1. INTRODUÇÃO
As reformas no Direito Penal e no Direito Processual Penal fazem parte dos anseios da sociedade uma vez que esta reclama da impunidade, da corrupção do próprio Estado em relação à criminalidade e culpa o Poder Judiciário pelas mazelas que afetam o bem estar de todos que nela estão inseridos. Neste contexto é que foram introduzidas mudanças significativas no ordenamento jurídico brasileiro, tidas como importantes instrumentos de eficiente e efetiva prestação jurisdicional.
Pretende-se com o novo Código de Processo Penal dar uma resposta positiva aos anseios da sociedade, abrangendo aí, tanto as partes dentro do processo, quanto aos próprios operadores do Direito no que tange ao tema prova, e mais especificamente, ao poder investigatório do juiz de direito.
Com a reforma pontual do Código de Processo Penal trazida pela Lei 11.690/2008 surgiram diversos questionamentos no meio jurídico sobre a constitucionalidade e adequação das novas regras ao sistema penal vigente. Um dos dispositivos que gerou enorme controvérsia na doutrina foi o inciso I do artigo 156 do CPP, que, com a nova redação, permite ao juiz, antes de iniciada a ação penal e de ofício, ou seja, sem provocação de qualquer interessado, determine a produção de provas.
Apesar de a norma estar em vigor, muito se questiona a respeito de sua constitucionalidade que afronta alguns princípios como do contraditório, da imparcialidade do juiz, da presunção do estado de inocência, da verdade real e da inércia da jurisdição.
Nota-se ainda, que há entendimentos no sentido de que tal dispositivo, não condiz com o sistema acusatório adotado pela legislação brasileira.
Nesse sentido, é que se pretende fazer uma análise do posicionamento doutrinário a respeito do artigo do Código de Processo Penal acima citado, no intuito de verificar a sua constitucionalidade, bem como a sua adequabilidade às competências do juiz.
Necessário, no entanto, é um estudo a respeito dos sistemas de persecução penal existentes, bem como a respeito de qual sistema é adotado pelo Brasil.
A abordagem das correntes doutrinárias referentes à inconstitucionalidade do artigo 156, I do CPP, a interpretação de cada princípio constitucional relacionado ao tema, a análise do sistema acusatório adotado pela Constituição da República de 1988 e a comparação da atual e da anterior interpretação de tal norma antes da reforma processual penal é o que se pretende no presente estudo.
2. SISTEMAS DE PERSECUÇÃO PENAL
2.1 Direito Processual Penal no Brasil
A história do direito processual penal no Brasil retrata o enredo de liberdade e de punição e passa por diversas óticas relativas às questões penais onde há sempre o homem como sujeito.
O direito processual penal, diferentemente do direito penal que se preocupa em definir os crimes e atribuir-lhe pena, é aquele que regulamenta o modo como é demonstrada a verdade sobre o fato típico e, ainda da responsabilidade criminal.
Conforme estudos de José Frederico Marques (1997), na Roma Antiga havia apenas duas infrações que instigavam a perseguição pública (crimina), o perduellio (traição e atentado contra a segurança do Estado) e o parricidium (morte do pater, do chefe do grupo) e, ambas atingiam o governo. As demais infrações, entre as quais o furto e as ofensas físicas ou morais, eram punidas pelas próprias vítimas que então assumiam a vingança.
A Constituição de 1891 com um Brasil já republicano, trouxe em seu bojo o federalismo e a descentralização do poder. E, com isto, surgiu a possibilidade de cada Estado ter seu próprio Código de Processo Penal, mas nem todos o criaram. Rio de Janeiro, Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas e outros criaram suas leis processuais.
Estabeleceu a Carta Magna republicana, direitos e garantias que deveriam ser observadas por todos e, entre estas, a extinção das penas de morte (com exceção da estabelecida nas leis militares para tempos de guerra).
Em 1934, a nova Constituição previu a unidade legislativa da União, sendo ratificada pela Constituição de 1937. Pouco tempo após esta última, foi promulgado o atual Código de Processo Penal através do Decreto Lei nº 3.689 de 30 de outubro de 1941, assim como a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal sob a égide do Decreto Lei nº 3.931 de 11 de dezembro de 1941, com o escopo de adaptar a nova legislação aos processos pendentes. Este código apesar de manter o inquérito policial, estabeleceu a instrução contraditória separando as funções acusatória e julgadora, extinguindo quase por completo o procedimento ex offício, permanecendo apenas para as contravenções. Ele também restringiu a competência do júri, deixando bem delineada os procedimentos a serem observados em conformidade com o sistema acusatório.
Vale lembrar que ainda sob a vigência do Código de Processo Penal de 1941, as Constituições posteriores preservaram os direitos e garantias individuais assegurados pelos litigantes inseridos nos processo penais. Tais garantias ainda foram alargadas pela Constituição Federal de 1988, conforme o previsto no artigo 5º, incisos LXII, LXVI, LXVIII, LV, LIII e XXXVIII, os quais dispõem a respeito do contraditório, ampla defesa, devido processo legal, publicidade, oralidade, soberania do júri, dando ênfase ao sistema processual acusatório, como previsto no art. 98,I.
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) a Constituição de 1988 definiu a situação jurídica daqueles que ainda não tinham reconhecida sua responsabilidade por sentença transitada em julgado (art. 5º, LVIII).
Ele acrescenta que:
O devido processo legal constitucional busca então, realizar uma Justiça Penal submetida à exigência de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre, para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda persecução penal, em que o Estado ocupa posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre a qual exerce o monopólio.
Processo justo a ser realizado sob instrução contraditória, perante o juiz natural da causa, e no qual seja exigida a participação efetiva da defesa técnica, como única forma de construção válida do convencimento judicial. E o convencimento deverá ser sempre motivado, como garantia do adequado exercício da função judicante e para que se possa impugná-lo com maior amplitude perante o órgão recursal (OLIVEIRA, 2010, p.08).
2.2 Sistema Inquisitório
Conforme relatos de Aury Lopes Júnior (2010) o sistema inquisitório é histórico. Nascido na Roma Imperial, trata-se de sistema diretamente ligado ao comportamento da Igreja Católica que em busca da “verdade absoluta” atribuía a criação da humanidade à “graça divina” que com a queda de Adão e Eva, rompeu com a capacidade de interpretar a vontade de Deus, sendo necessário, portanto, a interpretação dessa vontade através dos bispos e do papa.
Nessa ótica, toma força a questão da segurança, baseada na verdade absoluta imposta pelos concílios, encíclicas e diversos instrumentos concedidos por Deus.
