I) Introdução
O negócio jurídico é um ato manifestamente volitivo pois tem na declaração de vontade a sua essência. As partes que desejam a realização de determinado negócio declaram, expressa ou tacitamente, a sua vontade, e essa declaração terá o condão - observados os requisitos legais - de obter o fim por elas colimado.
Convém anotar que os negócios jurídicos, uma vez celebrados com a observância dos seus requisitos de validade, criam uma espécie de norma entre as partes vinculando-as a seu cumprimento sob pena de execução específica ou, quando isso não for possível, indenização por perdas e danos, eis que é o princípio da obrigatoriedade do negócio jurídico um dos alicerces da segurança jurídica.
Mas, se por um lado a regra é o respeito incondicional aos negócios validamente celebrados, porquanto condição necessária para garantir o regular comércio jurídico, por outro lado, tem-se a possibilidade, ainda que exepcional, de se rescindir um negócio jurídico que porventura tenha sido celebrado com um defeito em sua origem.
De fato, eventualmente pode ocorrer uma espécie de “desavença entre a vontade real e a declarada[1], o que significa dizer que uma parte desejou, imaginou e intentou a prática de determinado negócio, mas a sua declaração, por alguma razão, acabou por não corresponder ao seu desejo interno. E esse descompasso pode ocorrer em casos de erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão. São os chamados vícios de consentimento que consistem em defeitos do negócio jurídico.
II) O erro no Código Civil: a sua escusabilidade e cognoscibilidade
Neste breve ensaio, interessa-nos particularmente o erro como defeito do negócio jurídico que pode levar à anulação do negócio, cuja disciplina encontra no direito brasileiro lugar nos artigos 138 a 144 do Código Civil, importando anotar que são anuláveis os negócios jurídicos quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por outra pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio[2].
Sendo o respeito ao negócio jurídico validamente celebrado um dos pilares da segurança jurídica, é de se notar que a rescisão de um negócio entabulado que, aparentemente, foi praticado sob a observância dos requisitos legais é prática que exige cautela e prudência do magistrado.
Diz-se cautela e prudência porque o ato jurídico, ainda que inquinado por um vício de consentimento, aos olhos de todos, foi constituído segundo o direito, eis que nos moldes do artigo 104, do Código Civil. Por essa razão a averiguação judicial deve se pautar nos exatos e estreitos limites da lei, no caso, os artigos 138 e seguintes, do Código Civil.
Pode-se afirmar, portanto, que o erro é um vício de consentimento que macula a manifestação de vontade consistente em uma noção inexata da realidade, fazendo com que a vontade declarada do agente não corresponda com a sua vontade interna[3].
Nessa esteira, o artigo 139 do Código Civil dispõe sobre as circunstâncias de fato e de direito que poderão caracterizar um erro substancial. Assim, serão considerados aqueles que interessem à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma de suas qualidades essenciais (art. 139, I); ou que atentem à identidade ou qualidade essencial da pessoa a quem se dirige a declaração (art. 139, II); ou se o erro for de direito, desde que não signifique recusa à aplicação da lei for o motivo único ou principal do negócio (art. 139, III).
Entretanto, o seu reconhecimento como um erro substancial não é o único pressuposto para que se reconheça a presença do vício de consentimento suficiente para tornar anulável o negócio jurídico.
De fato, duas outras questões relevantes se apresentam nesse debate e se referem (i) à escusabilidade do erro e (ii) à sua cognoscibilidade. A dizer, o erro, além de substancial, deve ser também escusável? E, além de escusável, deve o erro ser cognoscível, ou seja, de conhecimento presumível ou possível pela outra parte? Dessas indagações, que atualmente dividem a opinião da doutrina, cunhar-se-á o exato conceito desse vício de consentimento no direito brasileiro.
Convém recordar que o Código Civil de 1916 não exigia expressamente o requisito da escusabilidade tampouco da cognoscibilidade, mas a doutrina, desde Clóvis a Beviláqua[4], apregoou em uníssona voz que o erro deveria ser, no mínimo, escusável[5]. E assim se entendeu porque não seria lícito nem razoável socorrer aquele que cometesse erro crasso, provavelmente fruto de negligência, porquanto não se deve beneficiar o contratante que se equivocou por conta de sua própria culpa.
Dessa forma, entende-se por erro escusável aquele que pode ser justificado, perdoável, assim considerado aquele engano cometido no momento da celebração de um negócio jurídico, e que poderia ter sido cometido por uma pessoa de inteligência média ou, em outras palavras, pelo bonus pater familias[6].
Por outro lado, o novo Código Civil, como já mencionado, deu nova redação à norma tipificadora do erro como defeito do negócio jurídico. Além de declarar que são anuláveis os negócios emanados de erro substancial, tal qual a legislação anterior, a nova lei acrescentou ainda a circunstância de “que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”. Está-se, com essa segunda parte do artigo 138 introduzindo, seguramente, o requisito da cognoscibilidade do erro pela outra parte.
