RESUMO: O presente estudo abordará em linhas gerais, as peculiaridades do Tribunal do júri, que em sua essência democrática, visa proporcionar aos comuns do povo a oportunidade de julgar seus pares pelos crimes dolosos contra a vida; situação que levanta inúmeros questionamentos acerca da real capacidade cognitiva de pessoas que são escolhidas do meio social, muitas vezes sem o menor conhecimento técnico que, de forma salutar se mostraria determinante para um julgamento justo. O tecnicismo jurídico, a dificuldade de se entender o processo, bem como todo o teatro feito por acusação e defesa na busca de uma decisão que além de imotivada juridicamente, goza de uma soberania que em muitas das vezes esconde atrás do senso comum algumas das deficiências desse instituto tão importante para a Administração da Justiça.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do júri; Soberania; Juízes Leigos; Democracia.
INTRODUÇÃO
Uma das maiores manifestações de democracia presentes no ordenamento jurídico é, sem dúvidas, o Tribunal do Júri, pois atribui competência aos comuns do povo para atuar como juízes de fato nos crimes dolosos contra a vida, haja vista que quando acontece um crime dessa natureza, toda a sociedade é atingida de forma que os sete jurados incumbidos de decidir estão fazendo por todo o corpo social, eles são a extensão da vontade social no que toca o evento criminoso. Sua decisão está coberta pelo manto da soberania à luz do art.5º, XXXVIII da C.F, ou seja, possui força de definitiva, embora não seja totalmente absoluta, quando de situações em que o júri profere decisões de forma contraria ao constante nos autos. Aí está o centro de várias discussões acerca da falibilidade da instituição, no que concerne a falta de preparo intelectual mínimo para o entendimento de processo e dos termos técnicos utilizados por advogados, promotores e juízes na condução dos trabalhos. A grande questão é identificar as falhas mais evidentes para depois tentar aperfeiçoar esse importante instituto que reflete a participação democrática num dos mais delicados aspectos da justiça.
A SOBERANIA LEIGA DO TRIBUNAL DO JÚRI
Para aqueles que vivenciam o Direito, seja nos bancos universitários, seja nas carreiras jurídicas, sabem que toda e qualquer decisão proferida por juiz togado, ou seja, um Magistrado deve ser motivada, fundamentada, ou seja, o juiz que preside o processo, deve fundamentar seu livre convencimento com base em lei e nos princípios que regem o ordenamento jurídico.
Ao contrario dos juízes togados, o corpo de jurados, ou juízes leigos, proferem suas decisões de forma imotivada, ou seja, muitas vezes manifestando seu livre convencimento de forma discrepante com o conjunto probatório carreado aos autos, tendo em vista a falta de um mínimo conhecimento técnico acerca do que é falado e apresentado pelos “doutores da lei”.
Dessa forma, tal falibilidade permite que o acusado seja julgado com base em qualquer elemento apresentado, vez que as decisões não são motivadas ou fundamentadas, do contrário haveria uma melhor percepção da racionalidade dos jurados bem como proporcionaria uma maior segurança jurídica a tão delicado instituto. O que se busca é saber o que motivou o conselho de sentença a chegar naquele entendimento, uma vez que se está em discussão à autoria e a materialidade do evento criminoso e só com essas nuances devidamente pontuadas e fundamentadas é que se pode fazer um juízo de valor acerca da condenação ou absolvição do acusado. Com maestria, Miguel Reale Júnior corrobora tais apontamentos ao dispor:
A íntima convicção despida de qualquer fundamentação permite a incoerência de que alguém seja julgado a partir de qualquer elemento, o que violenta a segurança social e o respeito aos direitos humanos, haja vista que o objetivo é conciliar a tutela da segurança social com respeito à pessoa humana (Reale JR, 1983, p. 81)
A não fundamentação das decisões pelos jurados significa um retrocesso às teorias obsoletas acerca das diversas teorias que tentavam traçar um perfil criminoso, a exemplo de Lombroso e sua teoria pautada no aspecto físico, ou seja, a não fundamentação pode esconder preconceitos íntimos que poderão julgar o indivíduo pela cor, sexo, religião ou qualquer outro aspecto irrelevante para o deslinde do crime; dessa forma gerar-se-á um descrédito, uma insegurança ante a ausência de uma motivação que consubstancie a decisão.