O citado autor evidencia que toda verdade absoluta é intolerante e é essa intolerância que vai fundar a inquisição, cuja heresia era sua maior afronta, visto que atacava o centro do sistema.
Para Aury Lopes Júnior (2010), o sistema inquisitório institui uma desigualdade entre o juiz inquisitor e o acusado, sendo que esse deixa de ser imparcial, assumindo a atividade de inquisitor, de forma a atuar desde o princípio do processo como acusador. Ele afirma que pelo fato de ter o juiz a atribuição de juiz e acusador, o acusado deixa de ser um sujeito processual e passa a ser apenas um objeto de investigação.
Com o intuito de acrescentar de forma pontual o estudo do presente trabalho, vale aqui pontuar as características que o autor acima citado atribui ao sistema inquisitório, que vão colidir diretamente com os princípios que não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, mas que com o advento da Lei 11.690/2008 foram, ainda que de forma sutil, inseridas no contexto das normas brasileiras e que estão sendo questionados pelos doutrinadores cujo objeto pretende-se dissertar nos capítulos posteriores. Assim se configura tal posicionamento:
Frente a um fato típico, o julgador atua de ofício, sem necessidade de prévia invocação, e recolhe (também de ofício) o material que vai constituir seu convencimento. O processado é a melhor fonte de conhecimento e, como se fosse uma testemunha, é chamado a declarar a verdade sob pena de coação. O juiz é livre para intervir, recolher e selecionar o material necessário para julgar, de modo que não existem mais defeitos pela inatividade das partes e tampouco existe uma vinculação legal do juiz.
O juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga. Com relação procedimento, é escrito, secreto e não contraditório. Originariamente, com relação à prova, imperava o sistema legal de valoração ( a chamada tarifa probatória). A sentença não produzia coisa julgada e o estado de prisão do acusado no transcurso do processo era uma regra geral (LOPES JÚNIOR, 2010, p.158).
No século XIII, foi instituído o Tribunal de Inquisição ou Santo Ofício que tinha como função fazer cumprir os mandamentos da Igreja Católica compelindo a todos que fossem contrários e, principalmente aos herejes, a se submeterem a esse órgão “julgador”.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2010) assim define o sistema inquisitório:
Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece. Sem embargo de sua fonte, a Igreja, é diabólica na sua estrutura (o que demonstra estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno!), persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma finalidade específica e, porque serve- e continuará servindo, se não acordarmos- mantém-se hígido (COUTINHO,2010, p.18).
Nota-se que o mais interessante para o presente estudo é a observação de que nesse sistema inquisitório, já abolido há muito tempo pela legislação brasileira, a característica principal consistia na atribuição de acusador e julgador nas mãos de um mesmo juiz. Este juiz detinha a gestão das provas.
2.3 Sistema Acusatório
De acordo com Aury Lopes Júnior (2010) o sistema acusatório surgiu no direito grego e tinha como característica principal a participação popular no exercício da acusação e do julgamento. Vigia o sistema de ação popular para os delitos graves nos quais qualquer pessoa podia acusar e também pela acusação privada para dos delitos que não eram tão graves.
O mesmo autor afirma que as características do sistema acusatório atual consistem na clara distinção entre as atividades de acusar e julgar, inferindo que a iniciativa probatória deve ficar por conta das partes. Acrescenta que o juiz é um terceiro imparcial, alheio à investigação e passivo em relação à coleta de prova. Defende também que o sistema atual tem como característica a igualdade das partes e que o procedimento geralmente é feito de forma oral. Pontua a respeito do princípio da publicidade em todo o procedimento, assim como o contraditório e a ampla defesa, atentando tanto para a segurança jurídica da coisa julgada, como para a possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.`
Uma das características também apontadas pelo autor e que muito diz respeito ao tema do presente trabalho, é o fato de haver ausência de uma tarifa probatória, estando a sentença sustentada pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional.
Fato importantíssimo é a abordagem do autor a respeito da função probatória do juiz conforme abaixo:
É importante destacar que a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um gravíssimo erro. O mais interessante é que não aprendemos com os erros, nem mesmo com os mais graves, como foi a inquisição. Basta constatar que o atual CPP atribui poderes instrutórios para o juiz, a maioria dos tribunais e doutrinadores defende essa “ postura ativa” por parte do juiz (muitas vezes invocando a tal “verdade real”, esquecendo a origem desse mito e não percebendo o absurdo do conceito), proliferam projetos de lei criando juízes inquisidores e “juizados de instrução” etc (LOPES JÚNIOR, 2010,p. 155).
Ele afirma que tal qual é a estrutura social e política do Estado, deve o sistema acusatório assegurar a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz para que ele possa sentenciar de forma digna o acusado e garantir-lhe a não ocorrência de abusos, sem tratá-lo como condenado desde o início da investigação. Observa-se, no entanto, que neste sistema a prova está nas mãos das partes e o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso concreto. Na essência, o contraditório é pleno, estando o juiz em posição passiva, sempre longe da colheita da prova.
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010), no que se refere ao princípio da verdade real, esclarece que nesse ponto o sistema confere iniciativa probatória ao juiz, porém o autor acima citado, observa tal iniciativa com bastante limitação:
No campo da distribuição dos ônus da prova há uma ampla liberdade de iniciativa probatória conferida ao juiz, frequentemente legitimada pelo decantado princípio da verdade real. Ora, além do fato de não existir nenhuma verdade judicial que não seja a verdade processual, tal princípio, na realidade, na extensão que se lhe dá, pode ser- e muitas vezes foi e ainda é- manipulada para justificar a substituição do Ministério Público pelo juiz, no que se refere ao ônus probatório que se reserve à aquele.
Nesse ponto, pensamos que somente uma leitura constitucional do processo penal poderá afastar ou diminuir tais inconvenientes, com a afirmação do princípio do juiz natural e de sua indispensável imparcialidade. Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do juiz deve limitar-se, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos da nova redação do art. 156, I, do CPP, trazida pela Lei nº 11.690/2008 (OLIVEIRA, 2010, p.10/11).
2.4 Sistema Misto
Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) esclarece que no século XIX, no ano de 1808, apresentava-se à prática jurídica um outro modelo processual. Neste modelo a jurisdição se inicia na fase de investigação sob a presidência do magistrado (Juizados de Instrução) da mesma forma que no sistema inquisitivo, porém a acusação ficava por conta de outro órgão, sendo de competência do Ministério Público, como é usado no sistema acusatório.
Daí a nomenclatura de sistema misto, visto que este apresentava características do sistema inquisitório e do sistema acusatório.
