1 – Introdução
A Constituição Federal de 1988 estabelece que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, orientado por princípios fundamentais que refletem os valores da nossa sociedade, inspirando e conduzindo a interpretação e a aplicação do Direito nos casos concretos. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios norteadores de nosso ordenamento jurídico, um dos mais notáveis elementos dos chamados princípios fundamentais, base da concepção ocidental de liberdade e justiça.
Na esfera privada, a Lei Magna reconhece a orientação sexual como expressão da personalidade, a qual deve ser protegida como bem jurídico que é, a fim de que possa se desenvolver em toda a sua plenitude, desde que de acordo com os limites legais.
A igualdade também é assegurada como direito fundamental e a Constituição estabelece critérios para seu reconhecimento, condenando expressamente todas as formas de preconceito e discriminação. Tomando como base tais princípios, considerados como pilares de nosso sistema jurídico, discute-se a real aplicação destes na realidade social atual, trazendo-se à discussão a questão referente à extensão do conceito de união estável para relacionamentos homoafetivos.
É inegável que houveram profundas mudanças na dinâmica social de 1988 até os dias de hoje. O contexto, o debate político e a concepção de mundo foram consideravelmente transformadas neste espaço de três décadas, e a discussão em torna da liberdade sexual, ao lado da movimentação feminista, sem dúvidas é uma das que mais cresceram neste meio tempo. A ressignificação do corpo, bem como do sexo/gênero geram uma incompatibilidade entre o previsto pela Carta de 1988 e a realidade atual.
O presente trabalho se propõe a discutir acerca desta mutação social, responsável por fazer surgir novas demandas e direitos, ainda não tutelada pelo Direito, em razão de seu desenvolvimento posterior à edição da Constituição. Seria necessária uma Emenda para alterar o texto original da Constituição, ou seria possível reinterpretar-se uma norma aparentemente clara em favor do entendimento contrário? Em que medida é urgente a recepção destas novas concepções na dinâmica democrática presente?
2 – Do conceito de União Estável segundo a Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, prevê o seguinte:
“Art. 226 - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Anteriormente à edição da Carta Magna, inexistente era o conceito de união estável. Tais situações eram qualificadas como concubinatos, que poderiam ser limpos (em casos de relacionamento entre duas pessoas desimpedidas) ou sujos (quando uma das partes era casada e mantinha relação duradoura com outrem).
Com a edição das novas leis, o concubinato foi eliminado e adquiriu sentido pejorativo, já que a modalidade “limpa”, agora, passaria a se chamar união estável.
O reconhecimento da união estável como entidade familiar passou, então, a produzir inúmeros outros efeitos jurídicos que resultam de seu reconhecimento como tipo de relacionamento familiar tipificado. Dessa forma, é conferida à união estável efeitos derivados do regime de sociedades de fato para partilha de patrimônio adquirido por esforço comum (como previsto pela Súmula 380 do STF), bem como o direito real de habitação, pensões, sucessão, entre tantos outros. O Estado passou a tutelar os efeitos, agora jurídicos, produzidos por uma união estável, reconhecendo-a como entidade familiar.
A doutrina atual entende existirem quatro requisitos para que seja reconhecida uma união estável. São eles a publicidade, a durabilidade, continuidade do relacionamento e o objetivo de constituir família. Além destes requisitos, podemos observar, pela simples leitura do art. 226 da Constituição Federal de 1988, que a união estável é constituída por “homem e mulher”.
3 – Da união estável homoafetiva
Podemos aduzir do exposto que o casal homoafetivo tem potencial para atender a todas as exigências elencadas pela doutrina. De fato, a publicidade nas relações entre casais homossexuais já é tabu superado, bem como são naturalmente duráveis e contínuos (como qualquer relacionamento com maior nível de seriedade).
Ainda, o objetivo de constituir família é natural a um casal que visa construir uma vida em conjunto. Entretanto, este último ponto gera intensa discussão, já que boa parte da doutrina e até mesmo da sociedade ainda não veem com bons olhos a criação de crianças em uma família composta por pessoas do mesmo sexo. Aliado a este empecilho, está a utilização expressa do conjunto “homem e mulher” no art. 226 da CF.
Qualifica-se, dessa forma, respeitando a todas essas exigências, um casal homoafetivo que se relacione e viva junto após determinado período de tempo. Como bem visto, o único impedimento para que seja reconhecido a estes tal direito, com todos os seus benefícios e extensões, é a barreira imposta pela norma, limitando o reconhecimento da união estável apenas, nas palavras da lei, aos relacionamentos “entre o homem e a mulher”, bem como a visão discriminatória de uma fatia da sociedade que ainda não vê como possível o objetivo de constituir família entre pessoas do mesmo sexo.
É inegável que a orientação sexual usada para excluir do conceito de união estável a relação entre pessoas do mesmo sexo é um argumento altamente discriminatório, oposto ao pregado pelos princípios fundadores de nossa Constituição, retirando tais modalidades de relacionamento do conceito de entidade familiar, enquadrando-as como não merecedores de tutela jurídica, da previsibilidade e estabilidade da segurança jurídica, outro princípio fundamental de nosso sistema normativo. Percebe-se, desde logo, que a edição dada ao art. 226 da Constituição Federal foi excludente, mesmo que não propositalmente frente ao contexto de sua época, mas gerando tais efeitos posteriormente.