A lei, de certa forma, vem contribuir para que a instituição do júri apresente algumas deficiências, no que toca o preparo ou a falta de preparo dos jurados a depender do caso concreto. O diploma Processual Penal dispõe em seu art. 436 que o jurado deverá ser pessoa maior de 18 anos e de notória idoneidade; contudo averbe-se que se trata de um requisito por demais subjetivo e de certa forma até complicado de se mensurar, haja vista não haver como se calcular a idoneidade de alguém em todos os seus aspectos.
Além de vaga, é bastante insegura a expressão idoneidade trazida pelo Código de Processo Penal, isso porque alguém pode ser considerado idôneo sob determinada nuance, por exemplo, a honestidade, e ser inidôneo sobre outro aspecto, por exemplo, ser intolerante perante as diferenças, sendo esta condição de existência oculta e fora do conhecimento do corpo social de determinada comunidade.
Além de uma idoneidade moral que esteja dentro dos parâmetros do homem médio, que é o mínimo que se espera, o jurado deve ter também, e isso a lei processual penal não traz, uma idoneidade intelectual, ou seja, o mínimo de conhecimento técnico que lhe proporcione o mínimo de entendimento acerca do que lhe é direcionado tanto em palavras como em documentos.
Deve-se levar conta que o jurado, muitas das vezes é desconhecedor até dos princípios constitucionais que regem nosso ordenamento. Nesse passo, como se esperar que tenham base suficiente para entender toda a gama probatória que lhe é trazida, o jurado não sabe, por exemplo, o que caracteriza uma legítima defesa ou uma excludente de ilicitude, e além do mais deve-se levar em conta também que, o banco dos réus não é banco universitário, ou seja, o jurado não está ali para ter aulas de Direito Constitucional, Penal ou Processual Penal e sim para serem juízes do fato o qual muitas das vezes é regido tão somente pelo senso comum e pelo empirismo.
Embora os jurados tenham acesso a todo o processo no dia do julgamento, há de se convir que o dia do julgamento não proporciona tempo hábil para que possam absorver o mínimo de entendimento do processo que na sua maioria se apresenta de forma densa e em vários volumes o que dificulta ainda mais um entendimento eficaz de tudo que nos autos apresente relevância. Sob as considerações acima pontuadas acerca da idoneidade e da falta de conhecimento técnico, trazemos a baila seguinte pensamento de Aury Lopes Júnior:
A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves inconvenientes do Tribunal do Júri. Não se trata de idolatrar o juiz togado, muito longe disso, senão de compreender a questão a partir de um mínimo de seriedade científica, imprescindível para o desempenho do ato de julgar. (Lopes Júnior, 2004, p. 141)
A grande questão é, como se pode atribuir soberanidade aos veredictos proferidos por juízes leigos que, desprovidos do mínimo conhecimento técnico, proferem decisões imotivadas e sua maioria baseada no empirismo? O legislador constituinte não se atentou para as dificuldades práticas existentes no processo penal. Nas pequenas cidades, por exemplo, as pessoas devido o reduzido número de oportunidades, não possuem conhecimento técnico-jurídico mínimo para proferir uma decisão congruente com o que fora apresentado em plenário; alie-se a isso o fato de que estamos em uma era que o profissional do Direito não é mais visto como antes, ou seja, até os juízes togados são alvo de reclamação acerca da evolução jurídica.
