I) A colocação do problema
Sabe-se que o ordenamento jurídico é um todo desordenado e que compreende todas as normas jurídicas que são excessivamente editadas, sem que se tenha, em muitos casos, o cuidado de não se promulgar normas novas que conflitem com as já existentes. E nessa produção “inflacionária” de normas jurídicas, o legislador, comumente, edita normas conflitantes entre si, criando o chamado estado incorreto do sistema[1]. Surge, assim, a antinomia jurídica.
Tércio Sampaio Ferraz Junior ensina que: “A antinomia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas da mesma autoridade competente num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado[2]”.
O presente ensaio se propõe a analisar a possível ocorrência de antinomia entre as regras insculpidas nos artigos 1.239[3] e o artigo 1.243[4] do Código Civil brasileiro, conforme se verá adiante.
II A antinomia em questão e o critério normativo de resolução
O artigo 1239 do Código Civil - que possui redação semelhante àquela que foi dada ao artigo 191 da Constituição Federal - estipula que aquele que, não sendo proprietário urbano ou rural, possuir como seu, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, imóvel rural não superior a 50 (cinquenta) hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho ou de sua família, tendo nele a sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
De se ver que essa hipótese de usucapião denominada usucapião especial rural ou pró-labore, tem o seu traço distintivo das demais, exatamente, pela exigência da posse “pro labore”, a qual está a exigir o labor que deverá ser exercido pessoalmente pelo usucapiente ou pessoas de sua família, além da exigência de que o imóvel lhe sirva de moradia. Essas são, essencialmente, particularidades que marcam essa espécie usucapiatória. E por se estribar em inquestionável fim social, é que o legislador optou pelo reduzido prazo de 5 (cinco) anos, se comparado com as outras espécies de usucapião.
Pode-se, assim, elencar como requisitos da usucapião especial rural: a) não ser proprietário urbano ou rural; b) posse do usucapiente ou de pessoas de sua família, pelo prazo de 5 anos, ininterruptos e sem oposição; c) imóvel rural com dimensão máxima de 50 (cinquenta) hectares; d) o prescribente deve ter a sua moradia no imóvel usucapiendo.
Em resumo, são esses 4 (quatro) requisitos essenciais para a caracterização da usucapião especial rural em nosso ordenamento jurídico, sobressaindo-se nessa espécie usucapiatória, como já afirmado, a posse pro labore, que pode ser descrita como a modalidade possessória especial em que o possuidor pessoalmente trabalha a terra para dela tirar o seu sustento.
Por outro lado, o artigo 1243 do Código Civil está a admitir a accessio possessionis, que nada mais é do que a possibilidade de o usucapiente somar as posses anteriores à sua, desde que contínuas e pacíficas. Essa norma legal tem raízes tão antigas quanto o próprio instituto da usucapião, encontrando precedentes pelos séculos de sua história. De fato, dispõe esse artigo que “o possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, no caso do art. 1.242, com justo título e boa-fé”.
Basta simples olhadela sobre a norma do artigo 1.243 do Código Civil, e confrontá-la com a norma do artigo 1.239 para verificar que existe entre elas uma possível contradição. Trata-se de uma hipótese de antinomia jurídica?
Essa última norma (CC, art. 1239) tem, como já afirmado, em seu núcleo, a figura da posse “pro labore”, que é eminentemente pessoal e exige, por isso, o labor diuturno do usucapiente, além de solicitar a fixação de sua moradia no imóvel usucapiendo; enquanto que aquela norma (CC, 1243) autoriza, para fins de contagem de prazo, a soma das posses anteriores, autorizando, assim, que o usucapiente se beneficie do prazo das posses dos possuidores anteriores.
A questão que se coloca e que revela a possível contradição é a seguinte: como compatibilizar a norma do art. 1243 – autorizadora da soma do tempo dos possuidores anteriores – com a regra específica do artigo 1239, que por sua vez, exige a posse pessoal do prescribente ou de alguém de sua família?
