O presente texto visa abordar a evolução do conceito de crime, ao longo da história, finalizando com uma análise específica acerca do delito de roubo e seu enquadramento dentro de uma perspectiva de lesividade concreta ao bem jurídico protegido pela norma.
Importante mencionar que a sociedade clama por respostas no sentido de recrudescimento das sanções penais, por entender ser a única saída para o combate ao crime, mas como operadores do direito temos que considerar políticas criminais alternativas que visem agregar o acusado de roubo dentro da sociedade, por meio de outros mecanismos pertinentes, e não excluí-lo completamente do convívio social.
Isto porque não faz sentido tentar neutralizar alguém por certo período de tempo, sem permitir que antes tenha a chance de mudar seu comportamento, pelo contrário, a inocuização do sujeito só consegue tirá-lo cada vez mais do sentimento de pertencimento inerente à sua condição de cidadão, o que viola, inclusive, a dignidade da pessoa humana.
O ilícito sempre foi objeto de combate.
No início da civilização, as vinganças divina, pessoal e, depois, a pública se desenvolveram no sentido de oferecer resposta diante de uma pretensa violação do direito.
Hoje, contudo, fala-se muito em uma sociedade de risco, mas na verdade o desenvolvimento histórico demonstra que todos os indivíduos vivem, desde os primórdios, cercados de inimigos[1], que são moldados conforme as necessidades de afirmação de valores gerais ou pela predominância de interesses individuais.
Conforme expõe Guimarães e Rego (2008, p. 187), o que se vislumbra nos dias atuais é que: “a vivência dos riscos é gerada pela massificação de excluídos na sociedade, que, por sua vez, é então somatizada pela população incluída, que vê como única saída para combater esse mal, a utilização do Direito Penal”.
Isto posto, cabível mencionar que não seria coerente, no decorrer dos anos, que a relação Estado-cidadão continuasse marcada por insegurança jurídica, em que critérios subjetivos e pessoais quedassem prevalentes, pois existiria sempre o perigo da volta à bárbarie.
Deste modo, a partir da necessidade em se obter uma previsibilidade de condutas foi que se elaborou o conceito de crime, que seria uma espécie de balizador dos comportamentos, como uma própria régua de enquadramento, em que o sujeito tem que se adequar ao que postulado pelo Estado com o fito de não ser abarcado dentro da seara punitiva da lei.
Nesta senda, o crime, assim como a maioria dos manuais alardeia, depois de inúmeras tentativas de conceituação, configura-se pela presença de um fato típico, antijurídico e culpável.
2 Teoria geral do crime e a evolução histórica dentro das diversas perspectivas do Direito Penal.
2.1- Fato típico
Para que o fato seja típico, quatro estruturas precisam ser definidas como elementos de sua formação, quais sejam: conduta e tipicidade (chamadas pela doutrina de necessárias), nexo de causalidade e resultado (aduzidas como acidentais, pois vistas, apenas, nos materiais), não necessariamente nessa ordem.
Por sua vez, não existe a possibilidade de entender o instituto sem delinear precisamente o seu conceito, qual seja: um fato praticado pelo homem, que apresenta um encaixe completo aos elementos dispostos no tipo penal.
Munidos de tais premissas básicas, é interessante verificar como a evolução da sociedade e de seus pensamentos foi imprescindível para a modificação do fato típico, que sofreu severas mudanças até se apresentar a nós com as suas características atuais.
2.1.1- Conduta
Na teoria Causalista, desenvolvida no século XIX e cujos principais expoentes foram Lizst e Beling, acreditava-se que o Direito Penal deveria se submeter às ciências naturais, pois a conduta para existir precisaria ser perceptível aos sentidos.
Conforme alardeia Von Lizst (1889, p. 193) a conduta ou ação, como por ele chamada:
É pois o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. Sem ato de vontade não há ação, não há injusto, não há crime: cogitationes poenam nemo patitur. Mas também não há ação, não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior, sem um resultado.
O problema de tal vertente é que não era satisfatória para explicar os crimes omissivos e os delitos sem resultado e, por isso, foi superada.
Para a teoria Finalista, por sua vez, esta difundida por Welzel, a conduta seria um elemento pré-jurídico e poderia ser esposada como sendo o comportamento humano consciente e voluntário dirigido para o alcance de um fim.
Abandonava-se, portanto, a visão de mera descrição natural e passava-se para uma visão dirigida.
