mas principalmente na biografia de Abelardo, os momentos exitosos do mestre, e no segundo, a derrocada do filósofo.
1.1 História Calamitatum
História Calamitatum ou a História de Minhas Calamidades é uma carta autobiográfica escrita em primeira pessoa onde o próprio Pedro Abelardo descreve os acontecimentos singulares ocorridos em sua vida, e os endereça a um amigo anônimo na tentativa de consolá-lo. Abelardo demonstra ao longo daquela carta que os acontecimentos que o acometeram seriam deveras superiores ao do amigo. Rocha (1996, p. 184) nos ensina que certamente o título não foi escolhido por Abelardo, mas sim por editores antigos baseados no conteúdo da carta.
Não obstante a carta narrar às desventuras que acometeram o filósofo, ao compassá-la, adentramos em seu universo e percebemos que Abelardo, apesar de indiscutivelmente ser o maior dialético de seu tempo, também nos mostra uma personalidade inquieta e extremamente narcisista. “Ele se acreditava o único filósofo que ainda restava no mundo (...). Como as sombras num quadro, as calamidades na carta de Abelardo, realça ainda mais a luz de suas prerrogativas, dos seus dons e de sua genialidade” (ROCHA, 1996, p. 184).
Este estudo será baseado nesta carta, e com ela, serão apresentados os momentos cruciais da vida deste Filósofo, um dos maiores de todos os tempos.
Eis o início de seu relato:
Os exemplos, mais do que as palavras, muitas vezes exaltam ou serenam os sentimentos. Por isso, depois de algum conforto obtido pela conversação em tua presença, resolvi escrever ao ausente esta carta de consolação sobre as próprias experiências das minhas calamidades, a fim de que reconheças que tuas provações, comparadas com as minhas, são pequenas ou nulas, e mais pacientemente as suportes. (Saepe humanus affectus aut provocant aut mitigant amplius exempla quam verba. Unde post nonnullam sermonis ad praesentem habit consolationem, de ipsis calamitatum mearum experiments consolatoriam ad absentem scribere decrevi, ut in comparatione mearum tuas aut nullas aut modicas temptationes recognoscas et tolerabillius feras) (ROCHA, 1997, p. 48/49).
1.2 1.079 DC - Abelardo nasce para o mundo.
Segundo nos contempla Reale (1990, p. 510), Abelardo “nasceu em Nantes, na França, em 1079”.
Ainda segundo o mesmo autor, a cidade natal de Abelardo era pequena e formada por comerciantes que fundiam vidros e também, por vinicultores. Fundada no Século X, a cidade ficou conhecida como local de pouso de peregrinos e viajantes, que exaustos, comumente ali repousavam antes de seguirem suas marchas (ROCHA, 1996).
Naquele contexto histórico, mesmo em longínquos rincões, a Igreja não poderia deixar de mostrar sua força, pois além o ensinamento da religião, a escola religiosa ainda permitia que aqueles que “desejavam tornarem-se monges ou clérigos, podiam nela estudar também um pouco de latim” (PODLECH apud ROCHA, 1996, p. 185). Dos enunciados deste autor podemos entender que os pais de Abelardo não desfrutavam de grande sofrimento, pois o seu pai, de prenome Berengário, era originário do Ducado de Poitou, e antes de se tornar cavaleiro, teve uma breve passagem pelas culturas literárias, levando-o a ter apreço pelos livros, e sua mãe, chamada Lúcia, vinha do Norte, e fora formada de acordo com a cultura Gaulesa. Assim, tendo Berengário, nobreza, patrimônio e uma fascinação pelos livros, fazia questão que os filhos, antes de adentrarem para as forças militares, fossem conhecedores e assíduos provadores da leitura. E neste particular, Abelardo foi agraciado por ter sido o primogênito da família, pois nesta condição era o mais querido e recebedor de uma educação toda especial, particularidades que transformaria sua personalidade para sempre.
Ainda com relação á família do Filósofo, com base em Rocha (1996) podemos averiguar que Abelardo possuiu 4 irmãos. O irmão Dagoberto que o substituiria como primogênito, Porcário que se tornaria o Cônego da Catedral de Nantes, e um terceiro, que pouco se sabe, de prenome Radulfo. Porém, sua mais famosa irmã foi Denise, pois foi ela que abrigou o nascimento de seu filho Astrolábio.
Abelardo amava a sua cidade e os livros a que se dedicava constantemente. Com efeito, desde cedo já demonstrava consciência de seu potencial intelectual, o que o levou a renunciar aos seus direitos de primogênito para se lançar ao clamor da filosofia. Ouçamos suas próprias palavras:
Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente avancei nos estudos das Letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e de tal modo foi seduzido pelo seu amor, que, deixando aos meus irmãos o esplendor da glória militar com a herança e os privilégios dos meus direitos de primogênito, renunciei completamente a corte de Marte para ser educado no regaço de Minerva. (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 189).
Nas palavras de Abelardo, podemos entender que, não obstante o filósofo ter deixado o combate campal, ele não renunciou ao bom combate das palavras, visto que, era o soberano da dialética e amava a disputatio.
E porque preferi o arsenal das argumentações dialéticas a todas as demonstrações da filosofia, troquei por estas as outras e preferi os combates das disputas aos troféus das guerras. (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 191).
Ato contínuo, passou a percorrer a região e a perseguir a arte dialética em todas as oportunidades que encontrava para tanto.
Perambulando e discutindo pelas diversas regiões, onde quer que ouvisse dizer que florescia o estudo desta arte, tornei-me um êmulo dos peripatéticos. (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p.191).
Rocha ainda nos ensina que, em tais andanças, Abelardo pode ter tido como Mestre, na cidade de Angers, um educador de renome de sua região chamado Ulger, mas foi o encontro com Roscelino em Loches que teria preparado Abelardo para a retórica dos Universais, não obstante Abelardo nunca o ter citado em História Calamitatum.
Rocha, citando Otho Freising, assim demonstra este momento:
Abelardo Primeiramente teve como mestre um tal de Roscelino, o primeiro em nosso tempo, a instituir, na lógica, a sentença das vozes. (1996, p. 192).
Existe o entendimento de que, Abelardo e Roscelino haviam se desentendido por uma carta escrita por Abelardo ao Bispo de Paris, onde Abelardo teria acusado a Doutrina apregoada por Roscelino de Herética. Roscelino quando escreve a Abelardo, não deixa dúvidas das alegações:
Em Loches, (...) tu eras o menor dos (meus) discípulos, tu te sentaste, durante muito tempo, aos meus pés, quando eu era o teu mestre. (ROCHA, 1996, p. 192).
De Boni, neste mesmo sentido, explicita que:
Por longos anos (1092-1099) foi aluno de Roscelino, de quem se afastou de maneira pouco amistosa. Vinte anos mais tarde, após o sínodo de Soissons, Roscelino haverá de escrever a um antigo aluno uma carta reveladora não só do espírito belicoso do discípulo, mas também do mau caráter do mestre (2003, p. 13/14).
Após referida carta, Abelardo parece ter usado do esquecimento como vingança á Roscelino, que acaba por tornar-se mais adiante, clérigo da Igreja de Compiégne.
Abelardo, buscando sua meta, acaba chegando á seu destino:
Enfim, cheguei a Paris (Parveni tandem Parisius!) (ABELARDO apud Rocha, 1996, p. 193).
Em Paris, Abelardo encontrou Guilherme de Champeaux, diretor responsável pela Escola de Notre Dame. Era ele a pessoa responsável pelo sucesso da dialética naquele momento histórico.
Finalmente cheguei a Paris, onde essa disciplina conseguira florescer ao máximo, junto á Guilherme, a saber, o de Champeaux, meu preceptor, reputado então como o principal expoente deste magistério, tanto pela fama como de fato. (ABELARDO, 1984, p. 254)
Famoso por merecimento próprio, Guilherme era considerado o mais influente Professor da Escola Catedral de Paris. Receptivo no início, Guilherme começou a sentir-se incomodado com Abelardo pelo seu Brilhantismo e inteligência, pois “muitas vezes estes discípulos questionam e contestam aquilo que os mestres ensinam” (ROCHA, 1996, p. 194). Ouçamos o próprio Abelardo:
Com ele demorei algum tempo; de início, fui bem aceito, mas logo depois eu lhe pareci muito incômodo quando tentei refutar algumas das suas opiniões e acometi contra ele a argumentar freqüentemente, sendo que, por vezes, eu parecia levar melhor nas discussões. (ABELARDO, 1984, p. 254).
Guilherme teria encontrado alguém a sua altura. Afinal, o temperamento de Abelardo tinha sido moldado durante os anos para as lutas e os debates. “Não é de estranhar que, muito cedo, ele tenha se tornado incômodo para o mestre Guilherme e para seus discípulos”. (ROCHA, 1996, p. 194). Reali, sobre os interpérios de Abelardo salienta que “basta ver na relação com Guilherme de Champeux, ele se define como discípulo embaraçoso”. (1990, p. 510).
Por certo, aqueles mesmos entre os nossos discípulos que eram considerados como os principais sofriam com indignação tanto mais quanto eu era tido como o último pelo tempo da idade e do estudo. (ABELARDO, 1984, p. 254).
