METODOLOGIA CIENTÍFICA: Análise crítica referente à omissão administrativa, com ênfase a demonstrar o quão prejudicial esta ineficiência se torna quando falamos de segurança pública, afetando no mais das vezes a credibilidade perante o poder judiciário e o Estado como um todo.
RESUMO: Há, precipuamente hoje, dissenso na doutrina e jurisprudência, no tocante ao cumprimento da pena, aplicada ao réu, no regime aberto. A carência estruturante da máquina socioeconômica do Estado contemporâneo é a eiva que cega a espada da deusa Temes. Cumpre-nos tentar analisar o melhor caminho a ser levado, para que as finalidades do direito penal, não fiquem a mercê de um Estado indolente.
O comportamento omissivo da máquina administrativa do Estado, não é de hoje, vem sendo alvo de críticas, tanto patrióticas como alienígenas. A omissão eminente com que a função executora – dos direitos fundamentais da sociedade – vem se aconchegando no seio social é preocupante e desvirtuada dos escopos constitucionais.
Os direitos afetados pela omissão administrativa do Estado são de tal calibre, que acabam por levar à ficção os fins do Estado – Legislativo e Judiciário. O álibi político-administrativo com que se armam os governantes é propício à interesses pré-determinados, vislumbrando-se o caráter oligárquico-político que o passado trazia em seu espírito.
Desde as sábias observações de Ferdinand Lassalle, quando firmava que os vernáculos constitucionais de seu tempo, não passavam de ‘’folhas de papel’’ porquanto não fossem cristalizados perante a eficácia empírica, se vê a omissão dos ‘’Chefes de Estado’’.
Na atualidade – fruto do Estado Social de Direito – vivenciamos uma democracia partidária, em que delegamos nosso ‘’poderio’’ aos nossos representantes políticos. De sorte que, ao se incumbirem do cargo que lhes fora conferido, devem cumprir os desideratos de uma população constitucionalmente organizada.
Afinando o prisma crítico-científico do tema, passamos a observar a supra-citada omissão na dogmática mais importante de todos os tempos, qual seja, o direito penal.
Quando o Estado-Juiz efetiva o devido processo legal, garantindo aos envolvidos no dissenso suas amplas possibilidades de defesa, o faz objetivando um fim: nada mais óbvio que o da paz (direitos de 5º dimensão)[1]. Porém na, eventual, evidenciação da culpa do réu, cumpre ao Estado-Juiz sentencia-lo como tal, e, ao fazer isso esgota sua função estritamente judiciária. Passa-se – o sentenciado – às mãos administrativas da execução penal, que cabe ao juiz da execução criminal, que deverá executar a pena, anteriormente concretizada. Aqui, o juiz da execução criminal deve ter em mãos subsídios claros de que sua execução será devidamente cumprida e delineada aos fins Estatais evidentes e subjacentes.
Todavia, caso o Juiz defina que o cumprimento da pena seja efetuado em regime aberto – definição dada na fase secundária do processo criminal –, deverá, necessariamente ter em mãos os locais adequados para tanto, devidamente descritos na Lei de execuções penais. No caso o local adequado para o fiel cumprimento do ‘’querer’’ legislativo, seria a casa de albergado. O problema se inicia quando constatamos a inexistência – ou quando existente, a precariedade – das casas de albergado no nosso País. Os critérios hermenêuticos da proporcionalidade e razoabilidade se evidenciam para tentarmos encontrar uma solução concreta para esse perenizado problema.
Como visto, a administração mais uma vez deixa a sociedade deprecante pela justiça. O absurdo ora vislumbrado ganha proporções alarmantes quando o analisamos profundamente. Ora, o crime foi constatado, o devido processo legal foi definitivamente concluído e ratificado pela legitimidade Estatal – na sentença –, o réu foi condenado a cumprir a pena e, por fim, não há lugar adequado para o devido cumprimento da pena, relegando-se à arbitrariedade do juiz criminal o lugar em que o réu cumprirá a penalidade. O choque de valores eleva-se neste momento, afinal: deverá o juiz decretar o cumprimento da pena em domicílio (pena taxativa-exaustiva à determinadas pessoas)[2], ou deverá mandar cumpri-la em regime prisional junto a outros presos, dignos de maior repulsa sócio-estatal.