Noutras palavras, como admitir, ao mesmo tempo, a possibilidade de múltiplas posses se, no caso versado, se está a exigir a posse “personalíssima”, dadas as pecualiaridades da usucapião especial rural (CF, art. 191 e CC, art. 1239)?
Antes de se enfrentar a questão, deve-se proceder a uma diferenciação no que toca ao alcance do artigo 1243, do Código Civil. A denominada accessio possessionis, que se encontra estampada na norma aludida e que autoriza o acréscimo das posses anteriores à do usucapiente – desde que contínuas e pacíficas – abrange, em verdade, duas modalidades distintas: a) a união das posses, o que se faz por meio de algum ato negocial inter vivos; b) e a sucessão de posses, o que ocorre causa mortis, sendo que nessa hipótese os sucessores continuam a posse do antecessor com os mesmos caracteres[5].
Assim, a acessão de posses se biparte nessas duas espécies – sucessão e união – sendo importante essa distinção no que toca à usucapião especial rural. Com efeito, na união de posses há uma transmissão a título singular por ato inter vivos, como na compra e venda, sendo que o sucessor mantém os direitos e obrigações do sucedido sobre bem determinado e individual. Enquanto que na sucessão de posses existe uma sucessão universal, causa mortis, continuando os herdeiros a mesma posse recebida do de cujus.
Destarte, tendo em vista as peculiaridades da usucapião especial rural, especialmente no que toca à posse “pro labore”, cuja caracterização está a exigir a fixação da residência do usucapiente no imóvel usucapiendo, assim como o seu cultivo e labor, por si ou sua família, a fim de tornar a área produtiva, entendemos que não é possível a união ou adição de posses, nessa espécie de usucapião. De fato, a exigência de cultivo do imóvel, bem como a permanência na área usucapienda, tornam a posse pessoal, por assim dizer, o que veda a soma das posses[6]’.
Em reforço a esse entendimento, a lição de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka sobre a usucapião especial rural, consoante a qual “o usucapiente a exercerá (a posse) com animus domini e a possibilidade da junção de posse por transmissão inter vivos estará completamente fora de cogitação[7]”.
Nesse diapasão, o E. Tribunal de Alçada do Paraná julgou a apelação cível n. 0209360-1[8], por meio de sua 10ª Câmara Cível, sendo Relator o Juiz convocado Luiz Antônio Barry, podendo-se extrair o seguinte trecho do seu voto: “Ainda, ao contrário do pretendido pelo apelante, a posse, aqui tratada, não pode ser contada com o acréscimo da posse do antecessor do atual possuidor, como o fez o ora apelante, em sua pretensão, não sendo, assim, possível a contagem do prazo anterior à transmissão de posse inter vivos, tanto que dispõe o ordenamento constitucional – art. 191, caput, da CF – que deve o possuidor tornar o imóvel produtivo e ter nela sua moradia. Assim, como restou devidamente assentado no decisum, além do apelante não exercer a posse ininterrupta pelo lapso temporal assinalado na Carta Federal, não residia no local, mantendo-o como sua morada”.
No mesmo sentido, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo julgou o agravo de instrumento n. 98.034[9], tendo sido Relator o Desembargador David Filho, fazendo-se constar da ementa: “o usucapião “pro labore” instituído pela Constituição Federal exige que o usucapiente esteja ocupando o imóvel sem oposição, por dez anos, não se lhe adicionando à sua posse a de seus antecessores”.