Os alunos, como explicita Rocha (1996), talvez por inveja ou solidariedade ao mestre, partiam de rancor contra Abelardo, e como ele mesmo salienta, ele próprio era o aluno mais novo da, não obstante ser o melhor em sua arte. “É compreensível que contra ele se inflamasse a inveja dos colegas. Tinha início, assim, aquilo que ele próprio designou como o começo de suas calamidades”. (ROCHA, 1996, p. 194).
Nas palavras do próprio Abelardo:
Daí começaram as minhas calamidades que continuam até agora, e quanto mais longe se estendia a minha fama mais se inflamava a inveja dos outros contra mim. (ABELARDO, 1984, p. 254).
A questão dos Universais seria o divisor de águas entre as opiniões de Abelardo e Champeaux, pois ambos se contradiziam quanto ao tema, que era na época, o cerne das discussões filosóficas daquele século. Rocha confirma as perseguições de discípulos e Mestres á Abelardo, porém, citando carta de Fulco, salienta que Abelardo “era tão arrogante e tão seguro de sua genialidade, que, com dificuldade, consentia em descer das alturas de seu talento para ouvir os mestres” (1996, p. 195).
Ocorre que naquele período, os diretores das escolas provavam através de torneios dialéticos a sua competência. Abelardo, de olho na direção da Escola da Catedral de Paris, cuja direção pertencia exatamente á Guilherme, passou a acelerar os debates. Sabedor de que os discípulos sempre ficavam ao lado dos mestres, Abelardo teria que ter a sua própria escola. Teria que recuar para depois, novamente, contra-atacar.
Por fim, aconteceu que, presumindo do meu engenho acima das forças da idade, eu aspirava à direção de uma escola sendo ainda um adolescente, e imaginava o lugar em que realizaria este plano, a saber, na então famosa cidade de Melun, que era sede real.
Referida Melun era a cidade em que o rei Felipe I constantemente se instalava, e por isso sua importância e a escolha correta. Como salienta Rocha, “Guilherme de Champeaux tudo fez para impedir a realização do projeto de seu aluno rival e, de todos os modos, maquinou ocultamente e tudo fez para que a escola e o lugar que Abelardo escolheu não lhe fossem concedidos, mas não conseguiu” (1996, p. 197).
Meu já mencionado mestre pressentiu isso, tendo envidado esforços para afastar para bem longe de si a minha escola. Maquinou ocultamente com todos os meios de que dispôs para, antes que me afastasse da sua escola, prejudicar a preparação da minha e me arrebatar o lugar previsto. (ABELARDO, 1984, p. 255).
Abelardo em breve sai de Melun e procura uma cidade próxima á Paris denominada Corbeil. Rocha (1996) salienta que embora Abelardo tiver alegado em História Calamitatum que esta seria uma estratégia para aproximar-se de Paris, “não é impossível que, aqui também ele esteja ocultando a verdadeira razão da transferência de sua escola, a qual pode ter sido de ordem política”. (ROCHA, 1996, p. 200).
Porém, com as constantes batalhas travadas e pela ansiedade pelo estudo que pouco a pouco consumiam Abelardo, este acabou adoecendo.
Não havia, porém, transcorrido muito tempo quando, por causa do ardor descomedido pelos estudos, e atingido pela doença, fui obrigado a retornar à terra natal; afastado da França durante alguns anos, eu ainda era procurado mais ansiosamente por aqueles que o estudo da dialética espicaçava. (ABELARDO, 1984, p. 255).
Rocha (1996) nos informa que este período perdurou por três anos, e no retorno, a Escola de Paris estava sendo dirigida por Gilbert, que teria substituído Guilherme, e este, por sua vez, estava na Abadia de São Victor ensinando retórica. Abelardo o procurou para retomar as antigas discussões dialéticas, especialmente a Questão dos Universais.
Então eu retornei para junto dele a fim de estudar retórica com ele. Além de outras tentativas, das nossas discussões, eu o constrangi por meio de claríssimas provas racionais a modificar, ou melhor, a destruir a sua antiga sentença a respeito dos Universais. (ABELARDO, 1984, p. 256).
Esta atitude levou finalmente Champeaux, não só a modificar, mas abandonar sua teoria sobre os universais. Em conseqüência, “Gilbert, futuro Bispo de Paris, que estava á frente da Escola, ofereceu-lhe o lugar e se tornou seu discípulo.” (ROCHA, 1996, p. 203).
Em conseqüência disso, o meu ensino recebeu tanta força e autoridade que aqueles que anteriormente aderiam com veemência àquele nosso mestre, e que molestavam ao máximo o meu ensino, acorreram em revoada às minhas aulas, e aquele mesmo que havia sucedido ao meu mestre na escola-catedral de Paris me ofereceu o seu lugar a fim de que aí mesmo, junto com os outros, ele se inscrevesse entre os meus alunos, onde antes florescera aquele que fora o seu e o meu mestre. (ABELARDO, 1984, p. 256).
Abelardo, após este fato, necessitou retornar a sua cidade natal a pedido de sua mãe Lúcia, pois após “a entrada de meu pai Berengário para a vida monástica, ela se dispunha a fazer o mesmo” (ABELARDO, 1984, p. 257), e após, voltou á França para estudar a Doutrina sagrada, pois desejava dirigir a Escola Catedral de Paris, necessitando, porém para tal realização dos ensinamentos de um Mestre dominante das ciências divinas, escolhendo para tanto o próprio professor de Champeaux, o afamado Anselmo de Laon. “O Mestre Anselmo era por todos reconhecido como um dos mais importantes mestres de teologia do século XII, e devia também sua fama ao fato de ter sido discípulo do grande Anselmo de Cantembury”. (ROCHA, 1996, p. 207).
Rocha (1996) salientando deveras a personalidade narcisista de Abelardo deixa claro que esta característica o traria, como outrora, uma nova decepção face ao aclamado Laon. Com a trajetória de Abelardo, é evidente que ele nunca se contentaria com uma personalidade que não o desafiasse, pois esta atitude de enfrentamento era a que lhe movia a todo instante. Abelardo acreditava que Laon mantinha a fama através dos tempos por ter crescido através dos ensinamentos de um mito da época, ou seja, Anselmo de Cantembury. Nas palavras de Rocha, citando Lucano: “Á sombra de um grande nome, como um sublime carvalho em um campo fecundo” (LUCANO apud ROCHA, 1996, p. 207).
Abelardo, sentindo a dificuldade de conviver com um mestre mais velho que ele, iniciou impiedosamente um ataque aos defeitos do velho Anselmo. Reale revela com maestria o sentimento de Abelardo:
Possuía linguagem brilhante, mas pobre de conceitos e vazia de pensamentos. Parecia um fogo que depois de aceso, enche a casa de fumaça sem iluminá-la (...) Dando-me conta disso, não permaneci por muitos dias ocioso, à sua sombra. Mas quando, pouco a pouco, comecei a discutir sempre mais as suas lições, alguns de seus mais eminentes discípulos indignaram-se fortemente” (1990, p. 510).
Rocha nos traz o pensamento do próprio filósofo, que assim salientou:
Anselmo de Laon era admirável aos olhos dos que o ouviam (...) mas nulo na presença dos que os questionavam (...). Ele tinha um domínio admirável das palavras (...), mas era desprezível na interpretação do sentido e racionalmente vazio (...). (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 208).
Na visão de Rocha (1996), existia um conflito edipiano nos ataques de Abelardo a tão frágil ancião, e a sua verdadeira intenção seria atacar para tomar o lugar do mestre, assim como o fez com o antecessor Guilherme. Abelardo teria ouvido clamores sobre Laon de outras pessoas como João de Salisbury, que o consideravam a grande personalidade de Laon e até mesmo da França, e talvez por esse motivo, esperasse mais do mestre.
Logo Abelardo estaria comentando as escrituras, pois ele “viera a iniciar-se junto ao mestre de Laon, e logo, se achou em condição de assumir o papel de comentador, no lugar onde ensinava seu mestre e diante de seus discípulos” (ROCHA, 1996, p. 210).
As atitudes de Abelardo ao mesmo tempo que entusiasmava os discípulos com seus métodos revolucionários, causava inveja na ala conservadora da igreja. Os maiores combatentes de Abelardo, Alberico de Reims e Lotulfo de Lombardia forçaram a mão de Anselmo de Laon, que passou a proibir Abelardo de exercer o trabalho de comentador dos livros sagrados, porém, parece que tal proibição trouxe benefícios á Abelardo, pois os discípulos, inconformados, passaram a procurá-lo com maior volúpia para ouvi-lo:
Quando a notícia (da proibição) chegou aos ouvidos dos estudantes, eles foram movidos por uma enorme indignação (...). E quanto mais clara foi a desfeita, mais ela se tornou, para mim, um motivo de honra (...), e, deste modo, perseguindo-me ele me fez cada vez mais glorioso (...). (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 210).