Desta forma, para melhor aclarar o conceito de conduta no finalismo, temos Santos (2000, p.15), o qual explica que:
A ação humana é acontecimento dirigido pela vontade consciente do fim. Na ação humana, a vontade é a energia produtora da ação, enquanto a consciência do fim é a sua direção inteligente: a finalidade dirige a causalidade para configurar o futuro conforme o plano do autor.
Isto posto, a conduta para ocorrer, dentro da teoria Finalista, precisava ultrapassar quatro critérios, quais sejam: representação do resultado, escolha dos meios, previsão e aceitação dos resultados concomitantes e execução.
Sendo assim, apenas, depois de passar por uma espécie de “escada de ações” é que a conduta poderia ser exteriorizada e ser passível de relevância.
Como sabido, no Brasil adota-se a teoria finalista, mas isto não quer dizer que a mesma não seja passível de críticas, e o problema desta corrente é que a conduta culposa não conta com explicação satisfatória dentro de seu âmbito de incidência.
Por fim, na teoria Funcionalista, cujos principais autores foram Roxin e Jakobs, a conduta ficou com explicações divididas e duvidosas.
Para Roxin, seria toda a manifestação da personalidade. Mas tal conceito afigura-se extremamente amplo, causa insegurança e permite a incidência de um direito penal do autor.
Jakobs, por seu turno, traz uma definição bem confusa, para ele a conduta é o não evitar um resultado individualmente evitável, ou seja, seria um movimento que não teria mais como ser suprimido, apesar, de inicialmente ter sido possível a sua não realização pelo autor.
2.1.2- Resultado
Após a análise da conduta, é pertinente afirmar que o resultado se dessume na consequência do comportamento praticado pelo agente.
O resultado nada mais é do que o passo seguinte na cadeia de movimentos, no qual uma ação do sujeito ativo tem o potencial de provocar uma alteração na situação anterior.
Importante pontuar que existem duas espécies de resultado: o jurídico e o naturalístico.
Na seara do que aduz Masson (2012, p. 221):
Resultado jurídico, ou normativo, é a lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico protegido pela lei penal. É, simplesmente, a violação da lei penal, mediante a agressão do valor ou interesse por ela tutelado. Resultado naturalístico, ou material, é a modificação do mundo exterior provocada pela conduta do agente.
Nesta senda, a par do conceito visualizado, indispensável falar que todos os crimes advêm de um confronto com a norma jurídica e, por isso, não é difícil concluir que o resultado jurídico afigura-se presente em todos os delitos, mas não se pode falar o mesmo da outra espécie, visto que não se pode afirmar que em qualquer uma das violações legais haja a visualização da modificação do mundo externo.
Isto posto, o resultado naturalístico divide-se em três vertentes, sendo estas: formal, de mera conduta e material.
A primeira delas, também chamada de consumação antecipada, prevê que para esta espécie de crime o tipo penal dispõe da previsão de um comportamento e de um resultado naturalístico, mas este último é desnecessário para a consumação. Como exemplo, se pode citar a injúria, a ameaça e a extorsão mediante seqüestro.
A segunda, entretanto, não contém sequer resultado naturalístico, mas uma simples descrição de uma conduta que se almeja evitar. Desta forma, como o resultado naturalístico não se apresenta dentro de seu âmago também não se mostra necessário para a consumação do delito. Nesta hipótese, dá-se como exemplo a violação de domicílio.
Por derradeiro, temos o crime material, em que o tipo penal prevê uma conduta e um resultado naturalístico, sendo este último indispensável para a consumação. Deste modo, exige para a sua configuração que todos os elementos descritivos estejam condensados no comportamento do autor, sob pena da não incidência do ilícito.
Nesta senda, o delito de roubo, objeto de estudo do presente trabalho, situa-se dentro da esfera jurídica dos crimes materiais, em que a consumação da conduta contrária ao direito só pode ser perquirida com a efetiva subtração do patrimônio, pois caso não haja o locupletamento de bens, um dos elementos do tipo não se fez palpável e, a partir de tal constatação, se pode dizer que o resultado não foi completamente apto a causar uma alteração no mundo fenomênico e, portanto, em tal caso, a proteção da seara penal precisaria ser repensada.
2.1.3- Nexo de causalidade
O nexo de causalidade funciona como uma ponte que tem o objetivo de fazer uma conexão entre a conduta e o resultado.