Noutras palavras, não basta o erro ser substancial, é necessário que a outra parte tenha condições de presmuir ou perceber o equívoco do outro contratante. Assim, se configura a cognosciblidade do erro: se a outra parte, a que não errou, pelas circunstâncias do ocorrido, pudesse presumir o erro no qual estava a incidir a parte que se equivocou.
De fato, a lei civil inseriu mais um requisito para a caracterização do erro capaz de tornar anulável o negócio jurídico, consistente na possibilidade de que o engano do declarante pudesse ser percebido pelo outro contratante, justificando, assim, a eventual declaração de anulação.
Nota-se que esse requisito legal – o da cognoscibilidade do erro – acaba por dificultar a sua caracterização, o que torna a porta para o ingresso das ações anulatórias mais estreita.
A questão pode ser, ainda, colocada em outros termos: andou bem o legislador do novo Código ao inserir mais um requisito para a caracterização do erro, tornando-se mais custosa a sua demonstração?
Parece-nos que a resposta caminha pela afirmativa. E isso basicamente por uma razão: o ato jurídico perfeito celebrado por pessoas capazes, observando-se a forma legal e se referindo a objeto lícito, possível e determinado ou determinável deve ser preservado, salvo em casos excepcionais de grave “defeito de origem”. Explica-se:
O ato jurídico perfeito[7], ou o negócio jurídico realizado em conformidade com os seus pressupostos de validade, é o esteio e a base de todo o comércio jurídico, e por isso deve ser conservado e incólume deve ser mantida a sua eficácia. Por essa razão, as hipóteses de nulidade do negócio firmado sob a observância dos requisitos de validade devem ser estreitas, tudo com o objetivo de garantir a segurança jurídica.
Certamente os vícios de consentimento existem e devem ser corrigidos, nos termos da lei. Todavia, o que se pretende demonstrar é a necessidade da cautela e da prudência a nortear o magistrado, em razão da excepcionalidade de toda e qualquer anulação de negócios jurídicos celebrados em atenção aos requisitos do artigo 104, do Código Civil, notadamente no caso do erro.
Não fosse pela cautela e prudência necessárias à anulação de um ato jurídico perfeito, no caso do erro o rigor da lei deve ser ainda maior, pois o erro é o único vício de consentimento em que o contratante que o comete não foi induzido por nenhuma ação ou agente externo, como ocorre nos casos de dolo, coação, estado de perigo ou lesão.
Sendo assim, a averiguação da ocorrência do erro está a exigir maior cuidado, o que recomenda uma parametrização mínima, e, nesse sentido, entendemos que o elemento da cognoscibilidade auxiliará positivamente na resolução dos casos levados a juízo.
Além da necessidade de se manter a higidez dos negócios celebrados, no caso versado, pode-se afirmar que a exigência da cognoscibilidade pela outra parte também é relevante também como elemento de prestígio aos princípios da boa-fé objetiva e da probidade[8].
De outro norte, é de se registrar que, com a vigência do novo Código Civil e com a inclusão da cognoscibilidade como requisito para a anulabidade do negócio por erro substancial, parte da doutrina passou a entender que não se exige mais a escusabilidade do erro, mas tão-somente a possibilidade de ser conhecido pela outra parte.
Nesse sentido, o Enunciado n. 12, da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estuados Judiciários do Conselho da Justiça Federal, anunciou que “na sistemática do artigo 138, é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança”, e propôs textualmente que a escusabilidade não é mais um requisito caracterizador do erro para tornar anulável o negócio jurídico eviado desse vício de consentimento.
Todavia, as opiniões se dividem também nesse particular, tanto que o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, entendeu que o erro não pode ser fruto de negligência nem de imperícia da parte que pretende a tutela anulatória.
Confira-se:
“O erro que enseja a anulação de negócio jurídico, além de essencial, deve ser inescusável, decorrente da falsa representação da realidade própria do homem mediano, perdoável, no mais das vezes, pelo desconhecimento natural das circunstâncias e particularidades do negócio jurídico. Vale dizer, para ser escusável o erro deve ser de tal monta que qualquer pessoa de inteligência mediana o cometeria. No caso, não é crível que o autor, instituição financeira de sólida posição no mercado, tenha descurado-se das cautelas ordinárias à celebração do negócio jurídico absolutamente corriqueiro, como a dação de imóvel rural em pagamento, substituindo dívidas contraídas e recebendo imóvel cuja área encontrava-se deslocada topograficamente daquela constante em sua matrícula. Em realidade, se houve vício de vontade, este constituiu erro grosseiro, incapaz de anular o negócio jurídico, porquanto revela culpa imperdoável do próprio autor, dadas as peculiaridades da atividade desenvolvida[9]”.