Abelardo permanece poucos dias em Laon, voltando com brevidade á Paris (ROCHA, 1996). Em 1113, com a nomeação de Guilherme de Champeaux á Bispo de Châlons-sur-Marne e o discípulo do futuro Bispo, que por sinal era rival de Abelardo, tendo perdido todos os seus alunos e abandonado a escola Catedral de Paris, este somente teve que para lá se dirigir e enfim, tomar posse da tão desejada direção de uma das mais importantes instituições Européias da Idade Média. Lá, Abelardo manteve a função de Comentador, pois desejava, além do posto admirável de seu primor nas ciências Filosóficas, também o primeiro lugar na seara das ciências teológicas. E o sucesso foi inevitável, pois:
No campo da teologia, suas aulas foram tão bem recebidas pelos estudantes, que já se admitia que ele tivesse conseguido, na ciência sagrada, uma glória não menos do que a que tinha adquirido na ciência filosófica (...). O sucesso foi total! O número de alunos, que acorriam á suas aulas, multiplicou. Abelardo desfrutava de uma situação invejável, pois grande era sua glória e sua fama e – por que não dizer também? – grande, muito grande seu lucro financeiro (...) (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 212).
A Europa estava em constante transformação, especialmente nas searas da economia, da sociedade e no âmbito da intelectualidade, e foram essas transformações que permitiram surgir uma nova profissão: a de intelectual. Abelardo era naquele momento histórico um de seus principais representantes (ROCHA,1996). Abelardo era destemido em suas lutas, e todas que foram travadas, obteve esplendorosa sucesso. Com 39 anos, conhece a figura que influenciaria toda a sua vida. No auge de seu intelecto, Abelardo apaixona-se por uma mulher 19 anos mais jovem. Seu nome; Heloísa.
2.1 A Paixão que Imortalizou o Filósofo
Gênio de sua época, Heloísa fez com que Abelardo fosse lembrado por todo o sempre, não somente por ser o expoente máximo da filosofia de seu tempo, mas também pela literatura amorosa do século XII e de todos os tempos.
Havia na cidade de Paris certa mocinha chamada Heloísa, sobrinha de um cônego chamado Fulbergo, que quanto mais a amava tanto mais cuidadosamente procurava que ela adiantasse em toda a ciência das letras, tanto quanto possível. (ABELARDO, 1984, p. 261).
Heloísa, segundo Rocha (1996) era uma mulher admirável. Destacava-se pela sua cultura, dominava como pouco a língua latina e discutia filosofia como ninguém, destacando-se por ser uma intelectual diferenciada das outras mulheres a ela contemporâneas. Todos estes atributos certamente não passaram despercebidos ao mestre Abelardo, pois “ele afirma que – não tendo ainda ultrapassado a idade da adolescência, nem saído da juventude – tomou conhecimento da fama (...) dos estudos de Heloísa” (ROCHA, 1996, p. 221). O mesmo autor ainda volta a citar a reação de Abelardo ao tomar conhecimento de que surgira para seu espanto uma mulher, bonita, pré-adolescente e culta, e que “não estando ainda livre dos vínculos com o mundo, (...) muito se dedicava á ciência literária e ao estudo da sabedoria profana (...) o que era muito raro entre as mulheres da época” (ROCHA, 1996, p. 221).
O filósofo portanto, fascinado por aquela mulher, resolveu investir fortemente:
Ponderadas então todas as coisas que costumam cativar os amantes, pensei em uni-la a mim pelo amor muito cômodo e acreditei poder conseguir isso de modo muito fácil. (ABELARDO, 1984, p. 261).
Abelardo contempla sua conquista face á Heloísa, iniciando da seguinte maneira:
Quero que conheça a história (desta conquista) de um modo mais verdadeiro (verius), ou seja, através da narração do que na realidade aconteceu (ex ipsa re), e não pela mediação dos boatos (ex auditu) e na ordem em que tudo ocorreu (ordine quidem quo processerunt). (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 227)
As cartas de amor foram a forma do filósofo atingir o coração de sua pretendente.
Embora ausentes, era possível através de cartas (scriptis internuntilis), sentimos a presença um do outro, escrever, com mais audácia, muitas coisas antes que dizê-las (...) e, desse modo, permanecermos sempre presentes por meio desses agradáveis colóquios (et sic semper jucundis interesse colloquiis).(ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 228).
É de se frisar que desde o primeiro contato com Heloísa, Abelardo foi tomado por uma paixão avassaladora. Rocha evidencia esta paixão, quando salienta que “diante da jovem Heloísa, ele se diz `todo inflamado de amor´ (...) e compara-se a `um lobo faminto´ (...) `diante de uma tenra ovelha” (1996, p. 231).
Ora, todo inflamado de amor, por essa mocinha, procurei a ocasião ela se tornasse familiar pelo convívio doméstico e cotidiano e assim a arrastasse a ceder mais facilmente.(ABELARDO, 1984, p. 262).
Abelardo teria então que aproximar-se de Heloísa através de seus principais atributos. Usou sua fama de filósofo para se chegar ao seu tutor e seus dotes intelectuais para enfim, fasciná-la:
Para que isso acontecesse, tratei com o mencionado tio da moça, por intermédio de alguns de seus amigos, para que ele me recebesse em sua casa, que ficava próxima de minha escola, por um preço qualquer que ele estipulasse, alegando na verdade o pretexto que o cuidado da minha casa prejudicava os meus estudos e que a excessiva despesa me onerava. Ele era muito avarento e muito preocupado com que a sua sobrinha progredisse sempre mais nos seus estudos literários.
Porém, como em todos os dramas amorosos, este também não poderia furtar-se de destemidos algozes, e o primeiro deles foi sem dúvida o cônego Fulberto, tutor e tio de sua amada. Abelardo, como já dito, primeiramente conquistou a confiança do religioso, para depois traí-la. Ouçamos o nosso protagonista:
Primeiramente nós nos unimos numa mesma casa (primo domo uma conjungimur), e, depois, num só espírito (postimodum animo), sob o pretexto do estudo (sub ocasione disciplinae) entregávamo-nos inteiramente ao amor (amori penitus vacabamus), e a tarefa escolar oferecia os lugares secretos que o amor desejava (et studium lectionis offerebat secretos recessus quos amor optabat). Assim, com os livros abertos, falávamos muito mais sobre o amor do que sobre a lição (apertis itaque libris plura de amore quam de lectione verba se ingerebant) E os beijos eram muito mais numerosos do que as sentenças (plura erant oscula quam sententiae). As minhas mãos eram dirigidas mais freqüentemente para os seios, do que para os livros (saepius ad simus quam ad libros reducebantur manus), e o amor com mais freqüência arrastava para si nossos olhos do que os dirigia para o texto da lição (crebius óculos amor in se reflectebat quam lectionis in scripturam dirigebat). Em suma, que mais direi? Nenhum grau do amor foi omitido pelos apaixonados (mullus gradus amoris a cupidis intermissus est) e o que o amor pôde imaginar de insólito, foi acrescentado (et si quid insolitum amor excogitari potuit, est additum). E quanto menos experientes nesses prazeres, com mais ardor neles insistíamos (Et quo minus insta fueramus experti gaudia ardentius illis insistebamus) e menos deles nos cansávamos (et minus in fastidium vertebantur) (ABELARDO apud Rocha, 1996, p. 232-233).
O anseio de encontrar Heloísa começa a levar Abelardo a se tornar relapso com as suas aulas e para com seus alunos, pois “quanto mais a paixão o dominava, tanto menos ele podia consagra-se á filosofia (...) e as vigílias noturnas eram dedicadas ao amor” (ROCHA, 1996, p. 233). Neste ritmo, a paixão entre ambos dificilmente conseguiria passar incólume. “O apaixonado gosta, sem mesmo saber por que, de enfrentar grandes riscos e desafios” (ROCHA, 1996, p. 234).
Ato contínuo, ocorre o inevitável. O casal é surpreendido por Fulberto em um momento inusitado, justamente quando se amavam. “A paixão que uniu Abelardo e Heloísa numa só casa, num só corpo, num só desejo num só coração. Agora, esta mesma paixão vai obrigá-los a dolorosamente se separarem um do outro” (ROCHA, 1996, p. 234).
2.2 A Dor da Separação e o nascimento de Astrolábio
Nas palavras do filósofo, podemos ter a idéia do flagrante e das conseqüências daquele ato:
Oh! Que dor imensa a do tio ao tomar conhecimento de tudo isso! Quanta dor, também na separação dos próprios amantes! Como fiquei confundido e envergonhado! Como me consumi de arrependimento pela aflição da mocinha! Que gemidos de tristeza a sacudiram diante da minha vergonha!
E sobre a dor do casal, o relato impressiona:
Nenhum de nós se queixava do que acontecera a si próprio e sim ao outro (neuter quod sib, sed quob alteri contingerati quaerebatur). Nenhum de nós chorava os seus próprios males, mas os do outro (nouter sua, sed alteris plangebat incommoda). (ABELARDO apud ROCHA, 1996, p. 235).
Porém, indivíduos se diferem e os universos quase sempre não são idênticos. Abelardo sofre pela separação e pela vergonha do ato, e Heloísa entrega-se somente a dor de não poder mais conviver com o seu amado. “Enquanto aquele se sente totalmente confundido e envergonhado e esmagado pela dor do arrependimento esta apenas sofre” (ROCHA, 1996, p. 235).
Eis a dor de Heloísa:
E, no entanto, (Deus sabe) por uma ordem tua, eu de modo algum duvidaria preceder-te às pressas ou te seguir até aos infernos (os lugares de vulcão). Pois minha alma não está comigo, mas contigo (nom enim mocum animus meus, sed tecum est) E, agora, muito mais ainda. se ela não está contigo, não está em lugar algum, pois ela não pode existir sem ti (et nunc máxime si tecum non est, musquan est: esse vero sine te nequaquan potest) (ROCHA, 1996, p. 235).