Há corrente defendendo o cumprimento da pena, nessas situações, em domicílio. A corrente se embasa na dignidade da pessoa humana e em outros princípios que deverão beneficiar o réu. Sob o prisma humanístico, realmente o albergue domiciliar seria o ônus da administração pública, visto que não investe o necessário para a construção de casas de albergado. A corrente sob comento afirma que o réu não poderá ser prejudicado por uma irresponsabilidade político-administrativa, de modo que, deverá cumprir a pena em seu domicílio, e por consequência, amplia-se o rol do artigo 117º da Lei de execuções penais conferindo-lhe interpretação extensivo-analógica. Argumenta-se, também, sob a égide do ‘’in dubio pro reu’’, que o condenado jamais poderá ser onerado além do que já lhe foi, principalmente no momento de dúvidas. Todavia, cumpre-nos evidenciar se esse é o melhor a ser seguido, a fins de que o Estado cumpra suas finalidades corregedoras.
Façamos isso, debruçados sobre a hermenêutica perspicaz, que se legitima na crítica: eterna fonte de esclarecimentos e progressos.
Analisando a dúvida saliente com que o juiz criminal se depara neste momento, vemos que: poderá aceder à uma decisão humanística embasada nos postulados da, eventual, ressocialização, e não – maior – prejudicialidade ao réu (ser desintegrado – temporalmente – do consenso contratual entre Estado e sociedade, abóbada contemporânea), ou poderá – e assim o deve –, fazer a correta ponderação dos valores em atrito.
A pena tem como finalidades extrínsecas reestabelecer a paz social, ora desvirtuada pela anomalia criminosa. Para isso usurpa-se dos sentimentos humanos – ódio, repulsa, vingança etc. – lhes trazendo em seu espírito e os tornando legítimos (ius puniendi), na medida em passam a ser ratificados pelo Estado-sociedade, pois são conferidos mediante um devido processo legal, em que caso haja provado o injusto motivo de tais sentimentos será ao réu ratificada sua inocência, e por conseguinte sua liberdade. Cabe destacar que, quando somados ao ius puniendi do Estado, se adicionam ao espírito da lei que penaliza, além dos sentimentos rudimentares – supracitados –, outros que conferem aos apenados sua dignidade, lhes ressocializando – adequando – ao seio social.
As finalidades da pena passaram por longo processo metodológico na história, bastando-nos fazer uma brevíssima síntese das funções que a mesma carrega em sua base axiológica.
Se iniciando pela pura retribuição desproporcional, a pena ao ser humano ‘’deslocado’’ do consenso social era efetuada pela autotutela, não havendo qualquer tipo de proporção entre conduta repugnada e vingança arbitrária. Após incontáveis anos de autotutela, para evitar a aniquilação da raça humana passa-se a conferir à pena aplicável ao delinquente alguma proporcionalidade: com a lei do Talião – ainda que ‘’injusta’’. Com o decorrer do tempo, já no século das luzes, a teoria absoluta (retributiva) da pena – agora proporcionalizada – tiveram grandes representantes, desde Kant à Hegel. Em 1.764, contemporâneo de Kant, Cesar Bonessana, Marquês de Beccaria, publica seu famoso Dei Delitti e delle Pene, conferindo o arquétipo do iluminismo à pena, passando a lhe atribuir uma função preventiva (teoria relativa) – apesar do anacronismo-aplicativo, já somada à retribuição (teoria absoluta). Assim, Beccaria postulava que será sempre melhor ‘’prevenir o crime do que castigar’’, e destarte inicia-se o método penológico da prevenção, que posteriormente se subdivide em geral e especial.
Hoje, graças a interpretação unívoca do direito em nosso País, conferimos à pena as funções de retribuir, prevenir, bem como ressocializar, ou seja, adotamos em nosso sistema pátrio a teoria mista ou unificadora das finalidades da pena.
As finalidades, hoje factíveis em nosso ordenamento, passaram por longo processo histórico[3]. Com o advento da teoria Constitucional após beligerante caminho contra o austero Estado absoluto, galgamos êxito em igualar todos perante a lei. Após conducente caminho aperfeiçoador dos direitos fundamentais, o direito penal se aprofundou em instrumentalizar a justiça.
