1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa contribuir para o estudo dos princípios fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, aplicáveis ao instituto da adoção com regramento da escolha do perfil estabelecido pelos postulantes, cuja afronta deve ser combatida pelo Ministério Público.
A opção pelo princípio da dignidade da pessoa humana se deu na decorrência de estudos, pesquisas e principalmente, de observações cotidianas de que a prática da adoção não condiz com realidade existente nos abrigos em todo Brasil.
O instituto da adoção visa inserir o menor no seio de uma nova família que irá lhe proporcionar o bom desenvolvimento, suprindo-lhe na medida do possível todas as suas necessidades, sendo elas de natureza afetiva, psíquica, física ou econômica.
A adoção tem como objetivo trazer os reais benefícios ao menor, levando em consideração os aspectos educacionais, sociais e emocionais, por isso, o interesse dos adultos deverá ficar em segundo plano conforme trataremos no presente trabalho.
Segundo entendimento de Silva Filho (2011), no direito positivo nacional, a adoção é regulamentada pela Lei nº 8.069/90 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, pela Lei nº 10.406/2002 que instituiu o Código Civil e pela Lei nº 12.010/2009 que dispões sobre adoção.
Apesar de o Código Civil 2002 ter sistematizado o instituto da adoção de forma bastante semelhante e estampada na legislação complementar (Lei 8.069/90), não houve nele uma total inclusão dos dispositivos constantes do ECA.
Silva Filho (2011) complementa que com advento da Lei nº 12.010/2009 que dispõe sobre a adoção, unificou-se a legislação em matéria adicional no país, com substancial alteração dos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nos capítulos iniciais, para maior compreensão da problemática, temos a exposição de alguns conceitos básicos, pertinentes à Constituição Federal de 1988 e aos direitos fundamentais. Posteriormente verificamos o instituto da adoção como direito fundamental. Passamos pelo princípio da dignidade humana e na sequência abordamos o instituto da adoção, suas características e suas modalidades.
Por fim abordamos a afetividade e uma possível afronta ao princípio da dignidade humana quando o ordenamento jurídico permite que os pretendentes escolham o perfil, ou seja, as características físicas dos adotados, cuja ação deve ser combatida pelo Ministério Público.
2 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 Os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988
Em seu Título II, a Constituição Federal de 1988, prevê os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. Portanto a classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu cinco espécies ao gênero de direitos e garantias fundamentais: direitos e garantias individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos.
Alexandre de Moraes (2006.p.162), conceitua direitos fundamentais como:
Conjunto institucionalizado de direitos e garantis do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.
Já Silva (1995), diz ser difícil uma conceituação sintética e precisa, principalmente porque a eles são atribuídos como sendo os direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.
Há autores que classificam os Direitos e Garantias Fundamentais em três gerações, seguindo de certa forma a sequência dada pelo lema da Revolução Francesa. A primeira geração, conforme Bonavides (2001), consiste no direito à liberdade, tendo como referência a fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente do século XIX, refere-se à liberdade do indivíduo em relação ao Estado, com a contenção do arbítrio estatal e o respeito aos direitos civis e políticos do cidadão.
Já a segunda geração, consiste na garantia dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos da coletividade, direitos esses que predominaram durante o início do século XX, com o compromisso do Estado de promover o bem estar social.
Por fim, os direitos da terceira geração são aquele s que elevam o interesse da coletividade, traduzindo-se na garantia da paz, na defesa do meio-ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade, sendo esses abarcados pelo princípio da fraternidade, e estando neste inserido e protegido o direito à propriedade, tendo como foco a sua função social.
2.2 O Instituto da Adoção como Direito Fundamental
A Constituição Federal de 1988, em virtude de sua supremacia, torna-se parâmetro de validez das demais normas jurídicas do sistema, não sendo uma norma qualquer, mas a primeira entre todas as demais. Assim, os princípios fundamentais ali registrados possuem efeito vinculante às demais normas infraconstitucionais.
Neste sentido, a Lei 12.010/2009, dá um importante passo no longo caminho a ser percorrido, para dar mais efetividade às garantias constitucionais inerentes à criança e ao adolescente, seguindo a trilha já demarcada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (Lei 8.069/90), assim com este propósito vem ampliando a aplicação de princípios, além de modernizar, organizar e alargar o sistema protetivo.
A convivência familiar é direito que não depende de norma para ser compreendido. Assim quando a natureza não cumpre seu papel, tornando impossível ou desaconselhável a convivência dentro deste ambiente familiar, caberá ao Estado a restauração do equilíbrio, tomando as devidas providências para construção de um ambiente familiar de substituição onde esses menores possam reconstruir os laços civis e afetivos (RIBEIRO, 2010).
A Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009, apesar de receber a codinome de Lei Nacional de Adoção, objetiva o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar à todas as crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. O Estatuto da Criança e do adolescente tem como prioridade manter os menores em sua família natural ou extensa, tendo a adoção como medida excepcional.
Contudo, é notório que a Lei nº 12.010/09 não é isenta de críticas, tendo em vista que é o aperfeiçoamento de uma norma anterior, deixando lacunas que desvia o verdadeiro propósito da adoção.