Abelardo, Deus de Heloísa:
Em todos os momentos de minha vida (Deus sabe) eu temo mais te ofender do que ofender a Deus e desejo agradar mais a ti do que a ele (te magis adhuc offendere quam Deum vereor, tibi placere amplius quam ipsi appeto). (...) Até agora acreditava muito merecer de ti porque tudo fiz por tua causa (propter te complevent) e, até hoje, permaneço inteiramente em teu serviço (nunc in tuo maxime perseverans obsequio) (...). (ROCHA, 1996, p. 236).
Da paixão do casal, ocorreu que Heloísa ficou grávida e avisou Abelardo, e este, sem pestanejar, pegou sua amada e levou para longe daquele algoz:
Não muito tempo depois, a mocinha verificou que estava grávida, e logo me escreveu a respeito disso com a maior alegria, querendo saber o que eu próprio resolvia sobre o que devia ser feito. Assim, certa noite, enquanto o seu tio estava ausente, conforme combináramos, eu a tirei às escondidas da casa do tio e a conduzi sem demora para minha terra natal, onde ficou a viver junto com a minha irmã até quando deu à luz um filho que se chamou Astrolábio. (ABELARDO, 1984, p. 264).
Rocha (1996) nos ensina que Heloísa permaneceria na casa da irmã do filósofo de prenome Denise até ser encontrada uma solução para o caso. Salienta o autor ainda que a presença de Heloísa na pequena comunidade causou um alvoroço da população, desacostumada com uma mulher tão culta.
Ela chegou vestida de religiosa, esperando um filho de um clérigo famoso e ilustre filho da região. Para o imaginário daquela gente simples, e na maioria inculta, Heloísa certamente tinha dons extraordinários e uma ligação especial com os duendes e demônios. (ROCHA, 1996, p. 241).
Rémusat relembra a passagem de Heloísa pelo local:
Heloísa talvez andou por estas plagas;
quando dos olhos dos ciumentos, escondendo sua estadia,
nos muros do Pallet, à luz veio dar
um filho querido, e infeliz penhor
dos seus prazeres furtivos, e do seu puro amor.
Talvez, neste reduto selvagem
sozinha, mais de uma vez, ela veio suspirar
e saborear livremente a doçura do chorar.
Talvez sentada nesta pedra,
ela sonhava com sua desgraça
aqui, quero eu também sonhar e planificar meu coração com a doce lembrança de Heloísa. (apud ROCHA, 1996, p. 241).
Abelardo brilhava no céu de Heloísa como uma grande estrela. Nota-se que o filho viria a se chamar Astrolábio, ou seja, o instrumento no qual se determina a posição dos astros ou algo caído dos astros (ex astris lapsus). Aquele filho, fruto da desmedida de uma paixão, teria caído do céu para medir a posição do astro Abelardo na posição da vida de Heloísa (ROCHA, 1996).
Por outro lado, Fulberto, o cônego traído, nas palavras do próprio Abelardo, “ficou quase enlouquecido” (quase in insaniam conversus), com uma sensação de revolta, ódio, dor e vergonha. (ROCHA, 1996). Em seus relatos:
O tio dela, nesse ínterim, após a sua fuga, quase ficou louco, e ninguém poderia avaliar, exceto se passasse pela mesma experiência, quando ele gemeu de dor e quanta vergonha sentiu. (ABELARDO, 1984, p. 264).
Para aplacar a dor de Fulberto, Abelardo, compadecido com a dor do cônego, resolveu casar com Heloísa, porém, pediu como condição que a cerimônia fosse secreta.
E para que eu ainda mais o apaziguasse de modo a lhe ultrapassar as esperanças, ofereci-me para lhe dar uma satisfação, unindo-me em matrimônio com aquela que eu seduzira, desde que isso fosse mantido em segredo, a fim de que minha reputação não ficasse prejudicada. Ele concordou e estabeleceu comigo a concórdia que eu solicitava, empenhando a sua palavra e a de seus amigos selada com beijos, a fim de me atraiçoar mais facilmente. (ABELARDO, 1984, p. 265).
Esta decisão foi tomada pelo fato de que Abelardo desejava contornar a situação, desculpar-se com Fulberto, agradar a Heloísa, mas não perder o seu posto de Diretor Eclesiástico. Heloísa com certeza escolheria somente Abelardo, pois Abelardo era a vida de Heloísa, porém, Heloísa não era a única razão de viver de Abelardo, e por isso, o casamento em segredo. “Heloísa podia ser amada apaixonadamente por Abelardo, como de fato o foi, mas não representava o centro dos seus interesses, nem muito menos o sentido de sua vida” (ROCHA, 1996, p. 249).
Abelardo partiu então para sua terra natal para contar as boas novas para Heloísa. Ela, porém não acreditava no perdão de Fulberto, pois era conhecedora de que aquela atitude não lhe aplacaria sua ira. Além do que, em virtude de seu amor por Abelardo, ela se recusava a querer ser a causa de sua degradação uma vez que estava convicta de que “o casamento não só acabaria com o prestígio de Abelardo, mas também seria, para os dois, causa de humilhação e de desgraça” (et se et me pariter humiliaret) (ROCHA, 1996, p. 252).
Na narração do filósofo:
E ademais, que punição o mundo deveria exigir para ela, se ela lhe arrebatava tão grande luzeiro? Quantas maldições, quantos prejuízos para a Igreja, quantas lágrimas dos filósofos seguir-se-iam desse matrimônio! Quão indecoroso e lamentável seria ver que um homem como eu, que a natureza criara para todos, me dedicava a uma só mulher e me sujeitava a tanta indignidade! Ela abominava veementemente esse matrimônio que por todos os motivos seria ignominioso e pesado para mim. Ela me debuxava a minha infâmia e igualmente as dificuldades do matrimônio que o apóstolo decerto nos exorta a evitar, quando diz: “ Estás livre de mulher? Não procures mulher. Mas se recebes mulher em casamento, não pecas, e se a virgem se casar, não pecará. Todavia, terão as tribulações da carne. Eu, porém, quisera poupar-vos, etc.” E ainda: “Desejo que fiqueis livre de toda preocupação”. (1 Coríntios, 7,27-28,32.) – (ABELARDO, 1984, p. 265).
Segundo os ensinamentos de Rocha (1996, p. 253), ainda sob o turbilhão de emoções que acometia o casal, Heloísa continua a sua labuta, no intuito de convencer o seu amado de que o matrimônio seria um erro. Apela aos conselhos dos filósofos lembrando-se de Cícero que dizia que “não podia consagrar-se igualmente a uma mulher e a filosofia (nom posse se et uxort et philosophias operam pariter dare)”, e de forma ingênua afirma também a imcompatibilidade de um filósofo dividir o seu tempo com os afazeres domésticos:
Quem, pergunta Heloísa, dedicando-se às meditações sagradas ou filosóficas poderia suportar o choro das crianças? (pueriles vagitus), as cantigas de ninar das babás (nutricum naenias) e a multidão barulhenta dos familiares, tanto homens quanto mulheres? Quem poderia suportar as freqüentes e desprezíveis sujeiras das crianças? (illas parvulorum sordes assíduas tolerare). Os ricos podem, com relativa facilidade, enfrentar estes obstáculos, porque possuem grandes palácios com várias repartições, nas quais se refugiam, bem como um grande número de empregados domésticos. Mas, os filósofos não tem a condição financeira dos ricos, e os que se dedicam às riquezas ou se envolvem aos negócios profanos, não tem tempo para os deveres sagrados ou filosóficos. Por esta razão, Sêneca recomendava aos filósofos que tudo que pusessem de lado, a fim de se dedicarem a tarefa de filosofar, para a qual nenhum tempo é suficientemente longo (...) (ROCHA, 1996, p. 253).
Abelardo, não obstante aos apelos de sua amada, continuou inabalável, pois “tentando-me convencer ou dissuadir-me com esses e semelhantes argumentos, como não conseguisse dobrar a minha loucura e como não tolerasse ofender-me” (ABELARDO1984, p. 268), Heloísa, parecendo render-se face á escassez final de seus argumentos, “ ela suspirou profundamente e, a derramar em lágrimas, encerrou a sua peroração com o seguinte desfecho (ABELARDO, 1984, p. 268)”:
Uma só coisa finalmente resta (Unum ad ultimum restat) que, em nossa mútua perdição (in perditione duorum), não suceda uma dor menor (minor non succedat dolot) do que o amor que a precedeu (quam praecessit amor). (ROCHA, 1996, p. 256)
2.3 O casamento secreto, a ira de Fulberto e a terrível castração de Abelardo
Rocha em sua obra (1996), e na própria escrita de Abelardo (História Calamitatum, 1984) nos mostram que em continuidade ao ocorrido, o casal deixa Astrolábio com a irmã do filósofo (Denise), e na calada da noite, na cidade de Paris, formalizam sua união tendo como testemunhas um minguado de pessoas. Rocha, compadecido com Heloísa, assim observa:
Penso particularmente em Heloísa. No momento em que ela consentiu em dizer sim ao que não queria, teve início para ela uma vida de solidão, revolta e submissão que se prolongaria pelo resto de seus dias. (1996, p. 256).