Assim, após evidenciarmos as finalidades da pena, passamos ao caso concreto e analisamos o melhor caminho a ser conduzido pelo julgador.
O cumprimento da pena em regime aberto no Brasil sofre de precariedade, visto que as denominadas casas de albergue simplesmente não existem, pois a política administrativa talvez não dê a necessária ênfase orçamentária para tanto. A lei de execuções penais traz pessoas determinadas que, deverão cumprir sua pena em domicílio. Uma corrente defende que se deva dar a esse rol de pessoas determinadas uma interpretação não exaustiva, de modo que abarque os condenados a regime aberto, que de fato não tem onde cumprir suas penas.
Filiamo-nos à corrente diversa, que acredita que a melhor opção é situar o condenado em regime mais rigoroso, em detrimento de colocá-lo a cumprir a pena em seu domicílio, pelos motivos infra delineados.
A premissa parte de um choque de direitos fundamentais, onde os critérios de interpretação da ponderação, razoabilidade e proporcionalidade (postulados normativos), devem ser usufruídos a fundo.
Dentro da razoabilidade não me parece adequado colocar um condenado a crime - devendo cumpri-lo em regime aberto - em seu domicílio, visto que a incitação à reincidência é objetivamente visível, assim não é adequado por não alcançar a finalidade da prevenção.
Dentro da mesma proporcionalidade, condenar o réu a cumprir sua pena em domicílio por não haver casa de albergado, não é o meio necessário para que a retribuição penal seja eficaz, senão confortando o mesmo à consciência criminosa.
Ainda dentro da proporcionalidade, agora em sentido estrito, não é nada proporcional adequar o condenado em sua residência, para pagamento de uma dívida criminosa com a sociedade, de modo que a restituição, ainda que moral, de segurança à vítima será esdruxula. Destarte, não haverá qualquer meio ressocializador, pois o ‘’condenado’’ estará confortável na prática delituosa, que se mostrará potencialmente ineficiente.
A ponderação deve ser feita entre o dano causado à vítima – imediatamente – e à sociedade – mediatamente – e a força Estatal de reestabelecer a ordem. Ora, não se necessita de muito esforço cognitivo para se evidenciar a ineficiência de uma pena como essa. O réu ao cumprir a pena em seu domicílio estrará confortável diante das circunstâncias que o levaram à prática do crime. Doutro lado a vítima da prática criminosa se sentirá humilhada diante do fracasso de seu Estado, que não pôde dar ao fato a devida sanção. Em segundo plano, a falha atinge a prevenção geral positiva e negativa, de modo que a sociedade correta com o direito se verá à mercê do crime, e, a sociedade desvirtuada do direito se verá confortável em abusar do delito.
A incredibilidade, que surgirá diante de tal prática jurisdicional, perante o judiciário será de calibre preocupador, pois a única força que o Estado-Juiz tem é sua credibilidade perante a sociedade. Destarte, a democracia se torna mais utópica do que o comum.
A sociedade se verá a talante da prática criminosa – ainda que de menor calibre, digna de regime aberto –, e nada poderá fazer. A ordem pública e a segurança jurídica serão destituídas de fundamento pois, se reservará, ao aplica-las meios de seu sacrifício em nome da dignidade humana. Não podemos olvidar que, a dignidade da pessoa humana – nesta especificidade -, não é unilateral, de modo que abarque tão somente o criminoso que terá sua liberdade cerceada, mas é plurilateral de modo que abarca a vítima do crime e a todos da ordem social, ainda que esta última de maneira mediata.
O choque valorativo em que o magistrado se deparará será solucionado pela preponderância ao bem comum, à soberania do público sobre o privado. Nessa linha de pensamento, sobrepomos a prevenção geral sobre a especial, bem como sobre a estrita retribuição (conforto consciencial de sociedade e vítima).
A atividade jurisdicional quando concretizada, tem como finalidade imediata reestabelecer a ordem social e como escopo mediato o conforto ao particular envolvido no litígio. Assim, não há modus operandi que faça crer que a solução mais razoável seja o afrouxamento do cumprimento da lei penal.