2.5 Sistema Adotado no Processo Penal Brasileiro
Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) esclarece que muitos doutrinadores atribuem ao modelo processual penal brasileiro as características do sistema misto, em razão da atuação do juiz criminal que tem natureza tanto acusatória como inquisitória. Ele esclarece que alguns afirmam que só o fato de existir um inquérito policial na fase pré-processual já seria uma característica do sistema misto.
Mauro da Fonseca Andrade (2008) afirma que para se definir qual o sistema processual penal a ser adotado em seu país, o legislador considera três fatores de suma importância sendo: o grau de imparcialidade que se atribuirá aos juízes criminais, o grau de eficiência de sua repressão criminal e o grau de tecnicidade de sua repressão criminal, de modo a ajustá-la aos postulados da ciência processualista atual.
Voltando ao primeiro autor, tem-se que a definição do sistema processual adotado por um país está no exame do processo, enfatizando a atuação do juiz e ressaltando que inquérito não é processo.
De modo a esclarecer o sistema processual penal utilizado no Brasil, Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) assim define:
Portanto, limitada a iniciativa probatória do juiz brasileiro ao esclarecimento de dúvidas surgidas a partir das provas produzidas pelas partes no processo- e não na fase de investigação- e ressalvada a possibilidade de produção ex offício daquela (prova) para o esclarecimento de prova já produzida (exceção feita à matéria defensiva, para a qual não deve haver limitação à atuação do juiz), pode-se qualificar o processo penal brasileiro como um modelo de natureza acusatória, tanto em relação às funções de investigação quanto às funções de acusação, e, por fim, quanto àquelas de julgamento (OLIVEIRA, 2010, p.15).
Diferente do posicionamento do autor acima, parte da doutrina expressa que a gestão da prova nas mãos do juiz faz com que o sistema seja inquisitivo.
Aury Lopes Jr (2010) afirma que ao atribuir a gestão e o poder de iniciativa probatória ao juiz, funda em sistema inquisitório e, como consequência, afeta o próprio regime legal das provas.
Continua a afirmar que:
Considerávamos que a separação entre as funções de acusar e julgar era a pedra angular da distinção acusatória-inquisitório. Atualmente, pensamos de forma diferente. Na esteira do pensamento de Jacinto Nelson Miranda Coutinho e Franco Cordero, hoje entendemos que é a gestão da prova princípio unificador que irá identificar se o sistema é inquisitório ou acusatório. Se a gestão da prova está nas mãos do juiz, como ocorre no nosso sistema, estamos diante de um sistema inquisitório (juiz autor). Contudo, quando a gestão de prova está confiada às partes, está presente o núcleo fundante de um sistema acusatório (juiz expectador) (LOPES JR, 2010, p. 71).
Jacinto Nelson Miranda Coutinho (2010) de forma pontual expõe seu posicionamento a respeito do assunto:
A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que a “vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos- de todos os factos penalmente relevante, mesmo que não contidos na “acusação”dado o seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases (COUTINHO, 2010, p. 32).
E continua:
O sistema, assim, é tomado como acusatório somente enquanto discurso porque não há, por definição, um sistema com tal natureza, de modo que dizer misto, aqui, é o reconhecer como um sistema inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema acusatório (por ex: exigência de processo devido, de contraditório, de parte, etc) o que lhe não retira o cariz inquisitório (COUTINHO, 2010, p.33).
Como visto, apesar de a maior parte da doutrina entender que o Código de Processo Penal adotada o sistema acusatório, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2010) e Aury Lopes Jr (2010) afirmam que, despido de filtragem constitucional, o citado código adotaria o sistema inquisitivo.
3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O SISTEMA ACUSATÓRIO
Os princípios constitucionais têm o escopo de trazer uma harmonização constitucional referentes às finalidades precípuas, buscando a efetivação de garantias e direitos.
Os princípios constitucionais na visão de Alexandre de Moraes (2011) consistem em determinadas normas que se encontram espalhadas pelo texto constitucional, e, além de organizarem a própria federação, estabelecem preceitos centrais de observância obrigatória aos estados-membros em sua auto-organização.
Para uma melhor elucidação do tema-problema a ser discutido no presente trabalho, passa-se neste momento à análise de alguns princípios constitucionais inseridos no Processo Penal de fundamental importância dentro do contexto estudado. Indispensável, portanto, uma breve conceituação dos princípios que mais contribuem para o entendimento do tema trazido, verificando-se o posicionamento de alguns doutrinadores de forma a alcançar a visão da constitucionalidade e adequabilidade do assunto proposto dentro do sistema de persecução penal adotado pelo Brasil, que no entendimento se configura como Sistema Acusatório.
3.1 Princípio da verdade real e o Sistema Acusatório
A verdade real inserida no contexto constitucional brasileiro, informa que o juiz deverá buscá-la investigando livremente a prova. Apesar disso, existem algumas exceções quando mesmo na presença do interesse público, o juiz deve aceitar a verdade formal ( verdade dos autos ) sem procurar ou investigar a verdade real ou material, como por exemplo, no processo penal, em que ele deverá absolver o réu quando não houver prova suficiente para condená-lo e não ir buscar provas para esta condenação.
Para Luiz Flávio Gomes (2011) o princípio da verdade real, informa que no processo penal deve haver uma busca da verdadeira realidade dos fatos. Diferentemente do que pode acontecer em outros ramos do Direito nos quais o Estado se satisfaz com os fatos trazidos nos autos pelas partes, no processo penal (que regula o andamento processual do Direito penal, orientado pelo princípio da intervenção mínima, cuidando dos bens jurídicos mais importantes), o Estado não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas deve buscar que o ius puniendi seja concretizado com a maior eficácia possível.
Ele afirma que é impossível alcançar a verdade real. No máximo, obtém-se a verdade processual ou a verdade judicial, o que dá no mesmo.
Ainda no entendimento do autor acima citado, dentro do sistema acusatório que importa observar é que nunca será possível reconstruir inteiramente o iter criminis, porquanto parte dele se processa no mundo subjetivo, na mente do delinqüente, sendo inalcançável pelo julgador e pelo Ministério Público, mesmo mediante confissão.
De qualquer modo, Luiz Flávio Gomes (2011) observa que o princípio da verdade real obriga:
a) à busca do verdadeiro autor da infração;
b) à punição desse pelo fato praticado, como praticado;
c) à exata delimitação da culpabilidade do agente.
Para essa garantia, permite-se, ao lado da iniciativa das partes, o impulso oficial pelo magistrado e a produção de provas ex offício, faculdade que é criticável, pois pode contaminar o ente de razão do juiz, levando-o a pré-julgamento, fato esse a ser discutido no presente trabalho, principalmente no que se refere à fase do inquérito policial.