Entendemos acertada a decisão do Superior Tribunal de Justiça, porquanto não faria sentido acolher o pedido anulatório de um negócio jurídico quando a parte autora se equivocou por sua própria culpa, em geral nas modalidades negligência ou imperícia.
Com efeito, não é jurídico admitir a anulação de um ato jurídico perfeito e acabado por suposto erro grosseiro em que incidiu um dos contratantes, revelando a sua conduta culposa. Por isso, parece-nos que o caminho trilhado pelo STJ é o mais seguro e jurídico, eis que o direito não pode se compadecer com aqueles que negligenciam ou agem com imperícia.
III) Conclusão
Com base nessas breves considerações, a nosso ver, o Código Civil de 2002 adotou, acertadamente, o princípio da confiança em evidente prestígio à boa-fé objetiva e à probidade, pois se trata de uma disposição legal que valoriza e exalta o elemento ético, fazendo cumprir assim também a função social do contrato.
Quanto à escusabilidade do erro, em nosso sentir, essa circunstância é ainda necessária para a configuração do referido vício de consentimento, porquanto o direito não se compadece daqueles que, ao arrepio da mínima cautela e diligência, pretendem a anulação de um ato jurídico perfeito valendo-se da própria culpa.
Por derradeiro, acreditamos que pela sistemática do Código Civil são requisitos para a anulabilidade do negócio por erro tanto a escusabilidade quanto a cognoscibilidade, pois ambos os pressupostos buscam o equilíbrio entre os interesses do declarante e declaratário, prestigiando-se, ainda, os superiores interesses da boa-fé e da probidade.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Código Civil comentado, vol. II, São Paulo: Ed. Atlas, 2003.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, vol. I, São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.
GAGLIANO, Pablo Stolze e Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil, vol. I, São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
LOTUFO, Renan. Código Civil comentado, vol. I, São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
PIRES DE KIMA Fernando Andrade e Antunes Varela, João de Matos. Código Civil anotado, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1967.
[1] Vide Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro, vol. I, São Paulo: Ed. Saraiva, 2011, p. 486.
[2] Art. 138, do Código Civil brasileiro.
[3] Vide Maria Helena Diniz, Código Civil anotado, São Paulo: Ed. Saraiva, 2010, p. 171. Consulte-se, também, Clóvis Beviláqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol. I, Rio de Janeiro: Ed. Paulo de Azevedo Ltda, 1959, p. 267.
[4] Clóvis Beviláqua, (Código ..., ob., cit., p. 269) afirmou: “Não basta, porém, que o êrro seja substancial nos têrmos dos arts. 87-88. Deve ser também excusável, isto, deve ter por fundamento uma razão plausível ou ser tal que uma pessoa de inteligência comum e atenção ordinária o possa cometer. Como escreveu Paulo, ‘ignorantia emptori prodest, quae nos in supinum hominem cadit (D. 18, 1, fr. 15, par. 1o)’”.
[5] O Código Civil de 1916 não dizia palavra sobre a cognoscibilidade do erro como requisito para a sua caracterização, assim como a doutrina da época.
[6] Maria Helena Diniz, (Curso de Direito Civil brasileiro, ob., cit., p. 488) ensina que para a aferição da escusabilidade deve-se utilizar o padrão abstrato vir medius.
[7] No presente ensaio, utiliza-se a expressão ato jurídico perfeito como sinônimo de negócio jurídico, eis que para o desiderato aqui pretendido, que é o de examinar os requisitos do erro como vício de consentimento, não há de se adentrar em tal diferenciação.
[8] Nesse sentido, Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro, ob., cit., p. 488.
[9] STJ-4a Turma, Resp 744.311, Min. Luis Felipe Salomão, j. 19.08.10, DJ 09.09.10, em Theotônio Negrão e outros, Código Civil e legislação civil em vigor, São Paulo: Ed. Saraiva, 2013, p. 90. Parece que houve um erro material na ementa, onde se lê ‘inescusável’ deve ser lido ‘escusável’, eis que o raciocínio prevalecente no acórdão não admite a anulação sob a alegação de erro que, no caso, poderia ter sido evitado com a cautela ordinária que deve nortear as ações do homem médio. Em outras palavras, o Tribunal está recusando a tutela anulatória por considerar que houve negligência ou imperícia da instituição financeira, que se diz enganada quanto ao imóvel que recebeu em dação em pagamento.
Advogado, Mestre e Doutorando em Direito Civil comparado junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor de Direito Civil na Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul - ESMAGIS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAGNONCELLI, André de Carvalho. A cognoscibilidade e a escusabilidade do erro à luz do Código Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 set 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36517/a-cognoscibilidade-e-a-escusabilidade-do-erro-a-luz-do-codigo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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