Após o ocorrido, o casal raramente se encontrava, e quando assim ocorria, era necessário dissimular o ato para que nada fosse percebido. Fulberto, juntamente com os familiares, para acalmar o dissabor da mácula que teria acometido toda a casta, deu início a divulgação de que o casamento teria sido se realizado de forma secreta, e deste modo, violado o que teria restado combinado entre Abelardo e o cônego. Esta atitude do tio enfurece Heloísa que passa a investir contra ele, dizendo que não teria ocorrido nenhum casamento, e amaldiçoando-o “jurava que isso não passava de refinada mentira. Por isso, Fulberto, profundamente exasperado, impunha-lhe repetidos ultrages” (ABELARDO, 1994, p. 269), passando a maltratá-la com relativa constância.
Abelardo temia que a fama de ser o maior filósofo de seu tempo e que sua ligação eclesiástica fosse abalada pela paixão á Heloísa, e por isso, nada fez para assumir o seu amor. Naquela época, os quadros clericais não viam a paixão com bons olhos, enxergavam apenas como uma explosão do próprio instinto sexual, que de uma forma incontrolada, levavam, homem e mulher á luxúria, disfarçada da nomenclatura amor. Em outras palavras, uma paixão avassaladora “significava a renúncia aos valores eternos do espírito, em prol dos prazeres efêmeros da carne” (ROCHA, 1996, p. 258). Neste contexto, “o importante não era ser feliz, mas ser fiel, por mais vazia e morta que pudesse ser esta felicidade” (ROCHA, 1996, p. 258), e desta feita, o filósofo toma Heloísa e a conduz até a Abadia de Argenteuil, fazendo novamente a sua vontade, pois este ato desmentiria Fulberto sobre a cerimônia, já que Heloísa tornar-se-ia noviça.
Quando me interei do que acontecia, enviei-a para certa abadia de monjas, perto de Paris, chamada Argenteuil, onde ela outrora, quando menina, fora educada e instruída. Fiz preparar para ela o hábito religioso conveniente á vida monástica e com ele a revesti, exceto o véu. (ABELARDO, 1984, p. 269).
Rocha (1996, p. 259) nos informa que a estadia de Heloísa na citada Abadia fora ato proposital, pois este lugar era subordinado a Abadia de Sant-Denis, que por conseqüência, era a Abadia Real, e Abelardo possuía amigos poderosos junto ao Rei. Deste modo, o lugar era providencial, e Abelardo poderia visitá-la com a freqüência que desejasse e os seus atos restariam no mais absoluto sigilo. Assim, protegia Heloísa da fúria de Fulberto, e mantinha sua reputação inabalada.
Fulberto, inconformado com as atitudes de Abelardo, maquinou a vingança perfeita.
Tendo ouvido o que se passara, o tio dela e seus parentes ou cúmplices acharam que já zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçar-me dela facilmente.
Neste ínterim, Fulberto se deixando dominar por uma incontinente paixão de violência, e assumindo a figura de um juiz implacável e impiedoso, contrata dois bandidos que tinham como profissão a de castrar porcos, e, dando propina a um serviçal de Abelardo, adentraram sua residência protegidos pelo manto da noite, e castraram o sedutor de sua sobrinha (ROCHA, 1996).
Donde profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, e de que o mundo tomou conhecimento com o maior espanto, isto é, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia perpetrado a façanha que eles lamentavam. Imediatamente depois disso, eles fugiram e dois deles, que puderam ser presos, foram privados dos olhos e dos órgãos sexuais sendo um deles o meu servidor já mencionado que, enquanto permanecia comigo a meu serviço, foi levado á traição pela cobiça. (ABELARDO, 1996, p. 269).
Fuberto por sua vez, como castigo pelo ato trágico, teve seus bens confiscados e foi banido de Paris.
Abelardo, porém, no amanhecer daquele dia, foi visitado pelos clérigos e por seus alunos, e todos estavam estupefatos com o que viram:
Depois que amanheceu, estando a cidade inteira reunida em torno de mim, seria difícil, ou melhor, impossível exprimir o espanto, a estupefação que deles se apoderou, as lamentações a que se entregavam, os gritos com que me afligiram e o pranto com que me perturbaram. Na verdade, foram principalmente os clérigos e, de modo especial, os meus alunos que me torturaram com os seus intoleráveis lamentos e queixumes, de tal modo que eu me via muito mais incomodado pela sua compaixão do que pelo sofrimento da ferida; sentia mais a vergonha do que a mutilação e era mais atormentado pela infâmia do que pela dor. (ABELARDO, 1984, p. 269).
Diante da dor de Abelardo, o monge Fulco, prior de Deuil, escreve-o uma carta de consolação tentando dissuadi-lo do sentimento de indignação e de revolta pelos acontecimentos, enfatizando, porém que o filósofo deixou-se envaidecer com os dons e qualidades que possuía, e que ele foi:
De tal modo dominado pela soberba e pela vanglória que, segundo o que os outros dizem (ut aiunt), julgava inferiores quase todos aqueles que, antes dele, se dedicaram á filosofia, inclusive as pessoas que eram respeitadas pelo seu alto nível de espiritualidade e de sabedoria (et te jactantiae ostentandi, omnes fere alios, etiam sanctos, qui ante te sapientiae operam dederant inferiores te existimabas). Era o que dele diziam, aqueles que freqüentavam suas aulas (qui te frequentius audiebants).(ROCHA, 1996, p. 264).
Dizia o prior que a onipotência de Deus teria feito com que o infortúnio acometido á Abelardo teria servido como castigo para que o filósofo parasse de ter um alto conceito de si. Abelardo realmente acreditava que Deus jogou toda a sua ira pelos caminhos tortuosos que seguira:
Que outro caminho restava para mim? Como eu enfrentaria o público ao ser apontado a dedo por todos, ao ser denegrido por todas as línguas e a ser dado a todos em espetáculo monstruoso? E o que também não pouco concorrido para a minha confusão era que, de acordo com a letra da lei, que mata, fosse tão grande junto a Deus a abominação dos eunucos, de tal modo que os homens reduzidos a esse estado pela amputação ou pelo esmagamento dos órgãos genitais eram proibidos de ingressar numa igreja por serem imundos e fétidos, e que os próprios animais nessa condição eram absolutamente rejeitados num sacrifício (Levítico, 22,24) (ABELARDO, 1984, p. 270).
A derrocada de Abelardo tem início nesta fase da história e lhe perseguirá até o final de seus dias. Segundo Russel (1967, p. 144) Roscelino, em uma carta á Abelardo fazendo referências á Trindade, o diminui e zomba de sua castração. Parece que verdadeiramente o que o priori havia lhe confidenciado era realmente o que lhe previa o futuro, e os seus algozes passariam a tripudiar sobre sua carcaça. O fato é que o filósofo não se continha face ao acontecido, e ele, que tentava á tempos construir uma carreira como mestre eclesiástico, agora se sentia inferiorizado, pois;
Não ofereceis ao Senhor um animal cujos testículos tenham sido machucados, esmagados, arrancados ou cortados. Ou ainda, “o eunuco, cujos testículos foram esmagados ou cortado o membro viril, não será admitido na assembléia do senhor (Deuteronômio, 22, 1). (ABELARDO, 1984, p. 270).
Abelardo estava transtornado. Contava com a complacência de seus discípulos e conhecidos clérigos, mas a sua momentânea dependência e a compaixão de todos á sua volta não lhe deixavam esquecer-se de sua castração.
Encontrando-me nesse mísero estado de abatimento, confesso que foi mais a confusão provocada pela vergonha do que a devoção suscitada pela conversão que me impeliu para o refúgio de um claustro monástico. (ABELARDO, 1984, p. 270).
Os religiosos então o convenceram a dedicar-se aos estudos da Igreja e o aconselharam a dirigir-se á Real Abadia de São Dionísio, onde acabaria por transformar-se em monge beneditino, enquanto Heloísa tornar-se-ia freira em Arbenteuil. Ouçamos suas palavras:
Assim, ambos recebemos, ao mesmo tempo, o sagrado hábito, eu na abadia de São Dionísio, e ela, no mosteiro de Argenteuil, já mencionado. (ABELARDO, 1984, p. 270).
Envergonhado, Abelardo decidiu sair de cena permanentemente. Sua intenção era dedicação exclusiva à vida monástica. Mas, como não poderia deixar de ocorrer, entrou novamente em conflitos com os monges da São Dionísio, pois:
Aquela abadia á qual eu me recolhera apresentava um estilo de vida muito profano e vergonhoso, e o seu próprio abade, quanto mais se avantajava aos outros pela dignidade, tanto mais era conhecido pela vida dissoluta e pela má reputação. Como eu o denunciasse com freqüência e veementemente, tanto em particular como em público, ás suas intoleráveis torpezas, tornei-me odioso e importuno a todos, acima da medida. (ABELARDO, 1984, p. 271).