3 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
A dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto pelo qual todas as regulamentações da vida humana se fundamentam, visando conservar o mínimo necessário para que o ser humano tenha condições básicas de nascer, crescer, desenvolver e viver em sociedade.
Em relação a tal princípio, pode-se dizer ser ele o balizador das condições básicas e essenciais de vivência e sobrevivência do ser humano, devendo ser conservado e protegido conforme previsão legal.
De acordo com Motta (2003), tal princípio está consagrado na Carta Magna como direito fundamental culminando na previsibilidade do direito fundamental da dignidade da pessoa humana. Como já vimos, em 26 de agosto de 1789 foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem, inspirada na Declaração de Independência dos Estados Unidos, prevendo a garantia da dignidade da pessoa humana conforme previsão abaixo:
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão.
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembléia Geral proclama
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade (EUA, 1789).
No entendimento de Moraes (2006), as Declarações de Direitos são um dos traços mais característicos do constitucionalismo, bem como um dos documentos mais significativos para a compreensão dos movimentos que o geraram.
Segundo Garcia (2003) para buscar o significado de dignidade humana, necessário se faz posicionar-se sobre a essência do ser humano, o ser como pessoa.
Embora tratar de um conceito fluido e variável no tempo e no espaço devido ás constantes mudanças de valores que experimenta a humanidade, pode-se conceituar o instituto jurídico da dignidade da pessoa humana como todos os direitos e prerrogativas que garantem ao homem uma existência digna, de acordo com os princípios da igualdade e da liberdade. Assim a dignidade da pessoa humana tem como objetivo garantir as faculdades necessárias á existência digna da pessoa humana.
Kant (1974) ensina que a pessoa não pode ser considerada como coisa, possuindo um valor em si mesmo. Portanto, a dignidade da pessoa humana é um valor em si absoluto e não admite troca ou venda. Está intimamente ligada à noção de honra, respeito à intimidade e à integridade psíquica do ser.
Ainda neste sentido, Garcia (2003, p.41) afirma que:
A compreensão da dignidade da pessoa humana e de seus direitos, no curso da história, tem sido em grande parte o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam horrorizados diante da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos: e o remorso pela torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos.
A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 se torna principio basilar do Estado Democrático de Direito, estando assim disposta:
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Daí a importância de se assegurar à todas as pessoas, inclusive aos adotados, condições básicas que garantam a sua vida, liberdade, integridade física e moral, atribuindo a eles a garantia dos direitos fundamentais e as proteções que lhes são inerentes.
O princípio da dignidade da pessoa humana traduz a repulsa contida na Constituição Federal de 1988 em permitir que o ser humano seja desconsiderado como pessoa ou que este seja reduzido à condição de coisa, e mais ainda que ele seja privado de meios necessários à sua manutenção.
Pode-se ainda ressaltar, a necessidade de interação do moderno Direito constitucional com outros ramos do Direito. No entanto, nada mais do que moderno será o respeito à dignidade da pessoa humana como valor ético norteador das relações em sociedade, dentre elas as que norteiam o instituto da adoção em sua mais nova Lei nº 12.010/09, que se encontra fortalecido pelo seu indelével caráter social, tendo suas premissas voltadas para a proteção dos direitos fundamentais dos adotados.
4 ADOÇÃO
4.1 Breve histórico
A adoção teve evolução histórica bastante interessante. O instituto era utilizado na antiguidade como forma de perpetuar o culto doméstico. Mas, atualmente, a filiação adotiva é uma filiação puramente jurídica, baseando-se na presunção de uma realidade não biológica, mas afetiva.
Venosa (2005) elucida que a idéia fundamental já estava presente na civilização grega que pensava que se alguém viesse a falecer sem descendente, não haveria pessoa capaz de continuar o culto familiar, o culto aos deuses-lares. Nessa contingência, o pater famílias, sem herdeiro, contemplava a adoção com essa finalidade. O princípio básico do instituto antigo que passou para o direito civil moderno era no sentido de que a adoção deveria imitar a natureza: adoptio naturam imitatur. O adotado assumia o nome e a posição do adotante e herdava seus bens como conseqüência da assunção do culto.
Na Idade Média, sob novas influências religiosas e com a preponderância do Direito Canônico, a adoção cai em desuso.
Na Idade Moderna, com a legislação da Revolução Francesa, o instituto da adoção volta à baila, tendo sido posteriormente incluído no Código de Napoleão de 1.804 e depois recepcionado por diversas legislações, inclusive a brasileira.
Com maior ou menor amplitude, a adoção é admitida por quase todas as legislações modernas, acentuando-se o sentimento humanitário e o bem-estar do menor como preocupações atuais dominantes. Em nosso país, a evolução legislativa do instituto da adoção foi semelhante.
O parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal diz:
Art.227 (...);
§ 6º. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Em 13 de julho de 1990 foi promulgada a Lei 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que entrou em vigor no dia 12 de outubro do mesmo ano, sendo alterado pela Lei nº 12.010/2009 de 03 de agosto de 2009.