No Direito Processual Penal brasileiro, há institutos que impedem a persepção da verdade real. Portanto, são exceções a esse princípio:
a) a impossibilidade de rescisão de absolvição indevida (res judicata pro veritate habetur), ou seja, não é possível a revisão criminal pro societate;
b) a perempção, que extingue o processo, na ação penal privada, em razão da contumácia ou da simples inércia do querelante;
c) o perdão do ofendido na ação penal privada, como forma de extinção do processo, impedindo também a declaração da verdade real.
Na visão de Eugênio Pacelli de Oliveira (2010), que, ao fazer uma reflexão crítica sobre os malefícios da utilização ideológica do princípio da verdade real, considera que:
Talvez o maior mal causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da idéia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal (OLIVEIRA, 2010,p.388).
Também à busca da verdade real, Felipe Martins Pinto (2012) esclarece em sua doutrina, que a instrução ex ofício pelo juiz de primeiro grau, é o reflexo de resquícios do sistema inquisitivo. Ele afirma que essa busca afronta princípios constitucionais, inclusive o da imparcialidade do juíz, princípio que será estudado nos ítem a seguir, que ao diligenciar inclusive antes do início da ação penal, corrobora para uma pré-concepção a respeito da inocência daquele cujo caso está em discussão.
Ele cita alguns casos de afronta a princípios constitucionais em detrimento de outros para que o magistrado chegasse a uma verdade real. Dentre esses casos, Felipe Martins Pinto (2012) menciona que na ação de Habeas Corpus 35256, o Superior Tribunal de Justiça, ao convalidar a oitiva de testemunhas do Ministério Público além do limite imposto pelo Código de Processo Penal, ignorou os princípios da igualdade das partes e do contraditório em detrimento da “ busca da verdade real”.
Também menciona o caso do Habeas Corpus 62054-RJ que o Supremo Tribunal Federal julgou desprovido, recurso este que questionava a oitiva de testemunhas de ofício pelo juiz de primeira instância, com fundamento na “ busca da verdade material” e também no dispositivo previsto no caput do artigo 209 do Código de Processo Penal que respalda a iniciativa “ inquisitiva” do juiz.
De fato, o princípio da verdade real mostra-se em desconformidade com processo penal moderno, que é regido por garantias constitucionais (além das já citadas, tem-se a coisa julgada, vedação a provas ilícitas, presunção de inocência do acusado, etc.). Ao lado da suposta verdade real, há outros interesses a serem preservados como os da intervenção mínima do Direito Penal, não prolongamento ad infinitum do processo, garantia da liberdade do indivíduo, etc.
Ainda, no entendimento de Felipe Martins Pinto (2012), tem-se:
Em um movimento espiral negativo, a verdade real que; num primeiro momento fundamentava a autonomia do juiz de primeiro grau para determinar diligências probatórias, agrediu mais intensamente a estrutura principiológica do ordenamento jurídico pátrio ao estender ao órgão de segundo grau a oportunidade de complementar a instrução probatória das partes e assola a estrutura processual democrática ao chancelar a possibilidade do juiz pessoalmente carrear provas ao processo, uma autorização que revela uma preocupante obstinação na perquirição da mística verdade real: “ uma obsessão do gênero conduz à tortura” (PINTO, 2012, p.69-70).
Portanto, a abordagem da verdade real no processo penal, sob o pretexto de satisfazer o desejo de segurança jurídica da sociedade, ou a abordagem desta teoria em detrimento da mitigação de outras garantias constitucionais, expressam práticas judiciais que não condizem com o sistema processual penal adotado pela legislação brasileira à luz da constituição da república.
3.2 Princípio da imparcialidade do juiz e o Sistema Acusatório
Da igualdade tira-se a idéia do "interesse público" na resolução dos conflitos. O Estado preocupa-se com a manutenção da igualdade e o papel do juiz passa a ser mais efetiva na relação processual, reforçando, com isto, aparentemente, a idéia de que o juiz constitui-se um órgão neutro e imparcial, que por não ter interesse direto no caso, tutelaria a igualdade das partes no processo. Com isto, estar-se-ia buscando a manutenção do seu escopo último: a pacificação dos conflitos de interesses e a justiça.
O princípio da imparcialidade pode ser considerado, como um dos pilares em que se ergue o sistema acusatório, consagrado pela Constituição Federal, em seu artigo 95, visto exigir do Estado juiz, uma postura imparcial no processo, de desinteresse pelo favorecimento de uma das partes em detrimento do sofrimento da outra. O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. A primeira condição para que o juiz possa exercer sua função dentro do processo é a de que ele coloque-se entre as partes e acima delas. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual seja válida.
Para o professor Paulo Rangel (2009):
A imparcialidade do juiz, portanto, tem como escopo afastar qualquer possibilidade de influência sobre a decisão que será prolatada, pois o compromisso com a verdade, dando a cada um o que é seu, é o principal objetivo da prestação jurisdicional.
Foi pensando justamente na efetividade desse princípio que o legislador, conferiu algumas garantias constitucionais ao magistrado, de forma a torná–lo independente e livre, numa tentativa de impedir que o mesmo fosse perseguido e ou coagido por pressões externas que circundam o processo. Nesse sentido, aos juízes, foram garantidas constitucionalmente a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.
Felipe Martins Pinto (2012) ao dissertar sobre a persecução penal do juiz, e aí, fazendo menção direta ao princípio da imparcialidade, afirma que:
Não se trata aqui de uma reflexão sobre boa ou má-fé do profissional, mas tão somente se reconhece a interferência da carga de informações, valores e experiências prévios e indissociáveis do ser humano e que independem de sua profissão ou ocupação e se conclui que a referida participação compromete a prestação jurisdicional.
Esclareça-se que o juiz não é e jamais poderá se comportar como um espectador privilegiado e estático, o qual presencia o enfrentamento das partes que, relegadas ao arbítrio de seus representantes, sofrerão de forma direta as eventuais omissões e os supostos equívocos na instrução processual, inclusive fruto de culpa grave ou dolo (PINTO, 2012, p.65-66).
A imparcialidade funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da jurisdição, razão por que se busca criar mecanismos capazes de garanti-la. Desta forma, é forçoso reconhecer que a imparcialidade é uma garantia tanto para aquele que exerce a jurisdição, como para aquele que demanda perante ela, mas não deixa de ser meta optada.
3.3 Princípio da inércia da jurisdição e o Sistema Acusatório
A imparcialidade do juiz está diretamente ligada ao princípio da inércia jurisdicional uma vez que em se abstendo de diligenciar ex offício para seu próprio “ pré-conceito” a respeito do demandado, o juiz permanece neutro em relação ao julgamento final da questão.