Com o mesmo entendimento, o E. Tribunal de Justiça de Santa Catarina se manifestou no julgamento da apelação cível n. 11.274[10], relatado pelo Dr. Osny Caetano, cuja clareza justifica a transcrição de parte do voto: “Segundo Lourenço Mário Prunês (Usucapião de imóveis, p. 52), ‘aplicam-se ao usucapião extraordinário e ao ordinário tanto a sucessão, quanto a acessão. No usucapião rústico cabe apenas a sucessão, não a acessão, devendo o sucessor pertencer à família que trabalha diretamente no imóvel’. Quanto à exigência relativa à soma das posses, por sua vez, é o mesmo autor que, a fls. 203 da citada obra, preleciona: ‘ A acessão ou soma de posses, para perfazer 10 anos, é possível quando o sucessor fizer parte da família que tornou produtiva a terra’”.
Diferentemente, se, em vez de união de posses, tiver ocorrido a sucessão de posses é possível que haja a soma das posses, desde que o sucessor tenha contribuído com o de cujus no cultivo e labor rural a fim de tornar produtivo o imóvel usucapiendo.
No mesmo diapasão, é a lição de Celso R. Bastos para quem na transmissão da posse inter vivos não se admite a soma das posses, mesmo que sejam contínuas e pacíficas, já que a norma constitucional exige que a propriedade rural tenha se tornado produtiva com o labor do possuidor, além de ser a sede de sua residência. Por outro lado, entendia que “na sucessão causa mortis é possível a contagem do tempo anterior só se o herdeiro fizesse parte do conjunto familiar que cultivava e produzia a terra e nela morasse com o possuidor que veio a falecer[11]”.
Como se vê das doutrinas e jurisprudências acima citadas, é opinião corrente que a usucapião especial rural não admite a accessio possessionis, porquanto lhe é fundamental a posse “pro labore”, que deve ser exercida diretamente por ele ou sua família, além da obrigação legal de fixar a sua residência no imóvel usucapiendo. Por outro lado, entendemos que é possível a soma das posses nos casos de sucessão a título universal, desde que os sucessores tenham auxiliado o de cujus, com o seu labor, para alcançar o fim de tornar o imóvel produtivo, e ali tenham fixado a sua residência, pois assim o objetivo da norma constitucional terá sido alcançado[12].
Assim, pode-se afirmar que a usucapião especial rural se afasta da normatização da usucapião ordinária e extraordinária, porquanto na usucapião rural é requisito especial e essencial o cultivo direto da área pelo possuidor, assim como a fixação de sua morada, razão pela qual não se admite a acessão de posses na usucapião agrária.
Logo, a norma do artigo 1.243 do Código Civil, que se pretende incidir sobre todas as espécies de usucapião, não tem como se harmonizar com a norma do artigo 1.239 do mesmo Código.
De fato, não há como conciliar ambas as normas: ou se admite a soma da posse de terceira pessoa, e, nesse caso, não haverá posse “pro labore” do usucapiente na usucapião especial rural, ou, ao reverso, fazendo-se valer a exigência da posse pro-labore não há como se compatibilizar a possibilidade da accessio possessionis. Tem-se, claramente, uma hipótese de antinomia porque a norma do artigo 1.239 não se efetivará (a exigência da posse “pro labore”), se se admitir a incidência do artigo 1.243.
Dessa forma, parece-nos que se trata de uma antinomia própria, afigurando-se, quanto à extensão, uma antinomia total-parcial, que se caracteriza “se uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra, enquanto esta tem um campo de aplicação que conflita com a anterior apenas em parte[13]”.
Inquestionável, pois, que a norma do artigo 1.239 do Código Civil, ao exigir a posse pessoal do usucapiente e o labor próprio no imóvel, está a entrar em clara contradição com aquela que permite a soma de pessoas de outras pessoas (CC, art. 1.243). Por outro lado, essa última norma aplica-se normalmente às outras espécies usucapiendas, mormente à ordinária e à extraordinária (CC, arts. 1.238 e 1.242).