4.2 Adoção no Brasil
A sociedade brasileira possui 190 milhões de pessoas sendo que 60 milhões são pessoas com menos de 18 anos (UNICEF, 2012). Por isso a Constituição Federal apresenta-os como “prioridade absoluta”, sendo eles titulares de “ direitos fundamentais”, que passaram a gozar de proteção como sendo dever da família, do Estado e da sociedade.
O direito de ser criança e adolescente e a possibilidade de terem um espaço próprio para seu desenvolvimento em um contexto comunitário têm sido objeto de permanente revisão e, sobremaneira, na determinação de primazia nas propostas políticas da atualidade.
De acordo com a Convenção Internacional sobre Direitos da Criança- ONU/89, que foi ratificada pelo Brasil por intermédio do Decreto n.99.710/90, deve se dar prioridade à “proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade” e definiu a família no preâmbulo como “grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento de todos os seus membros, em particular, das crianças”. Portanto, temos de considerar primordialmente que qualquer análise da convivência familiar deve passar essencialmente pela interação entre seus membros e com o grupo social, reconhecendo os valores que representem a sua continuidade.
A partir destas questões, é importante mostrar a mudança de paradigma nas relações familiares, na medida em que, o que justifica o estabelecimento de uma relação é o afeto, e não mais a base econômica e seus efeitos, conforme Fachin (2005) na sua obra intitulada “ Da paternidade: relação biológica e afetiva”. A noção de afeto, tomada como um elemento propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra pessoa ou pessoas é que se torna condição indispensável para que num ambiente familiar as pessoas possam ser dignas e iguais respeitando-se mutuamente.
Pode-se dizer, portanto, que não obstante a falta do termo “afeto” no ordenamento constitucional, o mesmo encontra-se insculpido no interior de seu texto, ao admitir, superando o modelo tradicional anteriormente adotado pela nossa antiga codificação, a igualdade da filiação, tendo por base, ainda, a tutela da dignidade da pessoa humana como princípio orientador de todo o ordenamento brasileiro.
Neste sentido, depreende-se que, no processo de transformação paradigmática do modelo familiar houve, ao longo das últimas décadas, um nítido direcionamento rumo à construção da afetividade como elemento orientador no interior das estruturas familiares, orientação esta que já se faz sentir na jurisprudência e no ordenamento brasileiro em construção. Ainda nesse sentido, Perlingieri (2004, p.86) ensina que a instituição familiar “ é a formação social, lugar-comunidade tendente á formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes, de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes”.
No que tange à filiação sócio-afetiva, é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento de mão dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho. Desse modo, apresenta-se o critério sócio-afetivo de determinação do estado de filho como um tempero ao império da genética.
Quando falamos em adoção precisamos entender primeiramente sobre o que significa o poder familiar e as possibilidades de sua perda. Diniz (2006,p.1333) conceitua poder familiar como “ conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção dos filhos” .Ela nos ensina que a perda desse poder familiar se dá em quatro casos, sendo eles os castigos imoderados, abandono, prática de atos imorais e realização reiterada dos atos que ensejam a suspensão do poder familiar.
A Constituição de 1988 igualou os filhos em direitos e deveres, proibindo qualquer adjetivação preconceituosa, tal como filho ilegítimo, incestuoso etc. Considerando a teoria filhocentrista que quer dizer, a preocupação com a pessoa dos filhos menores, seu bem estar, seu melhor interesse, podemos extrair os princípios do melhor interesse do menor, da convivência familiar e da parentalidade responsável. Analisando a filiação natural ou biológica vemos que sobre estas repousa o vínculo de sangue, genético ou biológico. Já no instituto da adoção verificamos, algumas conceituações que levarão em consideração a questão da afetividade como conceitua Venosa (2005, p.295) dizendo que “a modalidade artificial de filiação quer buscar imitar a filiação natural; um ato ou negócio jurídico que cria relações de paternidade”.
Já para Diniz (2006, p.1323):
Adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.
Cada família também tem uma identidade própria que deve encontrar pertinência numa determinada forma de constituição familiar, talvez a constituída pelo casamento, ou pela união estável heterossexual ou homoafetiva, a família parental e etc. Em sentido inverso, tais formas de constituição familiar, quando reconhecidas na legislação, emprestam ao grupo familiar e aos indivíduos que a compõem, pertinência que lhes reforça a identidade, por isso não é diferente o que se observa na adoção.
4.3 Código Civil de 2002
O Código Civil de 1916 apresentava muita semelhança com o Direito Português. A adoção foi positivada no Código Civil de 1916, em seus antigos 369 a 378. No entanto, o instituto da adoção era quase inalcançável pelo fato de prever a possibilidade de adotar apenas atribuída a quem tivesse idade superior a cinquenta anos, sem descendentes legítimos ou legitimados e deveria ser, ao menos, dezoito anos mais velho do que o adotando.
O Código Civil estabelecia ainda além destes requisitos a possibilidade de adoção por duas pessoas se fossem casadas. Era exigido o consentimento da pessoa que tivesse a guarda do adotado. Também podia-se perceber a possibilidade de dissolução da adoção a convenção entre as partes ou a ingratidão do adotado contra o postulante. A forma exigida era a da escritura pública não sujeita a condição ou a termo, exceto quanto aos impedimentos. O parentesco se dava apenas entre o postulante e o adotado e os efeitos gerados pela adoção, não seriam extintos pelo nascimento posterior de filhos legítimos, exceto se a concepção tivesse precedido o momento da adoção (GRANATO,2010).