Aury Lopes Júnior (2010) afirma que “a imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz instrutor (poderes investigatórios) ou quando lhe atribuímos poderes de gestão/iniciativa probatória( LOPES JÚNIOR, 2010, p. 56).
O princípio da inércia jurisdicional, que é uma das características importadas do sistema acusatório, determina que a jurisdição é inerte e não pode ser exercida (no sentido do desencadeamento do processo) de ofício pelo juiz. Isto implica em dizer que para que ele se mova, é necessário que ele seja provocado
Justamente nesse ínterim que está o questionamento do presente trabalho. Conforme o disposto no artigo 156, I do Código de Processo Penal “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”.
Note-se que a democracia do processo penal de essência acusatória está em questão não só por acometer aos juízes a investigação preliminar e a acusação, mas o próprio impulso processual quando em jogo estiver a produção da prova.
A história mostrou, e continua mostrando, não ser em nada melhor para o processo penal uma tal liberdade, justo porque mantém intacta a possibilidade natural de se decidir antes e, tão só depois. Dar essa liberdade ao juiz, significa dar a ele o poder de justificar uma decisão previamente tomada.
Nesse entendimento Felipe Martins Pinto (2012) afirma o seguinte:
A estrutura oficial do Estado, principalmente o jus puniendi, carece, indeclinavelmente de credibilidade para a sua manutenção, pois a descrença geral retira a legitimidade do órgão de poder e, concomitantemente, extrai-lhe a viabilidade, pois a coletividade precisa depositar a confiança de que o Estado está apto a solucionar os conflitos que lhe chegam.
A instrução probatória de ofício pelo juiz da causa caminha em sentido oposto à imparcialidade objetiva, ou seja, à “ aparência de imparcialidade” que se deve transpirar para os jurisdicionados(PINTO, 2012, p.60-61).
Não está se falando aqui a respeito do impulso processual por parte do julgador que tende a evitar procrastinações indevidas. Para tanto, há instrumental suficiente na estrutura legislativa brasileira, sendo necessário fazer o uso razoável das competências jurisdicionais. A observação maior está na não mitigação de princípios constitucionais em detrimento de outros, como é o caso da presunção da inocência, tema a ser abordado no item seguinte.
3.4 Princípio da presunção de inocência e o Sistema Acusatório
Previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição brasileira, este princípio é denominado "da presunção de inocência" ou da "presunção de não culpabilidade".
Acolhida também nos tratados internacionais sobre direitos humanos, esta garantia representou grande avanço. Ninguém poderia ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Já constava da Declaração Francesa de 1789 no art. 9º: "Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado (...)".
A Declaração Universal de 1948 assentou, com mais detalhes, que "toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa" (art. XI).
A presunção de inocência prevista, de forma positivada, desde 1789, foi repetida também no art. 8º, §2º, do Pacto de São José da Costa Rica (introduzido no Brasil pelo Decreto Federal n. 678/92) e no art. 14, §2º, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966.
Porém a jurisprudência, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, tem afirmado que as medidas coercitivas ou as providências restritivas do jus libertatis anteriores à decisão condenatória definitiva não ofendem o princípio da presunção de inocência.
Sinaliza a Súmula 9 do STJ no sentido de que "A exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência". Tal enunciado não passou imune a críticas, mas se necessária a sua aplicação, deve ser bem compreendido e aplicado com restrições sem causar dano ao estado de inocência do acusado.
É também constitucional, para o STJ, o art. 2º, §3º, da Lei Federal n. 8.072/90, que determina que em caso de sentença condenatória por crime hediondo "o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade". Este posicionamento é censurável, tendo em conta que a presunção legal é de não culpabilidade. Portanto, o que o juiz deveria decidir fundamentadamente é se o réu precisaria recolher-se à prisão para apelar até o trânsito em julgado da decisão, e não o contrário. Isto é evidente, porque a regra é poder o réu, em qualquer caso, apelar em liberdade.
Dito isto, é preciso observar que as conseqüências do princípio do estado de inocência são resumidamente:
a) a de estar obrigado o julgador a verificar detidamente a necessidade da restrição antecipada ao jus libertatis do acusado, fundamentando sua decisão;
b) a de atribuir inexoravelmente o ônus da prova da culpabilidade do acusado ao Ministério Público ou à parte privada acusadora (querelante);
c) concomitantemente, o efeito de desobrigar o réu de provar a sua inocência;
d) o de assegurar a validade da regra universal In dubio pro reo, aplicada no direito anglo-saxônico com o nome de reasonable doubt, que sempre favorece a posição jurídica do acusado; e
e) a revogação (ou não recepção) do art. 393, inciso II, do Código de Processo Penal, que mandava lançar o nome do réu no rol dos culpados, por ocasião da sentença condenatória recorrível.
Como análise do princípio da presunção de inocência em relação ao disposto no artigo 156,I do Código de Processo Penal, tem-se que, o magistrado, ao solicitar uma prova ainda no inquérito policial, estaria ali, mesmo que “subjetivamente”, tentando fundamentar uma decisão de condenação previamente estabelecida por ele, deixando assim o demandado de ter a sua inocência presumida.
Para finalizar essa parte da abordagem, interessante se faz a observação de Felipe Martins Pinto (2012):
Vale lembrar que a discussão sobre os limites de prova no processo penal não é um simples problema jurídico processual-penal, sendo, muito antes, uma questão que guarda íntima conexão com as relações estabelecidas entre o Estado e o cidadão: “ se encontrarmos um processo criminal iníquo, com procedimentos arbitrários, prepotentes, é evidente que estaremos em face de um Estado ditatorial, déspota,. Se, ao contrário, o processo for constituído por um procedimento que tenha em mira salvaguardar da maneira mais completa possível a dignidade da pessoa humana, estaremos em face de um Estado democrático (PINTO, 2012, p.71).
Mais uma vez, observa-se a necessidade da garantia dos princípios constitucionais, visando acima de tudo, a dignidade da pessoa humana como já mencionado.
4. ANÁLISE DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 156, I DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008)
A Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941- Código de Processo Penal, relativos à prova, e dá outras providências.
Uma dessas alterações que se torna o tema principal do presente estudo consiste no disposto no artigo 156, I conforme abaixo:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I- ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
Conforme os princípios já estudados no presente trabalho como o da verdade real, imparcialidade do juiz, inércia da jurisdição e presunção de inocência, verifica-se que o questionamento a respeito da produção de prova pelo juiz de ofício, diante do sistema acusatório brasileiro, levanta polêmicas a respeito de sua constitucionalidade. Para tanto, interessante uma breve análise do valor probatório no inquérito policial.