Conforme concluiu Jesus (2010, p. 287):
O terceiro elemento do fato típico é o nexo de causalidade entre o comportamento humano e a modificação do mundo exterior (resultado material). Cuida-se de estabelecer quando o resultado é imputável ao sujeito, sem atinência à ilicitude do fato ou à reprovação social que ele mereça (culpabilidade).
Três teorias, por sua vez, destacam-se para tentar defini-lo.
A primeira delas é chamada de Teoria da Causalidade Adequada, desenvolvida dentre outros por Costa Júnior, e colima que a causa seria a condição adequada e necessária para gerar resultados, ou seja, só considera-se causa o que, geralmente, é apto para a produção de efeitos no mundo jurídico.
Em seguida, temos a Teoria da Relevância Jurídica, cujo principal expoente foi Mezger, que aduz ser causa, apenas, o que seja juridicamente relevante para conseguir esposar um resultado. Nesta, não basta, simplesmente, a aptidão para produzir resultados, mas é preciso colocar foco sobre o comportamento dotado de relevância jurídica, sendo este a conduta que a norma visa evitar que ocorra.
Por fim, existe a Teoria da Equivalência dos Antecedentes, alardeada por Von Buri, nesta conforme expõe Greco (2007, p. 218-219):
Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Isso significa que todos os fatos que antecedem o resultado se equivalem, desde que indispensáveis à sua ocorrência. Verifica-se se o fato antecedente é causa do resultado a partir de uma eliminação hipotética. Se, suprimindo mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último.
Neste bojo, é possível verificar que o método de eliminação hipotética é perigoso por permitir o regresso ao infinito e, por isso, o Brasil se utiliza desta teoria, mas em sua forma mitigada, pois segundo o art. 13, § 1º, do Código Penal, a causa superveniente relativamente independente permite que a imputação do fato não seja atribuída ao autor da conduta, quando ao seu comportamento não puder ser atribuído o resultado lesivo, vez que a consequência teria advindo de desdobramento que não poderia ser esperado.
2.1.4- Tipicidade
A tipicidade é a última estrutura do fato típico e sua definição completa só pode ser extraída da evolução do Direito Penal, ao longo da história.
No Causalismo, a tipicidade era descritivo objetiva, necessitando de uma simples adequação formal à letra da lei, sem a existência de qualquer valoração da norma, para a garantia de sua configuração.
Já no Finalismo, o tipo é entendido como complexo, pois recheado de elementos descritivos, objetivo- normativos e subjetivos, além de traduzir mudança de comportamento enorme na concepção do Direito Penal ao transportar o dolo e culpa para o tipo.
A tipicidade em seu crescente aperfeiçoamento não se contenta somente com a adequação ao disposto na norma (tipicidade formal), mas só consegue demonstrar uma consunção perfeita com o Estado Democrático de Direito quando, além disso, a conduta prescrita no tipo causa efetiva lesão ao bem jurídico protegido pelo ordenamento (tipicidade material).
Na definição de Masson (2012, p. 244):
Tipicidade formal é o juízo de subsunção entre a conduta praticada pelo agente no mundo real e o modelo descrito pelo tipo penal (“adequação ao catálogo”)...De seu turno, a tipicidade material (ou substancial) é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado em razão da prática da conduta legalmente descrita. A tipicidade material relaciona-se intimamente com o princípio da ofensividade (ou lesividade) do Direito Penal, pois nem todas as condutas que se encaixam nos modelos abstratos e sintéticos de crimes (tipicidade formal) acarretam dano ou perigo ao bem jurídico.
Desta forma, não é coerente pautar a sanção de uma conduta, somente, por esta violar a mera adequação legal, mas ter em mente que o recrudescimento só pode advir para comportamentos capazes de gerar dano ao bem jurídico, caso contrário, haveria uma preocupação desmedida na proteção de elementos que poderiam ser alvo de atenção de outros ramos jurídicos.
2.2- Ilicitude
A ilicitude ou antijuridicidade sempre depende da existência de um fato típico.
Neste desiderato, o ordenamento jurídico, para ser dotado de força cogente, precisa estabelecer as normas que servem como norteadores dos padrões esperados.
Sendo assim, quando o autor de um fato típico age sem qualquer ressalva legal, com o fito de proceder de modo contrário aos pressupostos normativos, diz-se que o indivíduo comete ato ilícito.