No que se refere à adoção, o Código Civil trouxe ainda a Lei nº 3.133 de 1957, que por sua vez modificou os artigos 368, 369, 372 e 377, e alterando ainda a idade mínina para adotar diminuindo para 30 anos, estabelecendo uma diferença mínima de dezesseis anos de idade entre o adotante e o adotado, e ainda possibilitando que o nome do adotante fizesse parte do nome do adotado.
A Lei nº 4.655 de 08 de maio de 1965, veio ainda contribuir para mais um avanço no instituto da adoção, que dispunha sobre a legitimidade adotiva, que tornava o filho adotivo igual ao filho sanguíneo, em direitos e deveres. Pelo excesso de formalidades esta lei não teve muita aplicação prática, mas passou a visar o bem estar da criança e do adolescente.
Com o advento da Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979, que revogou expressamente a Lei nº 4.655, instituiu-se um Código de Menores, com muitas inovações. Estabeleceu a adoção simples autorizada pelo juiz e aplicável aos menores em situação irregular nos seus artigos 27 e 28 e substituiu a legitimidade adotiva pela adoção plena com várias adaptações em seus artigos 27 a 37 da referida. Vale ressaltar que, os dispositivos concernentes à adoção elencados no Código Civil, embora em desuso continuavam vigentes durante toda a existência do Código de Menores.
O Código Civil de 2002 dispunha a cerca da adoção no seu capítulo IV estando ali inseridos nos artigos 1618 a 1629, porém com o advento da Lei 12.210/2009 a maioria dos artigos foram revogados para que o instituto fosse regido por esta última.
O artigo 1.596, dispõe que os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, copiando os mesmos termos do artigo 227, §6º, da Constituição Federal de 1988, não havendo mais qualquer restrição na investigação de paternidade e de maternidade natural ou medicamente assistida.
4.4 O Estatuto da Criança e do adolescente e a Lei 12.2010/2009
O Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA vem assegurar as crianças e adolescentes o direito de serem adotados, podendo assim usufruir de todos os direitos e reconhecimentos já promulgados pela CR/88, exerce um papel de suma importância, contribuindo como base viabilizadora na colocação de crianças e adolescentes em novas famílias de forma a facilitar a adaptação desses em desenvolvimento, a uma nova realidade.
A proteção da Criança e do adolescente no mundo moderno evidencia a exacerbação das dificuldades existentes após a vigência do Código Civil de 2002, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, Lei nº 8.069/1990, que buscou aperfeiçoamento na Lei nº 12.010/2009, Lei da Adoção, as adequações que ao longo do tempo visam priorizar o melhor interesse da criança, em especial as que esperam por uma família, através do instituto da adoção.
A Constituição Federal de 1988 institui o dever da família para com a criança da seguinte forma:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Apesar da previsão constitucional acima exposta, a garantia ali inserida não pode ser observada para todas as crianças se considerarmos as crianças abandonadas por suas famílias de origem, que estão em abrigos à espera de uma nova família.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também vem assegurar este direito da seguinte forma:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O Estatuto acima mencionado também prevê a garantia dos interesses dos menores dessa maneira:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.
O Estatuto vem estabelecer na Subseção IV, todo procedimento que vem garantir a estas crianças a possibilidade de ser inserida novamente em um ambiente familiar.
Art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei.
Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Ainda, neste aspecto a Lei 12.010/2009, dispõe em seu art. 100, parágrafo único, inciso IV, sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantir a integração da criança em um ambiente familiar.
Art. 100. Parágrafo único: São também princípios que regem a aplicação das medidas.
IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
Desta forma, o inciso IV prevê a proteção do superior interesse da criança e do adolescente, afirmando que a intervenção deve atender prioritariamente, aos seus interesses. Tal princípio constitui um desdobramento direto da doutrina da proteção integral e igualitária, resguardando outro valor de grande importância: o melhor interesse da criança e do adolescente.
Silva (2011) esclarece que dentro deste enfoque, de ser exclusivo o interesse do menor, o que se percebe na adoção é o seu caráter protetor, assistencial ao adotado, não circunscrito ao interesse do adotante, de modo a propiciar famílias substitutas a quem foi abandonado. Afirma ainda em seu posicionamento que a adoção deve ser enfrentada sob esse prisma teológico: “permitir que a criança ou adolescente seja integrado, de forma plena e definitiva em uma família” (SILVA, 2011.p.19).
Sobre o assunto explana com propriedade Souza (2008, p.18):
Adoção é o ato jurídico pelo qual o vínculo de filiação é criado artificialmente. Gera sem consangüinidade nem afinidade, o parentesco de primeiro grau em linha reta descente. Adotar é dar a alguém a oportunidade de crescer. Crescer por dentro. Crescer para a vida. È inserir uma criança numa família, de forma definitiva e com todos os vínculos próprios da filiação. A criança deve ser vista como um filho que realmente decidiu ter.