O tecnicismo exacerbado é outro fator que por demais atrapalha os trabalhos do tribunal do júri, as expressões desconhecidas, a forma como são redigidas, tudo isso tem sido um óbice no bom andamento do aludido procedimento. Em obra publicada Rogério Lauria Tucci, apresenta alguns aspectos que tem gerado nulidade em tribunais de Justiça Estaduais e superiores senão vejamos:
Já se declarou a nulidade de julgamento, pelos seguintes vícios:
a) proposição confusa e complexa (RT 732/685); b) incongruência nas respostas que demonstrou a perplexidade dos jurados (RT 721/507); c) conflitantes manifestações dos jurados (RT 716/429); d) induzimento dos jurados a equívoco em conseqüência da falta de técnica de redação (RT 726/726). (TUCCI, 1999, p. 313)
É de suma importância que estude a possibilidade de uma prévia qualificação dos juízes leigos para atuarem de forma mais segura no tribunal do júri, embora isso não queira dizer que os erros serão totalmente erradicados, representa um avanço no processo democrático da instituição, até os juízes togados sentirão mais segurança na formulação dos quesitos. Nesse ínterim vale ressaltar as palavras de Adriano Marrey ao abordar o júri em sua teoria e prática:
O funcionamento do júri é complexo e requer bom conhecimento de sua técnica procedimental. Os trabalhos nele realizados são sempre dificultosos, freqüentemente cansativos e não devem se repetir por motivo de nulidades, frutos de ignorância. (MARREY, 2000, p. 31)
No tocante a soberania dos veredictos, importa tecer algumas considerações acerca do princípio da non reformatio in pejus, pois é pacífico que se trata de corolário do princípio da ampla defesa, contraditório e duplo grau de jurisdição, pois não fosse a vedação da reforma para pior, os réus não poderiam exercer plenamente seu direito ao recurso (com medo de ter sua situação piorada pelo tribunal ou pelo novo julgamento). O próprio Código de Processo Penal reconhece a possibilidade de apelação de uma sentença proferida pelo tribunal do Júri. Note, porém, que há um limite: se a apelação tiver por fundamento a contrariedade da sentença face às provas dos autos, só será cabível uma única vez.
A Soberania dos veredictos, de certo ângulo, não é algo absoluto, no que toca a possibilidade de um novo julgamento, como dito, de decisão proferida manifestamente contrária a prova dos autos (art.593, III, “d” CPP). Contudo o pricípio da non reformatio in pejus não limita os jurados, que são soberanos em suas decisões. O limite existe para o juiz (no momento da fixação da pena). Fundamental é distinguir as funções de cada um no julgamento do júri: a função dos jurados e do juiz togado. Cada um tem sua competência, sendo que a do conselho de sentença é a de decidir pela absolvição ou condenação com base nos quesitos formulados pelo juiz togado que preside o júri.
Nessa ótica importa dizer que é pacífico o entendimento de que não há violação ao princípio da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, 'c' da CF), pois prevalece no caso o direito ao duplo grau de jurisdição (expressamente previsto no Pacto de San José da Costa Rica) e o direito à liberdade. Ocorre que o juiz está adstrito ao limite punitivo precedente, ou seja, mesmo que em novo julgamento sejam reconhecidas pelos jurados qualificadoras, agravantes ou causas de aumento, que não haviam sido reconhecidas no julgamento anterior, o Magistrado não poderá ultrapassar o quantum fixado no julgamento anterior, sempre frisando que tal situação se restringe ao recurso interposto pela defesa. Vejamos o que dizem Luiz Flávio Gomes e Elisa Maria Rudge a respeito:
Se ao juiz fosse permitido agravar a pena do réu, teria ele prejuízo em razão do seu próprio recurso. A ne reformatio in pejus indireta proíbe que o juiz, na nova sentença, agrave a pena do réu quando o julgamento anterior foi anulado em razão de recurso exclusivo dele. Nenhum réu pode sofrer prejuízo (gravame) em razão de ter imposto recurso (mesmo porque a ampla defesa é outro princípio constitucional que tem que ser observado). (GOMES e RUDGE. 2009)
Destarte, vale frisar que no caso do acusado ser absolvido e de recurso interposto pela acusação, o juiz presidente está livre para condenar caso esse seja o entendimento dos jurados como bem aconteceu no caso do HC nº (HC 89544/RN, rel. Min. Cezar Peluso, 14.4.2009.), trata-se de caso em que o réu foi julgado por três vezes pelo Tribunal do Júri. No primeiro julgamento foi absolvido, tendo o Ministério Público apelado. Provida a apelação, o Tribunal de Justiça determinou que fosse realizado novo julgamento.