Jesus (2010, p. 398) preconiza que:
Antijurídico é todo fato descrito em lei penal incriminadora e não protegido por causa de justificação. O sistema negativo conceitua a antijuridicidade como ausência de causas de ilicitude, o que vale dizer que não diz o que é antijurídico, mas sim o que é jurídico, o que constitui paradoxo. Considerado o crime como a violação de um bem penalmente protegido (conceito material), vê-se que a antijuridicidade consiste numa valoração que realiza o juiz acerca da natureza lesiva de um comportamento humano.
Desta forma, ao se fazer um juízo sobre o ilícito há de se ter em conta que a conduta humana, primeiramente, deve estar prevista em uma regra jurídica; depois, é necessária a verificação se o comportamento foi adequado para provocar lesão merecedora de reprimendas penais e, por fim, faz-se imperiosa a constatação de que a conduta não se encontra abarcada por nenhuma excludente da ilicitude, quais sejam: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito, entre outras.
Nesta progressão, portanto, é possível saber se um injusto foi perpetrado ou se o fato típico pode ser encaminhado para ser cuidado por outras esferas do Direito.
Ademais, como forma de complemento, cabível mencionar que a ilicitude, em seus termos, divide-se em duas vertentes: formal e material.
A formal dessume-se em uma contrariedade do fato com o colimado na lei.
A perspectiva material, por sua vez, trata da substância do injusto, visto que na antijuridicidade observa-se uma vontade deliberada do autor da ação em perpetrar uma ofensa aos valores prestigiados pelo ordenamento.
Não é demais evidenciar que o verdadeiro injusto é formado pela soma de tais vertentes.
Mister pontuar, ainda, que a ilicitude, conforme a teoria tripartida, situa-se entre o fato típico e a culpabilidade fornecendo uma ligação entre tais estruturas, seria, portanto, o segundo elemento de uma escada formada por três partes e cuja passagem é necessária para se chegar ao local de destino, que em nosso contexto se delineia como o ato contrário aos fins que a norma pretende cuidar.
2.3- Culpabilidade
A culpabilidade, como a maioria dos doutrinadores expõe, conceitua-se como o juízo de censura que recai sobre uma conduta típica e antijurídica.
Indispensável esposar que inúmeras mudanças em sua definição foram sentidas ao longo dos anos, mas o principal foco da culpabilidade é partir do pressuposto de que a exteriorização da vontade do agente foi dotada de reprovabilidade.
Brandão (2004, p. 10) é bem preciso ao dizer que: “a culpabilidade é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa...porque, podendo se comportar conforme o direito, optou por se comportar contrário ao direito.”
Apesar de tais posicionamentos, nem sempre o conceito de culpabilidade foi claro, o que se explica pelas diversas teorias que surgiram para enquadrar a sua esfera de atuação.
Isto posto, no Causalismo, a culpabilidade era psicológica, por ser tratada como um vínculo, uma relação psíquica que servia como ligação entre o agente e o fato ilícito por ele cometido. Não bastasse isso, o dolo e a culpa estavam presentes na culpabilidade e não no tipo, o que demonstrou o erro desta corrente, pois o dolo é psíquico, enquanto a culpabilidade é normativa.
No Neokantismo, contudo, houve uma variação e, de teoria psicológica, a culpabilidade passou a ser psicológico-normativa, pois em seu âmago três elementos eram observados, quais sejam: a imputabilidade, dolo ou culpa (elemento psicológico-normativo) e a exigibilidade de conduta diversa. Entretanto, a mesma problemática da anterior, no que se refere à configuração de elementos psíquicos dentro da culpabilidade, quedavam presentes.
Por fim, o Finalismo, resolveu o problema das outras correntes, em virtude de ter adotado a teoria da normatividade pura, pois excluiu os fatores psicológicos –dolo ou culpa- e passou a contar, apenas, com elementos normativos em seu bojo, que são: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
A imputabilidade se colima no fato de entender o que se está praticando e de conseguir determinar sua vontade para o alcance da finalidade visada.
A potencial consciência da ilicitude é a capacidade do agente ter, ou pelo menos poder chegar, de uma maneira que não seja extraordinária, o conhecimento de que a escolha por ele adotada volitivamente foi apta a conduzir a incidência de um fato criminoso.