Assim, uma vez identificada a antinomia jurídica cabe ao aplicador da lei utilizar os critérios normativos para a sua solução, quando possível, ou valer-se de uma interpretação corretiva fundando-se nos artigos 4o e 5o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
III) Conclusão
No caso presente, a nosso sentir, a antinomia apontada é aparente, porquanto o critério normativo da especialidade é o suficiente para aclarar a contradição, devendo o juiz utilizar o princípio lex specialis derogat legi generali, eis que se pode afirmar que o artigo 1.239 é norma especial, enquanto que o artigo 1.243 afigura-se como norma geral, e que se aplica às diversas espécies de usucapião, salvo na usucapião dos artigos 1.239 e 1.240[14].
Afirma-se, assim, que a norma do artigo 1.239 é especial porque está a individualizar - a exemplo do que fez o artigo 191 da Constituição Federal - uma espécie de usucapião especial elencando os seus requisitos, os quais, somados todos (inclusive a posse pro-labore, individual do usucapiente), levarão à aquisição da propriedade imobiliária rural.
De outra banda, o artigo 1.243 dispõe, genericamente, sobre a possibilidade de se somar a posse do usucapiente com as demais que lhe antecederam, se contínuas e pacíficas. Veja-se, portanto, que essa última norma tem aplicação genérica a diversas espécies de usucapião, revelando-se como norma geral se comparada com a do referido artigo 1.239 do mesmo Código.
Ocorre, todavia, que o critério normativo da especialidade que será utilizado pelo aplicador da norma resolverá a contradição apenas em determinado caso concreto levado a julgamento, enquanto que a antinomia permanecerá no ordenamento.
Assim, para dissipá-la, definitivamente, há a necessidade de uma terceira norma que venha excluir a contradição e, nesse sentido, sugere-se, de lege ferenda, uma proposição normativa no sentido de se acrescentar um parágrafo único ao artigo 1.243, o qual passaria a ter a seguinte redação[15]:
“Art. 1243. (...)
Parágrafo único: “O disposto neste artigo não se aplica às formas de usucapião previstas nos artigos 1.239 e 1.240, admitindo-se, nestes casos, somente a soma de posses por sucessão universal (art. 1.207), conforme estabelecido em lei especial
Dessa forma, com a inclusão de um parágrafo único ao mencionado artigo 1.243 do Código Civil ficaria resolvida de vez a antinomia aparente indigitada, porquanto se manteria hígido o princípio da accessio possessionis, mas far-se-ia a necessária ressalva de sua não incidência na usucapião especial rural e urbano.
Assim, abolida seria a presente antinomia aparente, retirando-se a contradição entre os dois artigos do ordenamento jurídico, o que se deve fazer em nome do postulado da coerência lógica do sistema, o qual advém do princípio da unidade do sistema jurídico[16].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Vide a lição de Maria Helena Diniz, (Conflito de normas, São Paulo: Ed. Saraiva, 2.009, ps. 12-13): “Os elementos do sistema estão vinclulados entre si por uma relação, sendo interdependentes. Se houver incogruência entre eles, temos quebra de isomorfia e lacuna, se houver conflito dentro do subsistema normativo, temos antinomia. Logo, o sistema normativo é aberto, está em relação de importação e exportação de informações com os outros sistemas (fático e valorativo), sendo ele próprio parte do sistema jurídico (...). Esse princípio da unidade pode levar-nos à questão da correção do direito incorreto. Se se apresentar uma antinomia, ou um conflito entre normas, ter-se-á um estado incorreto do sistema, que precisará ser solucionado, pois o postulado desse princípio é o da resolução das contradições. O sistema jurídico deverá, teoricamente, formar um todo coerente, devendo, por isso, excluir qualquer contradição lógica nas asserções, feitas pelo jurista, elaborador do sistema, sobre as normas, para assegurar sua homogeneidade e garantir a segurança na aplicação do direito”.
[2] Tércio Sampaio Ferraz Junior, Antinomia, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 7, São Paulo: Ed. Saraiva, p. 13-14.