A reação de Abelardo parecia pontual, e como exaustivamente explanado anteriormente, mesmo sentindo-se mutilado, ainda possuía a personalidade narcisista de outrora, e logo entrou em atrito com os diretores do local. Em conseqüência, retirou-se “para uma casinhola a fim de consagrar-me de forma costumeira ao ensino”. (ABELARDO, 1984, p. 271). Neste ínterim, novamente suas aulas ganharam fama e o mestre foi procurado por muitos estudantes em busca de seus ensinamentos sobre filosofia:
Na verdade, ocorreu uma tal multidão de estudantes às minhas aulas que nem o lugar lhe permitia acomodação nem a terra bastava para os alimentos. Ali, o que era mais conveniente ao meu estado de vida, eu me aplicava grandemente ao estudo da ciência sagrada mas sem ter abandonado totalmente o ensino das artes seculares com as quais eu estivera mais habituado e que eles reclamavam bastante de mim. Fiz das artes liberais uma espécie de anzol com o qual, sob o engodo do sabor filosófico, eu os atraía ao estudo da verdadeira filosofia, tal como a História Eclesiástica, de Eusébio, recorda que costumava fazer Orígenes, o maior dos filósofos cristãos (ABELARDO, 1984, p. 271).
Este afastamento da abadia não foi suficiente, pois Abelardo acabou entrando novamente em atritos com os religiosos da região que, tomando conhecimento de seus ensinamentos, não concordavam com seus estudos sobre livros profanos. Ato contínuo, deram início a uma campanha pleiteando que Abelardo fosse proibido de ensinar.
Queriam desse modo que me fossem proibido todo o exercício do ensino e, para conseguir isso, atiçavam incessantemente os bispos, os arcebispos, os abades e todas as pessoas de nome, na vida religiosa ao seu alcance. (ABELARDO, 1984, p. 272).
Neste ínterim, Abelardo ainda criticou a lenda do Santo padroeiro da abadia. Ouçamos o mestre:
Ora aconteceu que eu me aplicasse, de início a discorrer sobre o próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas pela razão humana, e que eu compusesse para os meus alunos um tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua a prolação de palavras em a compreensão das mesmas, e que não se pode crer naquilo que antes não se entendeu, e que é ridículo alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que ensina podem compreender com o intelecto O próprio Senhor estigmatizou-os como cegos a servirem de guias de cegos (Mateus, 15, 14) (ABELARDO, 1984, p. 272).
Tal atitude levou Abelardo a ser transferido de localidade e por várias vezes inquirido para explicar o que havia escrito no seu livro e de que se tratavam os seus ensinamentos.
2.5 Os três Deuses de Abelardo e o Concílio em Soisson
Após a morte dos antigos inimigos de Abelardo, os discípulos daqueles deram início a uma feroz investida à doutrina sobre a Santíssima Trindade, defendida bravamente pelo mestre. Com o crescer dos adversários de Abelardo, ganhou força a convocação de um Concílio em 1.121, que seria presidido por Conão, então bispo de Preneste em Soisson.
Vai daí e os meus rivais profundamente excitados reuniram contra mim um concílio, destacando-se principalmente entre eles aqueles dois velhos conspiradores, a saber, Alberico e Lotulfo, que depois da morte dos seus e meus mestres, Guilherme e Anselmo, pretendiam reinar sozinhos depois deles e também suceder-lhes como seus herdeiros. Como ambos dirigiam escola em Rheims, através das suas contínuas sugestões concitaram contra mim o seu arcebispo Raul para que, de concerto com Conão, bispo de Preneste, e que então desempenhava a função de legado na Gália convocasse uma certa assembléia sob o nome de concílio, na cidade de Soissons e me fizesse vir e trazer comigo aquele tratado que compusera sobre a Trindade. (ABELARDO, 1984, p. 272/273).
Os inimigos de Abelardo, antes mesmo de sua apresentação, continuavam a acicatar os clérigos contra ele. Ad litteram:
Antes, porém, que eu ali chegasse, aqueles meus dois citados rivais haviam me difamado de tal maneira junto ao clero e ao povo que no primeiro dia da minha chegada quase me lapidaram e aos poucos discípulos que me acompanharam, dizendo que eu havia ensinado e escrito que há três deuses, tal como lhe fora inculcado. (ABELARDO, 1984, p. 273).
Abelardo chega ao local indicado, entrega o tão comentado livro e se surpreende com os seus julgadores:
Logo que cheguei a cidade, fui ter com o legado e lhe entreguei o meu livro para que ele o examinasse e o julgasse, e declarei que estava pronto para fazer correções ou dar satisfação, se eu tivesse escrito ou dito alguma coisa que discrepasse da fé católica. Todavia, ele imediatamente me ordenou que levasse o livro ao arcebispo e aos meus dois rivais para que aqueles mesmos que me acusavam julgassem a questão, de sorte que se cumprisse em mim, também a sentença da Escritura: Meus inimigos são meus juízes (Deuteronômio, 32, 31) (ABELARDO, 1984, p. 273).
Apesar dos vários algozes, Abelardo ainda era influente. Em sua narrativa, nos apresenta o bispo de Chartres de prenome Godofredo, que em suas palavras “se destacava dos demais bispos pela fama de santidade e pela dignidade de sua sé “ (1984, p. 274). Referido religioso, justo como parecia ser, defendeu Abelardo, em um primeiro momento, clamando que a ele fosse dada voz, e em um segundo momento, após a discordância dos inimigos de Abelardo, que o próprio concílio fosse alargado em número de julgadores, fato este aceito a princípio pelo legado, que subseqüentemente foi convencido a mudar o seu voto, juntamente com o arcebispo.
(...) eles que não confiavam na justiça da sua causa, convenceram o arcebispo de que seria muito vergonhoso para ele se essa causa fosse transferida para outro tribunal, e que seria perigoso que eu fosse deste modo absolvido. E imediatamente foram ter com o legado e fizeram com que ele alterasse a sua decisão, e contra a sua vontade induziram-no a condenar o meu livro sem nenhuma investigação e a queimá-lo imediatamente à vista de todos e a encerrar-me num outro mosteiro em clausura perpétua.
2.6 A queima do próprio livro e a clausura do paladino
Pedro Abelardo nos mostra em História Calamitatum que a causa de sua condenação seria a pouca instrução do legado, que constantemente recebia conselhos do arcebispo, e este, por sua vez, ouvia demasiadamente, os conselhos de seus inimigos. Abelardo, por outro lado, felizmente era consolado pelo bispo de Châlons, quando, “e assim, a chorar, ele próprio consolou-me, quando pôde, a mim que também chorava” (ABELARDO, 1984, p. 276)
Deste modo, Abelardo não foi condenado de maneira formal pelo Concílio por suas doutrinas, mas, por outro lado, foi obrigado a queimar a sua obra sobre a Trindade e a recitar o Credo de Atanásio, sendo humilhado publicamente. Abelardo (1984, p. 277/278) assim relata a tristeza deste episódio:
Depois disso, convocado para o concílio, compareci imediatamente e, sem nenhum exame ou discussão obrigaram-me a lançar ao fogo, com minha própria mão, o meu livro, que assim foi queimado. (...) Todavia, quando eu me levantei para professar e expor a minha fé, a fim de exprimir o que eu sentia, com palavras próprias, meus adversários disseram que eu não precisava de outra coisa senão recitar o símbolo de Atanásio, o que qualquer criança poderia fazer igualmente. E para que eu não alegasse uma desculpa por ignorância, como se eu não estivesse acostumado com aquelas palavras, fizeram trazer o texto para que eu o lesse.
E Abelardo, assim descreveu o seu sentimento de humilhação e vergonha:
Eu o fiz, em meio a suspiros, soluços e lágrimas, do modo que me foi possível. Em seguida, entregue, como se fosse um réu e um convicto, ao abade de São Medardo, que estava presente, fui arrastado para o seu claustro como para um cárcere, e imediatamente, o concílio foi dissolvido. (ABELARDO, 1984, p. 278).
Na abadia de Medardo, Abelardo teve um bom tratamento no início de sua estadia, embora ainda encontrar-se muito envergonhado com a privação de sua liberdade. Esta passagem resume o seu ardor de espírito:
Ó Deus que julgas a equidade, com quanto amargor da alma e com quanta amargura do coração eu então te censurava, como louco, e te acusava, cheio de cólera, repetindo freqüentemente a queixa de Santo Antão: “Bom Jesus, onde estavas?” O que eu pude sentir então, a saber, a dor que me atormentou, a vergonha que me confundiu, a perturbação do desespero, eu não posso exprimir agora. Eu comparava com aquelas coisas que outrora eu padecera no corpo tudo quanto eu agora suportava, e julgava-me o mais miserável de todos os homens. (ABELARDO, 1984, p. 278).
Em História Calamitatum, Abelardo narra que a notícia do julgamento do Concílio, após se espalhar pela vizinhança, passou a ser mau visto pela sociedade daquela época, e os próprios algozes do filósofo, na tentativa de esquivar-se de seu comprometimento, deram início á negativas sobre os aconselhamentos ocorridos. O próprio legado tentou se eximir da condenação, e ato contínuo, tirou Abelardo da abadia de Medardo e o enviou de volta ao monastério de Dionísio:
Ele foi tocado pelo arrependimento incontinenti e, após alguns dias, quando já dera satisfação à inveja deles por algum tempo contra a sua vontade, tirou-me desse mosteiro estranho e enviou-me para o seu próprio, onde, como lembrei acima, cada monge era hostil à minha pessoa desde outrora, quando a sua vida vergonhosa e os seus hábitos desonestos que tornaram absolutamente suspeitos, e eles acharam que seria muito difícil suportar-me, já que eu os censurava tão severamente.