Por último, a exigibilidade de conduta diversa retira um pouco a luz da capacidade do sujeito e projeta sua direção para dentro das expectativas da sociedade. Nesta, o fato ilícito é culpável quando o agente tem uma ação contrária à esperada, proibida, no instante em que todas as circunstâncias eram favoráveis para que agisse dentro das normas legais.
Deste modo, este último traço da culpabilidade demonstra ser muito interessante, pois cobra do indivíduo que se adeque às normas na medida em que realmente goze de autodeterminação completa, diante dos liames apresentados pela vida.
O problema principal que se apresenta, dentro dessa perspectiva, é que nem todas as pessoas são dotadas das mesmas oportunidades e, por isso, a valoração do crime, tomando por base o homem médio, não é necessariamente a mais correta diante do caso concreto.
Sendo assim, não basta dotar o Estado de um poder sancionador, que não é equânime, para assegurar a paz social, visto que, no momento em que a máquina estatal desconsidera as particularidades do indivíduo, viola o postulado de igualdade material inerente a todos e põe em dúvida a credibilidade do Direito Penal em resolver os problemas de insegurança gerados dentro da sociedade.
Não bastasse isso, é preocupante ver como a seara punitiva abarca e abrange, em sua maioria, pessoas desfavorecidas e como, em suas elucubrações constantes, faz com que haja uma aceitação passiva de seus termos, contudo, é imprescindível o questionamento dos valores postos, pois conforme alardeia Bauman (1999, p. 11):
Não formular certas questões é extremamente perigoso, mais do que deixar de responder às questões que já figuram na agenda oficial; ao passo que responder o tipo errado de questões com freqüência ajuda a desviar os olhos das questões realmente importantes. O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença entre sina e destino, entre andar à deriva e viajar. Questionar premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos.
Neste desiderato, após aclarar o conceito de crime, o que se pretende nas próximas linhas é dar um enfoque especial ao real objeto de estudo do presente trabalho que se configura no delito de roubo e seus aspectos primordiais, com o fito de visualizar não só o ilícito em si, mas também colocar como ponto de interesse o ser humano, que comete tal fato, e entender que o mesmo é sempre dotado de dignidade, não importando sua esfera de envolvimento com o ramo criminal.
O crime de roubo se configura como complexo, pois atinge mais de um bem protegido por nosso ordenamento jurídico. Aduz-se com o locupletamento financeiro, violência ou grave ameaça, sendo que o intento do autor, no momento da infração, deve se dirigir ao patrimônio do sujeito passivo.
Mirabete (2005, p. 135), sobre o tema, alardeia:
São complexos os crimes que encerram dois ou mais tipos em uma única descrição legal (crime complexo em sentido estrito) ou os que, em uma figura típica, abrangem um tipo simples, acrescido de fatos ou circunstâncias que, em si, não são típicos (crime complexo em sentido amplo). E como exemplo de crime complexo em sentido estrito, existe o roubo, "que nada mais é que a reunião de um crime de furto (art. 155) e de ameaça (art. 147) ou lesão (art. 129)”.
Nesse palco, sabedores de que este delito é complexo e que, em vista disso, pode ser dividido em duas vertentes, que se caracterizam como sendo o furto mais a violência ou a grave ameaça, temos, então, ciência que a infração só se visualiza quando presentes a lesão tanto a integridade física quanto ao lado econômico de quem sofreu com o comportamento do agente, que atuou de modo contrário às normas jurídicas.
Assim sendo, indispensável pontuar que nos casos em que tais situações não são configuradas, ou seja, quando não temos o específico dano ao bem ou quando, mesmo com a utilização de objetos para incutir temor na vítima, não ocorre o efetivo agravo corporal, não existe razão para que o recrudescimento penal quede-se aplicado de uma maneira desmedida.
Neste ínterim, Mateu (1999, p. 215 e 218) preconiza:
Num Estado social e democrático de Direito, a intervenção punitiva somente se justifica nas condutas transcendentes aos demais que atinjam as esferas de liberdade alheias, sendo contrário ao princípio de ofensividade o castigo de uma conduta imoral, antiética ou antiestética que não invadam a liberdade alheia. Ainda, este princípio descansa na consideração do crime como um ato desvalorado, isto é, contrário à norma de valoração.
Deste modo, é mister para a configuração do ilícito em comento, que este resvale no âmbito das posses do sujeito, realmente lesando a vítima no recinto econômico, além de ser apto a violar a sua integridade corporal ou psicológica.