É importante ressaltar, ainda, que está previsto na Constituição o direito de livre escolha sexual, o poder de decisão de autonomia privada. O ordenamento jurídico assegura a liberdade individual e, assim, deve criar meios e condições para que ela seja exercida, materializada, como bem assinala Luís Roberto Barroso:
"Não reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão sentido a sua existência, impedir o exercício de sua liberdade e o desenvolvimento de sua personalidade, depreciando a qualidade dos seus projetos de vida e dos seus afetos. Isto é: fazendo com que sejam menos livres para viver as suas escolhas." (Barroso, 2007, 18-19).
4 – Da Extensão do conceito de união estável para as relações homoafetivas: o julgamento do Supremo Tribunal Federal
Frente às demandas sociais atuais, com novas exigências que não aquelas vividas no paradigma social existente quando a Constituição foi elaborada, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 5 de maio de 2011, que é
"(...) obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.” (grifamos).
A esse respeito já havia se declarado, também, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nª 1.183.378-RS. Com isso, afirma-se um avanço na interpretação constitucional, se aproximando da realidade social presente e respondendo às demandas por coerência entre o texto da lei e os casos concretos recentes, resultados de novas dinâmicas sociais.
Importante aspecto a ser discutido é a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso. O debate em torno da questão da extensão da união estável heterossexual aos casais homoafetivos é relativamente recente, mas não é inédito. Entretanto, o poder Legislativo se furtou de editar projetos de lei para modificar as leis necessárias à tutela das relações entre pessoas do mesmo sexo.
Frente a esta omissão, infelizmente recorrente na dinâmica democrática brasileira, o STF adquiriu para si competência alheia, julgando em Recurso Extraordinário a matéria, a fim de que novos entendimentos fossem aplicados em razão da repercussão geral. Por um lado, nobre é a intenção e postura da maior instância judiciária brasileira. Por outro, é em verdade preocupante a necessidade de um Tribunal componente da estrutura judiciária ter de atuar para compensar a incompetência e omissão do Poder Legislativo, o qual deveria, em verdade, editar as leis de acordo com as demandas sociais atuais.
Tal discussão, acerca dos pesos e contrapesos entre os poderes na dinâmica democrática atual, serão objetos de análise em outros artigos, mas logo se vê que este é mais um exemplo de situação na qual se observa o desequilíbrio dentre os poderes e a utopia que é, na realidade, a divisão entre Três Poderes na democracia contemporânea.
5 - Conclusão:
A afetividade foi reiterada como o elemento essencial na caracterização da união estável com o julgamento do Supremo Tribunal Federal. Os requisitos de convivência pública, continuidade, durabilidade e objetivo comum de constituição de família (como descreve o art. 1723 do Código Civil) ganharam maior importância do que a simples limitação de sexo para o reconhecimento da união estável, imposta na redação do art. 226 da CF.
O relacionamento que recebe proteção legal é aquele que visa à plena comunhão da vida e dos interesses do casal. Ou seja, com essa nova interpretação, a união estável homoafetiva é tratada juridicamente como entidade familiar pelo Direito de Família, não mais como uma sociedade de fato, reconhecida no Direito das Obrigações.
Encaminhados, agora, às Varas de Família, podem ser discutidos não apenas direitos patrimoniais, como também aqueles que resultam das relações familiares, tais como mútua assistência, alimentos, herança, habitação, benefícios previdenciários.
Entre esses está inclusive o direito de converter a união estável em casamento civil, considerando que a lei deve facilitar essa conversão, para efeito da proteção do Estado (de acordo com a descrição do art. 226, §3º, da Constituição de 1988).
Mesmo com a posição favorável do STF quanto a legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo e exigir que estes direitos sejam reconhecidos, existem decisões posteriores ao acordão que persistem em não reconhecer a união estável homoafetiva, como bem foi noticiado em caso de pedido de reconhecimento de união estável em Vara de Família na cidade de Goiânia, indeferido pelo juiz de primeiro grau.
Tais casos refletem a concepção homofóbica e conservadora que, infelizmente, ainda é perpetrada em nossa sociedade, trazendo à baila discussões acerca da legitimidade e extensão dos princípios fundamentais defendidos por nossa Constituição.
Referências Bibliográficas:
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 16, maio-junho-julho-agosto, 2007. Disponível no site: http://www.direitopublico.com.br.
FRANCISCHET, Carolina Fratari; TAVARES, Maria Terezinha. União Estável Homoafetiva. Disponível em: <https://ssl4799.websiteseguro.com/swge5/seg/cd2008/PDF/SA08-20602.PDF>. Acesso em: 17 de abril de 2012
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277-7. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4277&processo=4277>. Acesso em: 17 de abril de 2012
Estudante de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aprovado no segundo vestibular de 2010, cursando no momento o sétimo semestre (abril de 2013). Atua em escritório de advocacia na área de contencioso civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHAIM, Caio Eduardo Cormier. Extensão do conceito de união estável para as relações homoafetivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36527/extensao-do-conceito-de-uniao-estavel-para-as-relacoes-homoafetivas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
Por: isabella maria rabelo gontijo
Por: Sandra Karla Silva de Castro
Por: MARIA CLARA MADUREIRO QUEIROZ NETO
Precisa estar logado para fazer comentários.