4.1 O valor probatório do inquérito policial
O processo destina-se a aplicação do Direito, esta aplicação por sua vez depende da existência ou verificação dos fatos aludidos. A prova é a garantia de um processo justo, sem arbitrariedades, mostrando a veracidade e a realidade do que foi exposto. Apesar das críticas que têm sido feitas ao inquérito, este constitui ainda a melhor forma de colher previamente elementos a respeito de um delito e sua autoria.
Quando são realizadas diligências regularmente, o inquérito policial contêm peças de relativo valor probatório e outras de total valor como o auto de prisão em flagrante, os exames de corpo de delito, os quais não se renovam em juízo e são realizados com a devida urgência, sob pena de desaparecerem os vestígios.
É de se reconhecer como válida, para fins de condenação, a prova produzida tão somente no inquérito policial se, oferecida em juízo como suporte instrutório da peça vestibular, for permitida à defesa plena possibilidade de contrariá-la. Impõe-se essa solução porque desse modo satisfeita se encontra a garantia constitucional do contraditório. Há de se considerar, aliás, que algumas provas do âmbito policial se tornam logo definitivas. Diz expressamente o art. 158 do Código de Processo Penal Brasileiro que quando a infração deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
Tanto quanto o exame de corpo de delito, outras provas periciais podem ser realizadas neste procedimento administrativo, algumas sem a participação do investigado, mas, com dose de veracidade, visto que são pesquisas que exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo então difíceis de serem deturpadas. Nessas circunstâncias possuem o mesmo valor das provas em juízo.
Ressalta-se, porém, que até nestes casos tudo está condicionado às circunstâncias do fato e à formação do livre convencimento do juiz se considerado o princípio da verdade real.
Não se nega, a priori, o valor da confissão na Polícia. Mas para que esta tenha valor probante é mister que se acompanhe de elementos de convicção colhidos na instrução. O inquérito é peça informativa que só ganha foros de valoração quando corroborado por outras provas obtidas em juízo. À exceção dos exames periciais que são válidos como material probante, os demais elementos são de cunho informativo.
A possibilidade de obter certas provas na instrução é maior, por causa do princípio do contraditório, onde há acusação e defesa. No entanto, quando o inquérito é bem preparado seu valor não será só a informação sob a materialidade e a autoria do delito, poderá ser alicerce, base da ação penal, isto quando o conjunto de informações por este apuradas convergirem com o que foi produzido pela mesma. É um valor relativo que o inquérito policial pode alcançar.
Pode, por exemplo, o agente confessar perante a autoridade policial a autoria de um crime e as demais circunstâncias contidas no inquérito, e depois, negá-las na presença do juiz. Neste caso pode o magistrado não acatar a retratação e considerar o que consta no procedimento administrativo.
Não sendo a instrução criminal coroada de êxito ante a ação dispersiva do tempo decorrido, o desaparecimento ou mudança dos fatores materiais ou eventual má vontade ou falhas das pessoas a cuja colaboração tiver o magistrado de recorrer, nada obsta a que, sem a menor reserva, se valha o julgador da prova existente apenas no inquérito policial, com o convencimento de ser ela a verdadeira e de não ter sido anulada por fatos ou circunstâncias mais fidedignos, conseguidos na instrução.
Tendo em vista os princípios do livre convencimento do juiz com fulcro no art. 157 do Código Processual Penal Brasileiro e da verdade real de acordo com o art. 197 do Código citado, o inquérito, como qualquer outra prova tem valor relativo até que se prove com estabilidade o contrário.
Quando o delito é recente e a opinião pública clama por justiça envolvida em paixões, ódios, etc., este procedimento colabora para que a decisão do juiz não seja aleatória e imprudente. Portanto, não se deve repudiar o inquérito como elemento da livre convicção do juiz, desde que, não seja totalmente adverso os elementos que o contém. Sempre que se focaliza a livre convicção do juiz, ressalta-se a liberdade com a qual o magistrado fundado em seu arbítrio e na verdade invoca algum elemento produzido no inquérito.
Os fatos apurados no procedimento administrativo quando entrosados com a instrução sugerem confirmação probatória. Os elementos apurados no inquérito policial reforçam o que foi produzido no processo. O magistrado dotado de muita cautela não deve edificar conclusões precipitadas sobre estas possíveis provas, pois, é necessário salientar que estas foram produzidas inquisitorialmente, isto é, sem a cooperação do acusado. Quando aceita é elemento subsidiário, visto que seu valor estará sempre adstrito ao resultado do que é produzido na instrução criminal.
4.2 Dos poderes instrutórios dos juízes e da inconstitucionalidade do artigo 156, I do Código de Processo Penal
O juiz, face ao seu dever de imparcialidade, deve colocar-se entre as partes, mas de forma eqüidistante a elas. Quando houver uma nescessidade deve ouvir a outra parte e somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor as suas razões, de apresentar as suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela porção de parcialidade das partes, uma apresentando a tese e outra a antítese, é que o juiz pode fazer a síntese. Este procedimento seria estabelecer o contraditório entre as partes.
O grande doutrinador Cândido Dinamarco (2010) faz uma distinção de extrema importância, dentro da perspectiva do papel do juiz dizendo que: "o juiz moderno compreende que só lhe exige imparcialidade no que diz respeito à oferta de iguais oportunidades às partes e recusa a estabelecer distinções em razão das próprias pessoas ou reveladoras de preferências personalíssimas. Não se lhe tolera, porém, a indiferença” (DINAMARCO, 2010, p.89).
Referente às funções, o juiz tem a responsabilidade de prover a regularidade do processo, ou seja, não só evitar que as irregularidades de rito e de ordem formal ocorram, mas promover as medidas que assegurem a justa aplicação da lei penal do processo. Incumbe-lhe também manter a ordem no curso dos atos processuais, podendo para tal fim até requisitar a força pública.
Cabe ainda ao juiz na condução do processo, observando o previsto no artigo 251 do Código de Processo Penal, indeferir a realização de prova que entenda desnecessária, sem que isso redunde em cerceamento de defesa. No tocante a este indeferimento, o dispositivo citado confere ao magistrado a incumbência de prover a regularidade do processo, evitando atrasos indevidos e possíveis abusos praticados pelas partes. Porém, não lhe permite impedir a realização de prova lícita, previamente requerida por uma delas, sob o motivo de ter avaliado que a sua produção seria desnecessária ao desfecho do processo O que garante o juiz não é a letra fria da lei, mas sim sua independência, a fortaleza moral e coragem de decidir.