[3] Nota-se que a redação do artigo 1239 do Código Civil é semelhante a do artigo 191 da Constituição Federal.
[4] O artigo 1.243 do Código Civil também se encontra em contradição com o artigo 1.240 do Código Civil, o qual, tal qual o artigo 1.239, dispõe acerca de modalidade especial de usucapião (o artigo 1.240 do Código Civil tem redação equivalente a do artigo 183 da CF/88). Mas, por uma questão de método, nesse ensaio se referirá apenas ao artigo 1.239, ressalvando-se, desde já, que as considerações feitas valem também para o artigo 1.240. Anote-se, ainda, a inclusão do novel artigo 1.240-A, acrescentado pela Lei n. 12.424/11.
[5] Maria Helena Diniz, (Curso de direito civil brasileiro, vol. 4, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 72-73) assim se manifesta sobre as modalidades de acessão de posse: “Nessa transmissão causa mortis os herdeiros ou legatários tomam o lugar do de cujus, continuando a sua posse, com os mesmos caracteres (vícios, sejam eles objetivos ou subjetivos, ou qualidades), como efeito direto da sucessão universal ou singular (CC, art. 1.206) e como decorrência lógica da norma contida no art. 1.203 do Código Civil (...). Essa sucessão de posses é necessária ou imperativa, pois, de acordo com o art. 1.207, 1ª parte, o sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor”. Em arremate, sobre a união de posses assim se manifestou: “na hipótese da sucessão singular (compra e venda, doação, dação, legado), ou melhor, quando o objeto adquirido constitui coisa certa ou determinada (...). Todavia, está o adquirente autorizado pelo art. 1.207, 2ª parte, a unir, se quiser, ou se lhe convier, sua posse à do seu antecessor. Em regra, o direito de somar posses visa adquirir a propriedade pela usucapião. P. ex.: Se o seu antecessor já tinha posse contínua e pacífica por 5 anos, o adquirente terá o benefício da usucapião ordinária se também possuir o bem imóvel, contínua e pacificamente, por outros 5 anos (CC, arts. 1.242, caput, e 1.243)”.
[6] Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, (Usucapião comum e especial, Rio de Janeiro: Ed. Aide, 1.984, ps. 199-200) em uma abordagem histórica do assunto nos recorda a emenda n. 99, do Dep. Fernando Coelho, que tinha esse objetivo, e, que rejeitada, constou no parecer do Senador Jutahy Magalhães: ‘Na prática constituiria uma redução do prazo estabelecido para o usucapião especial, o que não é concebível, até porque constituiria uma discriminação em relação àqueles que não se beneficiassem da mesma situação vantajosa”. Todavia, em nossa opinião, o que parece justificar a vedação é a exigência da posse pro-labore, segundo a qual o possuidor deve produzir na terra e ali fixar a sua morada. Com a mesma opinião Marco Aurélio da Silva Viana, (Comentários ao novo Código Civil, Dos direitos reais, vol. XVI, coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2.007, p. 108) para quem que não é possível a accessio possessionis nessa espécie de usucapião, pois existe um caráter de pessoalidade nessa posse para fins de usucapião especial rural que é incompatível com a soma das posses por ato inter vivos. Também digno de registro é a opinião de Lenine Nequete, (Usucapião especial, Da prescrição aquisitiva (usucapião), Porto Alegre: Ajuris, 1981, p. 5), que, retificando opinião anterior, afirma que não se deve adicionar as posses na usucapião especial rural, citando, em apoio ao seu entendimento reformado, um julgado do TJSP, de 28.4.1960, constante na RT 305/344.
[7] Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Usucapião especial: características do imóvel usucapiendo em face da Constituição Federal de 1.988, Revista de direito civil, imobiliário, agrário e empresarial, vol. 59, 1.992, p. 78.