No segundo julgamento o réu foi condenado a seis anos de reclusão em regime inicial semi-aberto (excesso doloso na legítima defesa). A defesa apelou desta decisão e o TJ determinou a realização de um terceiro julgamento, do qual resultou a condenação a 12 anos de reclusão em regime integralmente fechado por homicídio qualificado.
Desta decisão, que agravou a situação do réu a partir de um recurso exclusivo da defesa, foi impetrado o recurso de Habeas Corpus que foi de concedido de forma acertada pela Segunda Turma do STF; o HC 89.544/09 determinou a nulidade do terceiro julgamento (no que diz respeito à fixação da pena), por entender que restou configurada a reformatio in pejus.
Alguns estudiosos do Tribunal do Júri apresentam algumas alternativas para aperfeiçoamento desse instituto. Aury Lopes Júnior, pesquisador da área, traz o que seria uma forma interdisciplinar para melhorar a instrumentalidade do Júri. Trata-se do Escabinato, que seria uma instituição na qual juízes togados e juízes leigos trabalhariam em conjunto, ou seja, decidiriam numa espécie de colegiado.
Contudo, quanto a essa inovação cabe tecer algumas considerações, sendo a principal delas o fato de que o Escabinato atingiria diretamente a democracia que é a essência do Tribunal do Júri, visto que não há como negar a influência direta quer o juiz togado exerceria frente ao juiz leigo, ante a sua posição e conhecimento técnico, ou seja, os juízes leigos seriam meramente figuras coadjuvantes, que nada influenciariam na decisão proferida.
Outros estudiosos do assunto defendem de forma contundente a adoção de medidas que visem uma prévia qualificação dos vinte e um jurados escolhidos para determinado júri, os que fossem rejeitados por defesa e acusação já teriam um mínimo de conhecimento caso eventualmente fosse novamente escolhido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pode concluir de tudo isso? A instituição do Tribunal do Júri precisa ou, merece ser reavaliada? De todas as considerações feitas, fica a impressão que devido à tamanha importância do referido instituto, é salutar que se direcione uma atenção diferenciada para esse seguimento da justiça que cuida da apreciação e julgamento das questões mais delicadas e penosas do meio jurídico-social.
Comunga-se aqui do entendimento que prega uma prévia qualificação dos jurados pré-selecionados a atuarem no julgamento de um crime doloso contra a vida, haja vista que uma decisão desprovida de conhecimento mínimo ao entendimento do processo pode culminar em impunidade ou em punição para quem a luz do Direito não merece ser punido. Um indivíduo não tem dúvidas daquilo que ele não tem a mínima noção, ou seja, até para a aplicação do in dúbio pro réu faz-se necessário que os jurados tenham o mínimo de entendimento de tudo que houve e vê nas sessões do plenário.
Contudo para que se possa proporcionar uma reestruturação da instituição do Tribunal do Júri, faz-se necessário uma reestruturação em todo o judiciário, comportando nesse sentido a adoção de medidas que visem dar maiores condições de trabalho em favor do aludido poder; e sobretudo vale a pena frisar que uma prévia qualificação dos jurados significa uma medida de educação; se levar-mos em conta que em nosso país não se estuda na educação básica noções sobre os direitos garantias fundamentais, a prévia qualificação dos jurados seria não só uma forma de educação, mas sim uma forma de prevenção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
FAUSTO. Boris, O Crime do Restaurante Chinês, Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30. Companhia das Letras. 2009
GOMES, Luiz Flávio; RUDGE, Elisa M. Tribunal do júri e a proibição da "reformatio in peius" indireta. Disponível em http://www.lfg.com.br. 29 de abril de 2009.
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução ao Processo Penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
MARREY, Adriano. Teoria e Prática do Júri. 7 ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
REALE JÚNIOR, Miguel. Regimes Penitenciários e Sistema Progressivo e Liberdade Política, em novos rumos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri: Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. 1ª ed. São Paulo: RT, 1999.
Servidor Público no Estado de Sergipe e graduando em Direito pela Faculdade AGES - Paripiranga-BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Paulo César do Nascimento. Tribunal do júri: a soberania que nasce do senso comum Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36707/tribunal-do-juri-a-soberania-que-nasce-do-senso-comum. Acesso em: 23 dez 2024.
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