Diante do posicionamento de doutrinadores, surgem discussões sobre a aplicabilidade desta lei que veio normatizar a adoção, como forma de garantir a estas crianças e adolescentes órfãs, com pais desaparecidos, desconhecidos, suspensos ou até mesmo destituídos do poder familiar a oportunidade de viver em um novo lar.
A adoção é uma das formas de devolver a dignidade, respeito e outros direitos peculiares às crianças e adolescentes orfãos, proporcionando o direito primário da convivência familiar e comunitária.
Contudo, presume-se a existência de algumas modalidades diferenciadas de adoção, que são mais conhecidas como adoção tardia, inter-racial e especial, sendo esta última aplicada às crianças e adolescentes que a própria lei as denomina diferentes. Estas diferenças vêm enfrentando fortes obstáculos no contexto social, relativo ao perfil destas crianças e adolescentes elegíveis à adoção que não se inserem no perfil rigoroso estabelecido pelos postulantes, conforme trataremos no presente trabalho.
4.5 Adoção Inter-racial
A adoção inter-racial é uma das modalidades pertinentes no contexto desta pesquisa, porque o preconceito racial surge a partir das exigências impostas pelos postulantes, que ao se cadastrarem estabelecem critérios seletivos e rigorosos, quanto ao perfil do adotante, tratando a questão como um ato mercantilizável, e não como uma forma de garantir e assegurar através da adoção, a convivência familiar independente da cor da criança e do adolescente.
Contudo, os traços fenotípicos, como a cor da pele, têm se constituído como uma das principais barreiras no cesso igualitário à justiça. Desta forma é possível afirmar que o preconceito racial tem inviabilizado a adoção inter-racial.
Uma pesquisa realizada por Silva Filho, (2011) no Estado de São Paulo, pode constatar que 38,38% dos postulantes preferem crianças e adolescentes brancos; 19,39% aceitam crianças/adolescentes brancos ou pardos; e 4,38% dos pretendentes adotariam crianças negras. Percebe-se que tais dados expressam uma preocupação dentro do nosso contexto ao considerarmos que o Brasil possui uma significativa população negra.
Portanto, é fácil compreender que o resultado de todos os critérios rigorosos impostos pelos postulantes e aceito pelas normas reguladoras da adoção, é uma fila de crianças e adolescentes negros crescendo em instituições de abrigos em todo o país, aguardando esperançosos, por uma família que os ame como são.
4.6 Adoção Especial
A adoção especial, assim denominada por muitos autores, se configura “na adoção de crianças e adolescentes possuidores de alguma anormalidade física ou mental” (SILVA FILHO, 2011, p. 167). Inserem-se também nesta modalidade os portadores de alguma doença crônica biológica, como também os soropositivos.
Vale destacar na mesma pesquisa realizada por Silva Filho, (2011:168) no Estado de São Paulo, no tocante a problemas físicos; 50,52% adotariam crianças e adolescentes portadores de problemas físicos tratáveis leves; 42,11% aceitariam portadoras de HIV negativo; 4,08% as soropositivas; 5,66% aceitariam as com problemas físicos tratáveis graves; e 2,95% aceitariam as crianças com problemas físicos não tratáveis. Quanto a comprometimentos em saúde mental, 58,30% aceitam problemas psicológicos leves; 14,40%, problemas mentais tratáveis leves 8,24% problemas psicológicos graves; 2,37% problemas mentais tratáveis graves, enquanto 1,58% adotariam crianças com problemas mentais não tratáveis.
É importante ressaltar que, as crianças não adotadas, em razão dos seus perfis, aguardam por um longo tempo em abrigos e instituições.
4.7 Adoção Tardia
A adoção tardia nada mais é do que, o resultado produzido pelos critérios seletivos e inflexíveis dos postulantes a adoção quanto a escolha do perfil.
Silva Filho(2011) ainda se referindo ao Estado de São Paulo, afirma que onde se notou que no tocante à idade máxima pretendida, os dados são alarmantes: 11,49% dos pretendentes aceitam crianças de até 6 meses; 19,31% aceitam crianças de até 1 ano; 24,05% aceitam crianças de até 2 anos; 19,35% aceitam crianças de até 3 anos; 10,53% crianças de até 4 anos, e 9,32% crianças de até 5 anos. Assim, conclui-se que 95% dos pretendentes á adoção não adotariam crianças com mais de 5 anos de idade.
Pela pesquisa podemos observar que se trata de dados alarmantes, se considerarmos que a nossa lei de adoção visa proteger os direitos das crianças e dos adolescentes, considerando ainda o melhor interesse.
5 A AFETIVIDADE, A ESCOLHA DO PERFIL DOS ADOTADOS E A AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Como já visto, a lei de adoção enfatiza a afetividade sendo que este princípio passa a ter um valor de destaque devendo ser levado em consideração no contexto da adoção na atualidade.
Tal princípio baseia-se na possibilidade de as pessoas expressarem e receberem afeto sendo que tal gesto não se manifesta de forma isolada, mas através de comportamentos variados e diversificados (gestos, olhares, etc), um simples encorajamento ou uma simples acusação poderá ser suficiente para desestabilizar uma pessoa.