O argumento de que, pode-se dar, para casos em que não haja casa de albergado – ou seja, casos estritos e eventuais –, interpretação extensiva ao artigo 117º da Lei de Execuções Penais, é um tanto leviano, pois basta mínimo esforço cognitivo para se palpar que o artigo não foi escrito com a intenção de ser aplicado em casos totalmente distintos, mormente em casos em que a lacuna se dá por omissão administrativa. O artigo é claro e dirigido à pessoas dignas de tal privilégio, pois o sopesamento de valores evidencia a fragilidade pré-constatada dessas pessoas, fazendo com que elas sejam merecedoras de tal penalidade.
Entretanto, afirmar ser possível alargar o rol do artigo 117º, em nome da dignidade do réu, por pura irresponsabilidade do poder público em não concretizar os meios necessários ao cumprimento da lei, é sofisma! Os valores evidentemente preponderantes se caracterizam pela ordem pública e social, pelas finalidades da pena, bem como pela credibilidade perante o poder judiciário, que em caso de aleijamento causado pela administração se mostrará eficiente à reestabelecer os valores preeminentes da Constituição; Para tanto democracia agradece.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Nos casos estritos que foram análise de comento neste artigo científico, deverá, sempre que possível, preponderar-se sobre os danos causados a todos, afinal todos são merecedores de dignidade. Conglobam-se, então, agentes criminosos e vítimas.
A sociedade não pode se encontrar em hipótese alguma desprotegida do judiciário, o qual se busca em momentos de desespero (seja particularmente, seja via Ministério Público), e ao qual se incumbirá de efetivar a lei penal mesmo quando omissa.
Não é plausível determinar uma interpretação exaustiva, em um dispositivo de regra clara, didática e dirigida à pessoas determinadas. A justificativa da interpretação analógica não tem cabimento no caso sob crítica, por em nada ter haver com as condições estritamente pessoais que o artigo impõe, não obstante, caso constatado tal comportamento pelo magistrado, a segurança jurídica, bem como a tripartição dos poderes ficará em xeque. O judiciário estará claramente administrando e legislando ao mesmo passo, comportamento este inviável para com os valores axiológicos que dão plenitude ao ordenamento.
Dentre os critérios categóricos da proporcionalidade vimos que tanto a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito – em tese, supra argumentada – vedam a ilação ignóbil de relegar as finalidades da pena.
A segurança jurídica deve, sempre que possível, especialmente no plano processual-administrativo se sobrepor a direitos particulares, ainda que fundamentais. Nada mais justo, até porque a mesma segurança jurídica tem em seu fundamento legitimador a garantia dos ditos direitos fundamentais. Neste caso específico, vê-se a clara vantagem em punir justamente o condenado (que o fora em pena privativa de liberdade), em estabelecimento de maior rigor, visto que a dádiva da prisão em domicílio se dá nos casos expressos – e justificados – em lei, que não são dignos de extensão, ao contrário, se caracterizam pela taxatividade e exaustão.
Não se pode atenuar o rigor de uma sanção jurisdicional - como a dúvida perquiri - pois a larga escala de prejudicialidade já visionada nesse caso, trará desagrados gradativos, que, via de regra, levam à queda da democracia, já fragilizada!
BIBLIOGRAFIA:
ÁVILA, HUMBERTO. TEORIA DOS PRINCÍPIOS ‘’ DA DEFINIÇÃO À APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS ‘’. 10º ED., EDITORA MALHEIROS.
BITENCOURT, CEZAR ROBERTO. TRATADO DE DIREITO PENAL – PARTE GERAL. 16º ED., EDITORA SARAIVA.
BONAVIDES, PAULO. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 25º ED., EDITORA MALHEIROS.
[1] Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional, 25º ed., p. 579.
[2] Lei de Execuções Penais nº 7.210/84, Art. 117º. Alude-se: ‘’ a) homem e mulher maiores de setenta anos ou acometidos de doença grave e; b) mulheres gestantes, com filho menor ou deficiente. ‘’.
[3] Para maior aprofundamento, vide: Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, parte geral 1. 16º ed., 2011.
Advogado. Pós-Graduado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMINATA, Mauricio Peluso. A omissão administrativa - um prejuízo à eficácia da lei penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 set 2013, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36503/a-omissao-administrativa-um-prejuizo-a-eficacia-da-lei-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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