Sendo o representante do Estado e condutor do processo, cabe ao juiz a outorga da tutela jurisdicional. É sem dúvida, quem mais pratica atos processuais, pois a ele compete a ordenação da marcha procedimental, a soluções das questões que, passo a passo, vão se apresentando, a presidência na colheita da prova, tendo inclusive poderes instrutórios, mas que deve ser limitado como se apresenta no presente estudo.
Ao analisar o poder instrutório e investigatório do juiz, Marcos Alexandre Coelho Zilli (2008), aduz que:
Ora, como se sabe, investigar e instruir são fenômenos diversos. Primeiro concentra as energias para a construção de uma acusação de modo que o sujeito que a conduz dificilmente deixará de ficar a ela vinculado.
Diferente é o fenômeno da instrução. Aqui examina-se a veracidade, ou não, de uma imputação que foi apresentada por um sujeito invariavelmente diverso do julgador. Todos participam desse experimento. Uns de forma prevalente-as-partes-, outros apenas em caráter suplementar-juiz ou jurados-, desde que informados pela necessidade de melhor aclarar os fatos (ZILLI, 2008, p.2).
Essa matéria inclusive já foi discutida no âmbito da ADI 1570/DF no ano de 2004, conforme a seguir:
Publicação: DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046 RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838
Parte(s): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, PRESIDENTE DA REPÚBLICA, CONGRESSO NACIONAL
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL.
1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras.
2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal.
3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.( ADI 1570 DF, Tribunal Pleno - Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA -, Julgamento: 11/02/2004).
Antes desse julgamento, Luiz Flávio Gomes (1999) já acrescentava algo importantíssimo:
O que o legislador responsável pela Lei 9.034/95 quis foi, da noite para o dia implantar (no nosso país) o sistema inquisitório de triste memória, isto é, nos albores do século XXI, seu desejo é o de que a praxe judicial seja a da Idade Média. Esse retrocesso constitui mais uma prova de que o poder político achava-se, às vezes, desenganadamente perdido frente ao fenômeno da criminalidade, principalmente organizada. Não sabe o que fazer e acaba por estabelecer em lei o que está no âmago mais recôndido da nossa herança primitivista-atávica (poderes inquisitivos). Em pleno Estado Constitucional e Democrático de Direito, tentar restabelecer uma praxe medieval denota o primitivismo com o qual, em algum momento, se lida com esse grave problema social e comunitário que se chama “crime’ (GOMES, 1999, p.183).
Esse mesmo autor, ao dissertar sobre o no artigo 156, I do Código de Processo Penal, posiciona-se no sentido de ser este artigo inconstitucional tendo em vista que o juiz, em hipótese alguma, poderia produzir provas de ofício, ainda mais, sem ter se iniciado a ação penal, podendo esse ato ser considerado como ofensa ao sistema acusatório constante na Constituição Federal de 1988.
Coadunando com esse entendimento, Aury Lopes Júnior (2010) assim reitera:
Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios como o famigerado art. 156 do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra de igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência fulmina a principal garantia da jurisdição que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório (LOPES JÚNIOR, 2010, p.71).
Ainda acrescenta que:
Imaginem tais poderes nas mãos de algum juiz-justiceiro, titular de uma vara “especializada (de combate a)”, para compreender-se o tamanho do problema e o grave retrocesso de tal disposição legal. Perde-se um juiz e se ganha um inquisitor. Um bom negócio, sem dúvida.resta saber para quê e para quem (LOPES JÚNIOR, 2010, p.10).
Guilherme Madeira Dezem (2008) também se posiciona neste sentido:
A grande alteração neste inciso primeiro refere-se à possibilidade de o magistrado determinar, mesmo antes do início do inquérito policial, a produção de provas urgentes e relevantes.
A determinação da produção de prova de ofício pelo magistrado no inquérito policial deve ser entendida, novamente, dentro do quadro do sistema acusatório já apresentado: o magistrado somente poderá determinar a produção de provas que tenham sido requeridas pelos sujeitos atuantes no inquérito policial.
Se o magistrado atuar de ofício no inquérito policial haverá violação do sistema acusatório e, também, haverá a transformação deste magistrado em um verdadeiro inquisidor, de maneira a que se possa questionar sua parcialidade pela via da exceção (DEZEM, 2008, p.52).
Também já se manifestou o STF no Habeas Corpus nº 82.507 de Sergipe, Relator Sepúlveda Pertence, conforme abaixo:
Publicação: DJ 19-12-2002 PP-00092 EMENT VOL-02096-04 PP-00766
Parte(s): ALBANO DO PRADO PIMENTEL FRANCO
EDUARDO ANTÔNIO LUCHO FERRÃO
RELATOR DO INQ Nº 329 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. STF: competência originária: habeas corpus contra decisão individual de ministro de tribunal superior, não obstante susceptível de agravo. II. Foro por prerrogativa de função: inquérito policial.
1. A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si só para o tribunal respectivo as funções de polícia judiciária.
2. A remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste "autoridade investigadora", mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações.
III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido.( HC 82507 SE, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 09/12/2002).
O ilustre doutrinador Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) juntamente com os posicionamentos acima expostos, dá uma contribuição muito importante para o entendimento desse questionamento:
O juiz não tutela e nem deve tutelar a investigação. A rigor, a jurisdição criminal somente se inicia com a apreciação da peça acusatória (art. 395 e art. 396, CPP). No curso do inquérito policial ou de qualquer outra investigação a atuação da jurisdição não se justifica enquanto tutela dos respectivos procedimentos. O juiz, quando defere uma prisão cautelar, quando defere uma interceptação telefônica ou a quebra de uma inviolabilidade pessoal, não está, nem nesse momento, protegendo os interesses da investigação criminal. Na verdade, como garantidor que é das liberdades públicas, ele estará exercendo o controle constitucional das restrições às inviolabilidades, nos limites da Constituição da República e do devido processo legal(OLIVEIRA, 2010, p.96).
Para Marcos Alexandre Coelho Zilli (2004), este é o entendimento:
Assim, quando o juiz se põe a apurar um fato, não limitado ainda pela descrição formalizada que se subsume a uma previsão típica, ilícita e culpável, acaba por desviar-se do papel a ele originariamente traçado, qual seja, de aplicação do direito e de soluções dos conflitos penais, imiscuindo-se na atividade que se esperaria fosse exercida, apenas, pela acusação, o que acaba aproximando o quadro daquele de inspiração inquisitória (ZILLI, 2004, p.186).