[8] “USUCAPIÃO ESPECIAL – Inadmissibilidade – Accessio possessionis – Possuidor que não pode somar a sua posse com a dos antecessores – Ausência, ademais, do preenchimento dos requisitos de o possuidor residir no imóvel usucapiendo ou ter tornado a propriedade produtiva por seu trabalho ou de sua família”. (Apelação cível n. 0209360-1, 10ª Câm., j. 24.06.2004, Rel. Juiz convocado Luiz Antônio Barry – DJPR 06.08.2004 (RT 834/399).
[9] “EXECUÇÃO DE SENTENÇA – Sucessor da parte vencida na ação – Oferecimento de embargos de terceiro - Rejeição. USUCAPIÃO “PRO LABORE” – Necessidade de o usucapiente ocupar o imóvel – Inexistência de adição de posse de antecessor. O sucessor da parte vencida na ação tem que se submeter à execução de sentença. O usucapião “pro labore” instituído pela Constituição Federal exige que o usucapiente esteja ocupando o imóvel sem oposição, por dez anos, não se lhe adicionando à sua posse a de seus antecessores”. (Agravo de instrumento n. 98.034 – j. 28.04.1960 – Rel.: David Filho. O julgado se refere à Constituição Federal de 1.946, daí a menção ao prazo de dez anos - hoje, cinco). (RT 305/344).
[10] “REIVINDICAÇÃO – Defesa baseada em usucapião “pro labore” – Requisitos não provados – Ação procedente – Recurso não provido. (...) Tratando-se de usucapião rústico, só se admite a soma de posses, para perfazer os 10 anos, quando o sucessor fizer parte da família que tornou produtiva a terra”. (Apelação cível n. 11.274 – Rel. Osny Caetano – J. 20.05.1976) - (RT 493/190).
[11] Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da S. Martins, Comentários à Constituição do Brasil, vol. 7, cit., p. 346. No mesmo sentido, Nelson Luiz Pinto, Usucapião - alguns aspectos de direito material, Revista dos Tribunais, vol. 681, p. 63 assim se manifestou sobre o assunto: não há possibilidade, outrossim, da aplicação da soma de posses para que se requeira o usucapião constitucional, i. é., o usucapiente deve ter ele próprio posse qüinqüenal do imóvel, tendo trabalhado a terra e ali fixado a sua residência. Entretanto, no caso do sucessor mortis causa, a título universal (art. 496 do CC), continua para este o direito à posse, sem interrupção do prazo, se este passar, como seu antecessor, a morar e cultivar a terra”.
[12] Também nesse sentido a doutrina de Antônio Augusto de Souza Coelho, Usucapião agrário, cit., ps. 289-290; Antônio Fernando Scheibel Pádula, Usucapião especial de imóveis rurais, dissertação de mestrado, São Paulo: USP, 1.983, p. 72.
[13] Conforme Maria Helena Diniz, Conflito de normas, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 29.
[14] Maria Helena Diniz, (Conflito de normas, ob. cit, p. 40) ensina que: “Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também esteja previsto na geral (...). Para Bobbio, a superioridade da norma especial sobre a geral constitui expressão da exigência de um caminho da justiça, da legalidade à igualdade, por refletir, de modo claro, a regra da justiça suum cuique tribuere”.
[15] Consulte-se Lucas Abreu Barroso e Gustavo Elias Kallás Rezek, Acessio possessionis e usucapião constitucional agrário: inaplicabilidade do artigo 1.243, primeira parte, do Código Civil, Revista de Direito Privado n. 28, São Paulo: Ed. RT, 2006, ps. 118-123.
[16] Maria Helena Diniz, Conflito de normas, ob. cit., p. 13.
Advogado, Mestre e Doutorando em Direito Civil comparado junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor de Direito Civil na Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul - ESMAGIS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAGNONCELLI, André de Carvalho. Os artigos 1239 e 1243 do Código Civil: um caso de antinomia jurídica? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36624/os-artigos-1239-e-1243-do-codigo-civil-um-caso-de-antinomia-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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