Diante disso, é de vital importância o papel da família nos processos de desenvolvimento humano, compreendendo-se desenvolvimento como sendo todas as alterações que ocorrem no organismo e na personalidade dos indivíduos.
O princípio da efetividade especializa, no plano das relações familiares, o princípio da dignidade da pessoa humana que por sua vez fundamenta todas as relações jurídicas.
Essas relações jurídicas aplicáveis à adoção deve observar o princípio da equiparação das filiações, assim como o papel crescente do princípio do interesse da criança. Contudo, sem contrariar a importância e a relevância de os filhos serem criados no seio de sua família biológica, se cercado de amor e cuidados; entendemos que a paternidade sócio-afetiva é a que melhor garante a estabilidade social.
A filiação sócio-afetiva é a que decorre do vínculo de afetividade e de solidariedade, marcada pela ligação entre pais e filho na busca da felicidade recíproca, formando a família moderna não só através do casamento, mas já reconhecida a união estável e a comunidade formada por qualquer um dos pais e o filho, denominada família nuclear, monoparental, eudomonista ou sócio-afetiva, em que se verifica igualdade emocional, de direitos e de responsabilidades, autoridade negociada sobre os filhos, co-paternidade, família socialmente integrada.
Não há, entre pais e filho, um vínculo de consangüinidade. A adoção judicial,o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou da maternidade, o estado de filho afetivo e a chamada adoção "à brasileira" figura como espécies de filiação sócio-afetiva, sendo estas duas últimas formas irregulares de filiação.
A pesquisa realizada por Silva Filho (2011) revela preconceitos e esteriótipos que prejudicam a estimulação da adoção no país e até favorecem o fracasso desse ato, interferindo no discurso e nas ações de pais e filhos.
De uma forma geral, as pessoas têm medo de adotar crianças com idade maior que 06 meses devido à educação; tem medo de adotar crianças de cor diferente da sua pele “preconceito dos outros”; tem medo de adotar crianças com problema de saúde pela incapacidade de lidar com situação e pelas despesas altas que teriam; tem medo de adotar uma criança que viveu muito tempo no orfanato pelos “vícios” que traria consigo; medo que os pais biológicos possam requerer a criança de volta; medo de adotar uma criança sem saber as origens dos pais biológicos, pois a “marginalidade” dos pais seria transmitida geneticamente; pensam que a criança adotada, cedo ou tarde, traz problemas, pensam na adoção como um último recurso para quem não consegue ter filho biológico.
Há ainda aqueles que creditam na adoção uma forma de desbloqueio a algum fator psicológico impeditivo de se gerar filhos naturais.
Todos os medos citados são até compreensíveis, mas não os preconceitos enrustidos atrás dos medos, visto que, em dados atuais esses preconceitos caem por terra, pois demonstram que existem diversas famílias adotivas felizes e saudáveis independente desses pré-julgamentos e principalmente independente da escolha de perfil.
Referente ao perfil, Vargas (1998) esclarece que as crianças mais velhas, as negras, as pertencentes a um grupo de irmãos, os portadores de deficiência e as com problema de saúde não recebem tratamento igualitário dos adotantes tendo em vista que na maioria das vezes tais crianças encontram-se inseridas no contexto da modalidade de adoção tardia.
Infelizmente, dados estatísticos, conforme já vimos Silva Filho (2011) confirmam que quanto maior a idade da criança, maior a dificuldade para a sua adoção. Quase sempre quem deseja adotar procura bebês saudáveis, que tenham características físicas semelhantes às suas. Normalmente o primeiro pensamento de quem deseja constituir uma família pela adoção é o de tentar se aproximar do biológico, pois geralmente os casais querem vivenciar quase todas as etapas como de um filho que fosse gerado: trocar fraldas, ninar, dar banho, dar colo, dar mamadeira etc.
O perfil de crianças que os futuros pais adotivos procuram são recém-nascidos, brancos, sem irmãos e em perfeito estado de saúde (SILVA FILHO, 2011). Este perfil idealizado impede ou dificulta o processo de adoção, pois o número de crianças que não se encaixam neste perfil é infinitamente maior. Diante desse quadro, essas crianças maiores permanecem muito mais tempo nos abrigos, tornando-se alvos para o final da fila de espera por uma família.
Na visão de Orseli (2011) é nesse momento que verificamos uma afronta ao princípio da dignidade humana tendo em vista que a escolha do perfil dos adotados interessa única e exclusivamente aos adotantes, considerando ainda que estas crianças ficam a mercê de um processo seletivo baseado apenas nas características mentais e físicas.
Ora, neste momento verificamos que as crianças e os adolescentes são tratados como produtos e, portanto, podem estar aptos ou não a serem oferecidos no mercado.
Orseli (2011, p.04) acrescenta o seguinte:
Oportunizar a escolha do adotando por suas características biológicas, permite também o surgimento de um perfil idealizado, no qual o pretendente apoia suas expectativas de realização pessoal e de busca pela felicidade.
Permitir a seleção do adotando de acordo com os desejos do pretendente faz surgir ainda, a segregação de crianças e adolescentes. De um lado o adotando que se enquadra nas expectativas do adotante terá oportunidade de ser inserido em família substituta e crescerá acalentado por esse núcleo. De outro, o adotando não preferido, o qual, lamentavelmente, por não atender às expectativas do adotante, crescerá sem o amparo de uma família.