O que se espera na verdade é que todas as disposições legais sejam interpretadas pelo magistrado no momento da sua aplicação. Esta interpretação deve decorrer da análise da norma jurídica que vai ser aplicada aos casos concretos. O juiz ao interpretar a norma, deve procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir.
O ato interpretativo não se resume, portanto, em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, pois o intérprete deve levar em conta o contexto social, os princípios jurídicos, compreendendo a norma de forma a descobrir o seu sentido, alcance e significado, estando presentes em sua decisão os fatos e valores dos quais a norma advém, bem como os fatos e os valores supervenientes. Ele a compreende a fim de aplicar em sua plenitude o significado nela objetivado.
Essa é a visão de Geraldo Prado (2005):
A relevância do processo hermenêutico para a imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete, este mediador, principalmente se for o juiz penal, sempre contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o guiarão, por meio da assunção de significados concernentes a uma determinada concepção de Direito.
Interpretar deriva de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre o texto e a realidade para, de acordo com o Baracho, desenvolver-se o processo intelectivo através do qual, partindo da forma lingüística contida no ato normativo, chegar-se ao seu conteúdo ou significado.
Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero instrumento de aplicação mecânica de um texto legal, suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um computador. Eis a razão de Couture ter dito que: “Interpretar é ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, o que significa dizer, por uma concepção do mundo e da vida.Interpretar é dar vida a uma norma.
Esta é uma simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível (...) e suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem e, por isso, estão prenhes de subjetivismo (PRADO, 2005, p.49).
Também acrescenta Renato Nalini (2006):
A imparcialidade do juiz moderno não deve ser pensada como alienação e distância do drama cuja tentativa de solução lhe é apresentada. Diante da ruptura de paradigma do edifício jurídico, sem substituição por outro, a neutralidade do juiz também se perdeu.
Imparcialidade, para o juiz, passa a ser o equilíbrio para entrever a alternativa possível no encaminhamento do conflito. À solução viável não se chegará, se desatento da realidade circundante (NALINI, 2006, p.275).
Para corroborar com o entendimento acima, vale citar o anteprojeto do Código de Processo Penal, elaborado por uma Comissão de Juristas, criado na forma de Requerimento 227/2008, aditado pelos Requerimentos 751 e 794, ambos de 2008, e pelos Atos do Presidente 11,17 e 18, também de 2008, cujo relator-geral é Eugênio Pacelli de Oliveira e o coordenador da comissão era o ministro Hamilton Carvalhido. Segue então a exposição de motivos, considerando o estado democrático de direito:
Com efeito, a explicação do princípio acusatório não seria suficiente sem o esclarecimento de seus contornos mínimos, e, mais que isso, de sua pertinência e adequação às peculiaridades da realidade nacional. A vedação de atividade instrutória ao juiz na fase de investigação não tem e nem poderia ter o propósito de suposta redução das funções jurisdicionais. Na verdade, é precisamente inverso. A função jurisdicional é uma das mais relevantes no âmbito do Poder Público. A decisão judicial, qualquer que seja o seu objeto, sempre terá uma dimensão transindividual, a se fazer sentir e repercutir além das fronteiras dos litigantes. Daí a importância de se preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos em relação à formação dos elementos que venham a configurar a pretensão de qualquer das partes. Em processo penal, a questão é ainda mais problemática, na medida em que a identificação com a vítima e com seu infortúnio, particularmente quando fundada em experiência pessoal equivalente, parece definitivamente ao alcance de todos, incluindo o magistrado. A formação do juízo acusatório, a busca de seus elementos de convicção, o esclarecimento e a investigação, enfim, da materialidade e da autoria do crime a ser objeto de persecução penal, nada tem que ver com a atividade típica da função jurisdicional. Esclareça-se que as cláusulas de reserva de jurisdição previstas na Constituição da República, a demandar ordem judicial para a expedição de mandado de prisão, para a intercepção telefônica ou para o afastamento da inviolabilidade do domicílio, não se posicionam ao lado da preservação da eficiência investigatória. Quando se defere ao juiz o poder para a autorização de semelhantes procedimentos, o que se pretende é tutelar as liberdades individuais e não a qualidade da investigação (Disponível em http://www.senado.gov.br/novocpp≥. Acesso em 25/07/2013).
Portanto, ao prever o artigo 156, I do Código de Processo Penal, a respeito do poder instrutório de ofício do juiz, deve tal norma ser considerada inconstitucional, tendo em vista todos os princípios já estudados, e se assim não acontecer, deve o juiz interpretá-la de forma limitada, utilizando-a apenas dentro das suas atribuições jurisdicionais, estando fundado principalmente na imparcialidade, contraditório e presunção de inocência. Deve este, utilizar-se de tal norma para esclarecimento de dúvidas surgidas a partir das provas produzidas pelas partes no processo.
5. CONCLUSÃO
Como visto no presente trabalho, o artigo 156, I do Código de Processo Penal com a nova redação dada pela Lei 11.690/2008 atenta contra os princípios da imparcialidade do juiz, da inércia da jurisdição, da presunção de inocência, tudo isso com a justificativa de se buscar a “verdade real”.
Ocorre que a legislação brasileira, não pode mais ser interpretada apenas à luz da literalidade da norma. A necessidade que se tem da interpretação do arcabouço legal sob a luz de princípios, se torna indispensável uma vez que, embora existente e vigente, o dispositivo previsto no artigo 156, I do Código de Processo Penal encontra-se em desconformidade com o sistema acusatório adotado pela legislação brasileira, significando por assim dizer, um retorno à natureza do sistema inquisitório.
A previsão que permite o magistrado agir de ofício no inquérito policial com vistas a requerer prova, fere profundamente o princípio de que as “partes” é que deverão produzir provas, garantindo-se, portanto, a imparcialidade do juiz.
Apesar de entendimentos contrários, o sistema adotado no Brasil que é o acusatório, não pode admitir resquícios de sistema inquisitorial deixando com que o juiz produza provas ainda no inquérito policial, tentando buscar fundamento para seu posicionamento pré-concebido a respeito do acusado.
Não cabe ao juiz o poder investigatório, portanto, não cabe a ele também a produção de provas no inquérito policial. Essa produção antecipada fere a inércia jurisdicional, invadindo a competência da polícia judiciária e do Ministério Público.
Uma decisão justa, com as garantias constitucionais é o que se espera do magistrado, estando este para isso, imbuído de poderes jurisdicionais previstos na legislação brasileira.
Sob esse prisma, defendemos a inconstitucionalidade do artigo 156, I do Código de Processo Penal.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Juliana Filgueiras. A inconstitucionalidade do artigo 156, I do Código de Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36660/a-inconstitucionalidade-do-artigo-156-i-do-codigo-de-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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