Com o passar dos dias, Abelardo novamente teve um atrito com os monges, pois ao acaso, descobriu no texto de Beda quando do Comentário dos Atos dos Apóstolos, que Dionísio, (o Areopagita), teria sido bispo de Corinto e não de Atenas. Tal descobrimento trouxe a discórdia á abadia, pois os membros se “... vangloriavam de que o seu Dionísio (fundador de monastério) era o Areopagita e que a história dele indicava haver sido bispo de Atenas” (ABELARDO, 1984, p. 279). Os monges acusaram Beda de mentiroso, e ficaram enfurecidos com Abelardo porque este defendia a autoridade de Beda, dado que seus escritos eram seguidos por todas as igrejas latinas.
Então quando um deles me procurou com insistência e com perguntas importunas para que eu dissesse o que pensava sobre essa contenda entre Beda e Hilduíno, respondi que preferia a autoridade de Beda, cujos escritos são seguidos por todas as Igrejas latinas.
Abelardo foi ameaçado e temeroso fugiu do local, refugiando-se num local deserto nas proximidades de Troyes.
Os monges ficaram enfurecidos porque lhes parecia que Abelardo queria tirar-lhes a glória, negando que o Areopagita fosse o seu patrono. (...) Abelardo conseguiu evadir-se secretamente durante a noite, indo refugiar-se numa terra do Conde Tebaldo, situada na vizinhança, e onde Abelardo já havia ocupado uma casinhola anteriormente, que lhe servira de cela. (ABELARDO, 1984, p. 279).
O Conde possuía simpatia por Abelardo. Após, refugiou-se no Mosteiro de Troyes, onde o receberam muito bem. Ato contínuo apelou para o Rei com o auxílio de alguns amigos que mantinham certa influência na Corte e obteve permissão para, em um local a sua escolha, se estabelecer. Então, ganhou de amigos um terreno e novamente, começou a receber inúmeros alunos, retomando a fama de antanho. (ABELARDO, 1984, p. 280).
Começaram então a acorrer ao deserto discípulos provenientes das cidades e dos castelos, que vinham residir em cabanas que construíam com as suas mãos, comendo ervas silvestres e pão grosseiro, dormindo na palha e usando montículos de terra por mesas.(ABELARDO, 1984, p. 280).
Abelardo então funda uma nova escola, e os discípulos cuidavam de sua alimentação, sua roupa, cultivavam o campo, para que o mestre se dedicasse apenas aos seus estudos. Neste ínterim, reformaram o oratório e denominaram o lugar de Paráclito.
Porém, a implacável perseguição á Abelardo ainda continuaria, mesmo após todos os percalços sofridos por ele. Em História Calamitatum ele narra que naquele período, São Norberto e São Bernardo, incitados por seus velhos algozes deram início a ataques implacáveis, levando o filósofo a perder importantes amigos (ABELARDO, 1984, p. 280).
Após, não obstante o desânimo de Abelardo que pensava inclusive em uma mudança de país, o mestre, em 1215 foi escolhido para assumir o cargo de abade, na abadia de Sait-Gildas-de-Rhuis, situada perto de Vannes, na costa da Bretanha. Novamente se viu perseguido, pois era constantemente incomodado pelos monges da instituição e fora dela era atacado pelo senhor feudal que dominava a região.
Abelardo acabou aceitando essa dignidade, como diz, para evitar os vexames de tantas perseguições, e foi viver numa terra bárbara, de língua desconhecida, população brutal e selvagem, no meio de monges indisciplinados e corrompidos. O senhor Feudal dominava o mosteiro e oprimia-o com impostos exagerados. Abelardo era molestado no interior do mosteiro pelos monges, e fora dele pelo senhor e pelos seus esbirros. (ABELARDO, 1984, p. 281).
Ato contínuo tomou conhecimento que Heloísa teria sofrido perseguição pelo abade de São Dionísio, que reclamava para si a posse da abadia de Argenteuil. Heloísa acabou sendo expulsa e recebeu o abrigo de Abelardo no Oratório de Paráclito, doando aquele local sagrado á Heloísa com a permissão do Papa Inocêncio II e intervenção do bispo daquela diocese de forma perpétua. Abelardo deu início a visitas á Argenteuil, mas logo desistiu, pois os seus algozes deram início de difamações, e então, desistiu em prol á Heloísa.
Os monges de Saitt-Gildas-de-Rhuis, considerando Abelardo muito rígido, tramaram matar-lhe por várias oportunidades, levando-o a abandonar a abadia.
De certa feita, colocaram veneno no cálice com que Abelardo ia celebrar a missa. Doutra vez, quando se achava na casa de seu irmão carnal, conseguiram envenenar-lhe a comida, da qual Abelardo se absteve, mas que o outro monge comeu, morrendo num instante. Os monges chegaram a pagar salteadores para que o emboscassem nas estradas, e uma vez só escapou de uma cilada com auxílio de um dos poderosos guerreiros da região. (ABELARDO, 1984, p. 281).
2.7 Bernardo de Clairvaus e o Concílio de Sens
Abelardo ainda conservou o título de abade, morando em seguida perto de Nantes, e novamente atraiu jovens intelectuais da Europa. Em seqüência, no período que morou em Paris, novamente enfrentou a ira de Bernardo de Clairvaus (1090-1153), devido à sua doutrina, pois Abelardo teria sido um dos primeiros escolásticos a ter dado início a dialética e considerava que era necessário buscar os fundamentos da Fé com base na razão humana.
No longínquo ano de 1139, as idéias revolucionárias de Abelardo foram rejeitadas. Guilherme de Saint-Thierry (1085-1148) destacou 19 proposições consideradas heréticas e Bernardo as remitiu a Roma para a final condenação do filósofo. Implacável perseguidor de outrora, Bernardo, estava horrorizado pela ortodoxia dos ensinamentos de Abelardo e questionou a sua doutrina da Trindade, além de outras, denunciando-lhe aos bispos da França. Abelardo, como sempre o fez, subestimou tal denúncia e solicitou uma reunião, ou seja, um concílio de bispos, no qual Bernardo e ele disputariam suas idéias. Sobre este contexto, ouçamos Russel:
São Bernardo, cuja santidade não bastou para torná-lo inteligente, não conseguiu compreender Abelardo, e levantou acusações injustas contra ele. Afirmou que Abelardo trata a Trindade como um ariano, a graça como um pelagiano, e a pessoa de Cristo como um nestoriano; que se manifesta como um pagão ao esforçar-se por provar que Platão era cristão, e ainda, que destrói o mérito da fé cristã ao afirmar que Deus pode ser Completamente compreendido pela razão humana. (1967, p. 510).
Russell (1967, p. 510) nos ensina que Abelardo nunca teria afirmado que Deus poderia ser completamente compreendido pela razão. O fato é que Abelardo era extremamente combativo, e Bernardo, monge cisterciense e abade de Clairvaus, era um religioso de prodigiosa influência na política eclesiástica daquele tempo. Atacava Abelardo como atacava os antipapas e combatia “a heresia no norte da Itália e no sul da França. Lançando o peso da Ortodoxia sobre filósofos ousados e pregando a segunda cruzada” (RUSSEL, 1967, p. 511).
São Bernardo e seus partidários procuravam a verdade religiosa não na razão, mas na contemplação e na experiência objetiva. Abelardo e Bernardo eram, talvez, igualmente unilaterais. (RUSSEL, 1967, p. 510).
Desta feita, conduzido pela mão pesada de Bernardo de Clairvaus, Abelardo foi condenado em 1140, no concílio de Sens por heresia e obrigado a se manter em silêncio. Na véspera do concílio, realizaram uma reunião de bispos, na qual esteve Bernardo, sem a presença de Abelardo. Nesta reunião, foram selecionadas algumas preposições escritas por Abelardo e ele foi condenado. No outro dia foram lidas as proposições, no concílio, na presença de Abelardo, que não se defendeu, porém manteve sua liberdade. Segundo De Boni, estes foram os motivos que levaram Bernardo a não deixar Abelardo Argumentar:
Recusei (concordar que Abelardo expusesse sua Doutrina), quer porque sou uma criança se comparado com aquele homem habituado a combater desde a juventude, quer porque julguei indigno remeter a fé à discussões de mesquinhos arrazoados humanos desde o momento em que ela se apóia sobre uma verdade segura e firme. (2003, p. 15).
2.8 O fechar de olhos de um gênio
Reale resume com maestria o destino de Abelardo no famigerado Concílio:
No concílio de Sens, em 1140, foram rejeitadas como desvios outras teses suas, relativas á lógica e o papel confiado á rátio na investigação das verdades cristãs. Apelando ao Papa por uma avaliação mais justa, no curso da viagem, cansado e prostrado, se detém em Cluny, onde é recebido benevolamente por Pedro, o Venerável (...) (1990, p. 511).