5.1 A defesa do Ministério Público contra a afronta ao princípio da dignidade humana verificado na escolha do perfil dos adotados
O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis. Tal conceito está definido no art. 127 da Constituição Federal de 1988, que reserva à instituição uma Seção específica no Capítulo das Funções Essenciais à Justiça.
Na atual Carta Política o Ministério Público adquiriu novas funções, destacando a sua atuação na tutela de interesses difusos e coletivos (meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico, turístico e paisagístico; pessoa portadora de deficiência; criança e adolescente; comunidades indígenas e minorias ético-sociais. Isso deu evidência a Instituição, que se tornou uma espécie de ouvidoria da sociedade.
A Constituição Federal de 1988 destacou o papel do Ministério Público, dando-lhe a devida importância, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade.
O artigo 129 da Constituição Federal enumera exemplificadamente as importantes funções ministeriais.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
II- exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica das entidades públicas.
É daí que surgem as outras funções do Ministério Público, tendo em vista que o rol do citado artigo é exemplificativo, e essas funções podem ser previstas em lei federal ou estadual, desde que adequadas a finalidade constitucional da Instituição.
Além de garantidor dos Poderes Estatais, o Ministério Público tem a função de zelar pelo status constitucional do indivíduo, garantindo a fruição de seus direitos. Portanto, é também função do Ministério Público, juntamente com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a defesa dos direitos e liberdades constitucionais do indivíduo.
Como interveniente o Ministério Público defende em nome próprio, direito alheio. Destaca-se o art.82 do Código de Processo Civil.
Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir:
I-nas causas em que há interesses de incapaz
A intervenção do Ministério Público, funcionando como fiscal da lei é obrigatória no caso acima citado. Não há intervenção facultativa do MP. Como fiscal da lei ele deverá oficiar em prol da estrita observância do direito objetivo e, portanto, desvinculado de qualquer interesse substancial em causa, quando intervém em processos já instaurados.
O art. 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente- Lei nº 8.069/1990 enumera diversas funções do Ministério Público na esfera menorista, onde age como parte ou como fiscal da lei, tendo uma função eminentemente assistencialista e fiscalizadora. E é justamente neste artigo que verificamos a competência do Ministério Público para intervir nas ações de adoção e tomar providências para que os direitos de “ todas as crianças e adolescentes” sejam garantidos. Senão vejamos:
Art. 201. Compete ao Ministério Público:
III - promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do poder familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude;
VII - instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude;
VIII - zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis;
XI - inspecionar as entidades públicas e particulares de atendimento e os programas de que trata esta Lei, adotando de pronto as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades porventura verificadas;
§ 2º As atribuições constantes deste artigo não excluem outras, desde que compatíveis com a finalidade do Ministério Público.
§ 5º Para o exercício da atribuição de que trata o inciso VIII deste artigo, poderá o representante do Ministério Público:
c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação.
Art. 202. Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei, hipótese em que terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos e requerer diligências, usando os recursos cabíveis.
Pelo fato da filiação sócio-afetiva tratar de relação baseada na afetividade, não podem nelas estar inseridas quaisquer tipos de preconceitos. Ocorre que já tornou lugar comum dizer que esteriótipos e preconceitos sociais são prejudiciais às relações humanas mais simples. Tudo isto, vai contra ao disposto no ECA conforme abaixo:
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei.
§ 1o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei.
Por isso é que detém o Ministério Público função peculiar na proteção dos direitos fundamentais inerentes às crianças e aos adolescentes. Note-se ainda que as medidas de inibição contra a escolha do perfil poderia começar desde o momento em que os pretendes se inscrevem no cadastro de adoção. Assim prevê a lei a respeito de tal cadastro:
Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.
§ 1º O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do juizado, ouvido o Ministério Público (grifamos).
§ 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfazer os requisitos legais, ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29.
§ 12. A alimentação do cadastro e a convocação criteriosa dos postulantes à adoção serão fiscalizadas pelo Ministério Público (grifamos).
Ainda nesta esteira, poderia o Ministério Público no momento do processo de adoção tomar medidas no sentido de impedir a escolha do perfil com fundamento na afronta ao princípio da dignidade e nos artigos abaixo:
Art. 197-A. Os postulantes à adoção, domiciliados no Brasil, apresentarão petição inicial na qual conste:
Art. 197-B. A autoridade judiciária, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, dará vista dos autos ao Ministério Público, que no prazo de 5 (cinco) dias poderá
I - apresentar quesitos a serem respondidos pela equipe interprofissional encarregada de elaborar o estudo técnico a que se refere o art. 197-C desta LeiII - requerer a designação de audiência para oitiva dos postulantes em juízo e testemunhas;
III - requerer a juntada de documentos complementares e a realização de outras diligências que entender necessárias.
Ao considerarmos que a adoção moderna tem o escopo de aproximar-se ao máximo da filiação natural, temos que quando desta, a escolha das características físicas e mentais são impossíveis, daí então, um ponto que não deveria ter fundamento legal na adoção.