Abelardo sairia do Concílio novamente enfraquecido. É triste notar que o combativo de outrora finalmente se entregou após tantas batalhas e tantos inimigos. Após Bernardo ter enviado suas escritas para membros da Igreja romana em forma de documento, onde informava todos os passos da famigerada reunião, documento que obviamente chegaria ás mãos do Papa Inocêncio II, tal qual era a intenção de Bernardo. Aquele documento fazia menção e pregava contra erros cometidos por Pedro Abelardo. Bernardo relatava com detalhes os supostos erros, considerando que somente a fé deveria ser aceita como verdade. Segundo o magistério de De Boni:
Bernardo também havia manobrado os cordéis na corte pontifícia, e o papa, instado por ele e sem ouvir a outra parte, confirmou as condenações de Sens, e ainda ordenou a queima da obra de Abelardo e seu confinamento perpétuo em um mosteiro.(2003, p. 15)
Abelardo juntou suas últimas forças e decidiu ir á Roma, apelar ao Papa Inocêncio. Lá ele finalmente poderia ter voz e contar sua versão dos fatos. Porém, No caminho, adoece em Cluny e recebe cuidados de Pedro, o Venerável (1122-1155) que se emociona com sua história de vida e seus objetivos religiosos. Segundo os ensinamentos de De Boni, Abelardo, com a ajuda de Pedro (o Venerável), que confeccionaria e dirigiria ao Santo Padre “uma das mais nobres e mais políticas cartas da Idade Média, conseguindo a absolvição do velho mestre; antes o reconciliara com Bernardo que, pelos acontecimentos do sínodo, estava sendo criticado pelos próprios amigos” (2003, p. 15/16).
Parece que o mestre, no final de sua existência, percebe finalmente que, ter exercido a teologia de forma lógica, diferindo dos místicos de sua época como o próprio Bernardo, fizeram dele uma figura odiada por muitos:
Ele mesmo, aliás, no momento cruciante da condenação, no fim da vida, percebe este fato ao escrever a Heloísa: odiosum me mundo reddidit lógica (a lógica me tornou odiado pelo mundo). (DE BONI, 2003, p. 38)
Abelardo passou os últimos anos de sua vida, na cidade Cluny, tornou-se monge e foi mestre do monastério de Cluny.
Antes de sua morte, Abelardo pediria a Heloísa para ser enterrado em Paráclito. Heloísa assim respondia a carta do paladino:
E como, com tua morte, perderei a razão do meu viver, jamais poderei viver se desapareceres... A menção de tua morte é, de certo modo, uma morte para mim ... O que me restaria esperar se te perdesse? Ou qual a razão de permanecer nesta peregrinação onde nenhum conforto tenho senão o teu? E em ti nenhuma outra alegria senão o fato de que vives. (ROCHA, 1996, p. 236).
Abelardo veio a falecer em 21.04.1942 em Chalons-sur-Saône. Em novembro do mesmo ano, Pedro o Venerável mandou transladar os seus restos mortais para a abadia de Paráclito, atendendo portanto o pedido do velho mestre (DE BONI, 2003. P. 16). Então, Pedro ditou o seguinte epitáfio para o túmulo de Abelardo:
Sócrates da França, sumo Platão do Ocidente. Moderno Aristóteles, êmulo ou maior dos dialéticos de todos os tempos; príncipe dos estudos, famoso no mundo; gênio multiforme, penetrante e agudo; tudo superava com o poder da razão e a arte da palavra. Esse era Abelardo. (REALE, 1990, p. 511).
Heloísa morreria em 06 de maio de 1164, e por seu desejo, seria sepultada também em Paráclito, ao lado de seu grande e único amor:
Passados 22 anos, em 06.05. 1164, Heloísa é sepultada ao lado de seu grande amor. (DE BONI, 2003, p. 16).
E quando, vinte anos depois, Heloísa morreu, por sua vontade, foi sepultada na mesma tumba do seu venerado Abelardo. (REALE, 1990, p. 511).
Em 1817, os restos dele e de Heloisa foram trasladados ao Cemitério de Pére La Chaise, em Paris.
Eis os últimos escritos da obra do grande mestre:
Caríssimo irmão em Cristo e íntimo companheiro em vida religiosa, esta é a história das minhas calamidades, que venho sofrendo continuamente quase desde o berço. Penso que já é suficiente o que já escrevi em vista da tua desolação e da injustiça que sofreste, para que julgues, como declarei no início de minha carta, que a tua provocação é nula ou ínfima em comparação das minhas, e para que a suportes mais pacientemente, considerando-a pequena ... E assim, encorajados por esses ensinamentos e por esses exemplos, suportemos mais tranquilamente estas provações quanto mais injustas elas são. Não duvidemos de que, se elas não servem para nosso mérito, pelo menos concorrem para a nossa purificação, e visto que todas as coisas ocorrem por disposição divina, que cada um dos fiéis se console com este pensamento de que a suprema bondade de Deus não permite jamais que nada aconteça desordenadamente, e que todas as coisas que se fazem de mal Ele próprio se encarrega de levar a um ótimo fim ... (ABELARDO, 1984, p. 282).
Considerações Finais
O que dizer de Pedro Abelardo? Que ele foi um dos mais importantes intelectuais cristãos do século XII é fato notório. Que a filosofia adentrou em sua veia desde a mais tenra idade levando-o a se tornar o maior expoente de seu tempo, também o faz uma figura marcante. Ter ele estudado com os grandes mestres de seu tempo como Roscelino, Champeaux e Laon, e ainda, transformar-se em professor titular da renomada escola catedralícia de Nôtre-Dame ainda na juventude, todos os textos reproduzem.
Porém, os estudos de sua biografia apontam que o diferencial deste estupendo filósofo eclesiástico face aos demais que trilharam o mesmo caminho e compuseram objetivos semelhantes foi o fato de amar, ser compreendido no amor e divulgar esta tumultuada relação. Afinal, Abelardo, não obstante sua inteligência, sua capacidade dialética e seu preparo para os constantes debates, sem Heloísa, seria colocado no mesmo patamar dos demais pensadores universais. Não é a toa que sua vida ficou irremediavelmente marcada pelo seu encontro com Heloísa, que por ironia do destino, possuía vinte e dois anos a menos do que ele. O casamento em segredo em 1117, a separação forçada um ano depois, a entrada de ambos na vida monástica, onde passaram o resto das suas vidas, as cartas trocadas pelo casal durante toda a existência, a castração de Abelardo pelo tio da amada e os corpos eternamente juntos após a morte de Abelardo (1142) e Heloísa (1164) são factóides que dão um tempero todo especial a vida do gênio.
O amor trágico e proibido de Abelardo por Heloísa faz com que o leitor torça por ambos, embora a figura de um mestre eclesiástico não combinar com a paixão avassaladora do casal. A mutilação do filósofo surpreende o mais pessimista dos que contemplam o seu caminhar, e enfim, após a aberração do ato, o que poderia sobressair do romance a não ser a vida contemplativa e o amor casto que o paladino passou a dedicar á Heloísa, através das mais célebres "Cartas" de Abelardo para sua amada num período em que o filósofo encontrava-se na a abadia de Saint-Denis e Heloísa no convento de Argenteuil.
Abelardo foi o grande mestre da dialética do seu tempo, e inquieto por natureza, obviamente entrou em choque com a concepção educacional daquela época que apregoava somente a religião e desprezava o uso da razão na procura do conhecimento.
Bernardo de Clairvaux, que apregoava a busca da salvação apenas baseada na fé em Deus foi o seu maior algoz, pois a doutrina do paladino era completamente revolta aos objetivos da Igreja.
As obras e desafios do filósofo lhe renderam dois concílios, com a condenação de ser humilhado e forçado a queimar sua obra e a ser proibido de lecionar e falar pelo resto de sua vida.
As Calamidades sofridas e narradas por Abelardo, em um primeiro momento, mostram-se quase que merecidas, pela arrogância, egocentrismo e narcisismo do paladino em seus combates na juventude, quando, de ataque a ataque, vai derrubando um a um seus opositores e tomando os seus respectivos postos, que por sinal eram posições sempre sonhadas por ele. Mas, após terem decepado seu órgão genital, sua paixão, sua pedagogia, suas obras e sua eloqüência combativa, não há como deixar de se compadecer com o sofrimento de Abelardo, não obstante alguns autores acreditarem que História Calamitatum estar recheada de exageros factuais.
Afinal, o que dizer de Abelardo? Sim, ele teve um papel fundamental no processo educacional na Europa Medieval. Ele enfrentou e questionou a filosofia de seu tempo, tentava fazê-la objetivando formar o ser humano daquele período, mostrando que a razão deveria acompanhar a fé, em uma tentativa de decifrar os mistérios do mundo, expondo o modo dialético de prós e contras de cada questão, para chegar ao conhecimento filosófico final.
Mas, Abelardo fez o que nenhum Filósofo Eclesiástico de todos os tempos fez “amou e foi amado”, e teve a coragem e a grandeza de compartilhar o seu amor com o mundo.
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[i] O presente artigo é parte resumida de meu Termo de Conclusão de Curso realizado em 2011 junto a Faculdade de Educação São Luis de Jaboticabal pelo curso de Pós Graduação Latu Sensu de Filosofia e Educação.
Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (Bolsista CNPq). Desenvolve investigações vinculadas à linha de pesquisa "Diferenças: relações étnico-raciais, de gênero e etária" e participa do grupo de estudos sobre a criança, a infância e a educação infantil: políticas e práticas da diferença vinculado à UFSCar. É também Advogado. O presente artigo é parte modificada de minha Dissertação de Mestrado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Emerson Benedito. Como calar um gênio. Vida e Calamidades de Pedro Abelardo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 ago 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36432/como-calar-um-genio-vida-e-calamidades-de-pedro-abelardo. Acesso em: 23 dez 2024.
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