Orseli (2011, p.05) ainda acrescenta que:
Além de atentar contra a dignidade humana do adotando, a possibilidade de selecionar suas características físicas implica a segunda causa de demora no trâmite da adoção. Consequência que se reflete drasticamente na vida da criança e do adolescente, porquanto os obriga a permanecer muito tempo, ou até mesmo toda sua menoridade, dentro de uma instituição. Crescem sob os cuidados impessoais de uma equipe profissional e sem conhecer aquilo que a Constituição Federal assegura no artigo 227, o direito à convivência familiar.
Não faltam fundamentos legais para que o Ministério Público possa adotar medidas para a inibição da escolha do perfil nas ações de adoção. Note-se que em toda a legislação que regulamenta as medidas de proteção às crianças e aos adolescentes o MP detém obrigação legal de intervenção para a garantia dos direitos inerentes aos menores. Vejamos também os artigos abaixo:
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
§ 12. Terão acesso ao cadastro o Ministério Público, o Conselho Tutelar, o órgão gestor da Assistência Social e os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, aos quais incumbe deliberar sobre a implementação de políticas públicas que permitam reduzir o número de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e abreviar o período de permanência em programa de acolhimento (grifo nosso).
Art. 199-C. Os recursos nos procedimentos de adoção e de destituição de poder familiar, em face da relevância das questões, serão processados com prioridade absoluta, devendo ser imediatamente distribuídos, ficando vedado que aguardem, em qualquer situação, oportuna distribuição, e serão colocados em mesa para julgamento sem revisão e com parecer urgente do Ministério Público.
Art. 199-D. O relator deverá colocar o processo em mesa para julgamento no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contado da sua conclusão.
Parágrafo único. O Ministério Público será intimado da data do julgamento e poderá na sessão, se entender necessário, apresentar oralmente seu parecer.
Art. 199-E. O Ministério Público poderá requerer a instauração de procedimento para apuração de responsabilidades se constatar o descumprimento das providências e do prazo previstos nos artigos anteriores.
Para finalizar nossa breve reflexão, achamos de suma importância citar que o Ministério Público possui o poder de oferecer representação contra qualquer infração às normas de proteção aos menores, conforme abaixo:
Art. 194. O procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente terá início por representação do Ministério Público, ou do Conselho Tutelar, ou auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado, e assinado por duas testemunhas, se possível.
Por isso, a afetividade deve ser ponto relevante na adoção e a escolha do perfil deve ser repudiado no ordenamento jurídico brasileiro tendo como defensor o Ministério Público. Continuar permitindo que as adoções no Brasil sejam efetivadas apenas para os menores, que conforme já vimos, se enquadram muitas vezes nos padrões “físicos” determinados pelos postulantes, é se furtar das obrigações principais do Ministério Público que a fiscalização das leis e a defesa dos direitos fundamentais dos indivíduos.
6 CONCLUSÃO
Diversos são os âmbitos de solidariedade que levam às ações de proteção social. A verificação da existência de uma solidariedade social que mobiliza o Estado e a sociedade no sentido de universalizar a ação de proteção social a todas as camadas da população e em especial às crianças e adolescentes, deve ser ponto relevante dentro do ordenamento jurídico de forma a garantir o mínimo de dignidade existencial.
As legislações que regem a adoção primam pelo respeito à criança e ao adolescente, dispondo sobre a proteção integral, considerando-os como pessoas em desenvolvimento e elevando o status do melhor interesse a eles aplicados.
Ocorre que pelo contexto social e cultural brasileiro muito ainda há que ser feito, principalmente quando nos referimos às crianças e adolescentes que já se encontram na fila de adoção, mas não se enquadram nos perfil exigido pelos pretendentes.
Cumpre ressaltar que tais crianças estão sendo privadas do convívio familiar e pelo fato de tal privação estar diretamente ligada à questão do perfil físico e mental, verifica-se aí uma evidente afronta ao princípio da dignidade humana.
A retirada da possibilidade de escolha do perfil nas adoções e a obrigatoriedade de se aceitar qualquer criança que tenha sua adoção deferida pelo judiciário deveria ser o caminho a ser trilhado pelos pretendentes e tal regramento deveria ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro sob a iniciativa do Ministério Público.
A atribuição da dignidade humana à essas crianças e adolescentes retirando a possibilidade de escolha do perfil na adoção, traria a conscientização de que não estamos a falar de produto estampado em vitrine onde as características ali expostas agregam-lhe valor. Estamos a falar de vidas, de pessoas humanas, de menores que se encontram disponíveis para adoção justamente porque em algum momento seus direitos já não lhes foram garantidos.
Portanto, a adoção sem a escolha do perfil e, portanto, sem afronta à dignidade humana, através do seu caráter humanitário fundado na afetividade, pode ser um meio eficaz para atender ao melhor interesse do menor.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Juliana Filgueiras. Adoção no Brasil e a escolha do perfil do adotado: uma afronta ao princípio da dignidade humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36457/adocao-no-brasil-e-a-escolha-do-perfil-do-adotado-uma-afronta-ao-principio-da-dignidade-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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