Aclara-se que nas hipóteses em que nenhum dos resultados lesivos são ensejados, seja pelo não locupletamento dos bens, em vista da devolução dos objetos ou reparação do dano; seja pela não utilização de aparato que incuta temor - ou, ainda, se presente o uso, mas se a sua aplicação não for capaz de atingir fisicamente o ofendido-, se mostra imprescindível visualizar que a esfera protetiva do direito penal não precisa ser acionada.
Desta forma, necessário é ressaltar o entendimento alardeado por Gomes (2007, p. 235 e 281), que afirma:
Quando não há lesão ou perigo concreto a um bem jurídico, o fato não se reveste de tipicidade no plano concreto. A ofensividade a um bem jurídico integra o tipo penal, de modo que, além da previsão abstrata, da conduta, da causa, do resultado, o tipo se perfectibiliza na vida dos fatos se houver ofensa relevante a um bem jurídico.
Sendo assim, mediante o que foi asseverado, percebemos que as únicas condutas que podem resvalar em reprimendas penais são aquelas que se amoldaram na consecução de resultados prejudiciais àquele cidadão que agia conforme a lei, caso contrário, estaríamos punindo comportamentos que não mereceriam o olhar do direito, pois mobilizariam o aparato estatal sem que existisse qualquer ofensa passível de punição, gerando custos econômicos, de tempo, esforço, além de estigmatizar o indivíduo, em vista de utilizar o Direito Penal como prima ratio.
Desta feita, para corroborar o pensamento esposado, temos a grande influência de Roxin[2] que propôs a chamada teoria funcional racional-teleológica, na qual aduzia que a pedra angular do Direito Penal deixa de ser a ação passando a ser a atribuição desta ao agente. Segundo o autor: “a construção do sistema jurídico penal não deve vincular-se a dados ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico - reais, entre outros), mas sim se orientar exclusivamente pelos fins do direito penal” (ROXIN, 1972, p. 55-56).
O funcionalismo pregado, portanto, possui sua base sólida no Direito Penal como ultima ratio, exigindo-se para tanto o respeito aos princípios inerentes a este ramo do direito, como o da subsidiariedade, fragmentariedade e da culpabilidade.
É dentro desse ínterim que está à imputação de uma determinada conduta ao agente do crime.
Se tal comportamento, manifestação da personalidade do autor do fato, isto é, "tudo o que pode ser atribuído a uma pessoa como centro de atos anímico-espirituais"[3], embora esteja com a tipificação configurada no caso concreto, não satisfizer a necessidade e idoneidade da própria aplicação de sanção, pois não é capaz de produzir qualquer resultado útil, seja para a sociedade ou mesmo para o Estado, pode a pena do tipo penal objetivo ser substituída por uma forma de reprimenda mais adequada, ditada por valorações político-criminais.
Desta forma, se aplicará realmente a punição equivalente pelo ato efetivamente perpetrado.
Fragoso (1983, p. 03), sobre o tema, complementa que:
As lesões de bens jurídicos só podem ser submetidas a pena quando isso seja indispensável para a ordenada vida em comum. Uma nova política criminal requer o exame rigoroso dos casos em que convém impor pena (criminalização), e dos casos em que convém excluir, em princípio, a sanção penal (descriminalização), suprimindo a infração, ou modificando ou atenuando a sanção existente (despenalização). Desde logo, deve excluir-se do sistema penal a chamada criminalidade de bagatela e os fatos puníveis que se situam puramente na ordem moral.
Assim sendo, a par dos pensamentos destes grandes mestres, podemos entender, mais claramente, que somente se podem aduzir sanções quando estivermos diante de fatos realmente abalizadores de recrudescimento, quando ostensivamente tenham atingido qualquer valor extremamente importante e que seja protegido pelo Estado Democrático de Direito, estabelecendo-se assim o agir do Direito Penal apenas nos momentos que este mereça ser empregado, deixando para outros ramos jurídicos ofensas que não se coadunaram efetivas, transcendentes e intoleráveis.
Deste modo, é o pensamento de Mañas (1994, p. 56), quando diz: “A lei penal jamais deve ser invocada para atuar em casos menores, de pouca ou escassa gravidade”.
Isto posto, em casos que não deflagaram real dano à parte em quaisquer das esferas protegidas no delito de roubo, não se colima pertinente aplicar nenhum tipo de punição penal, pois esta se mostraria desnecessária em virtude da impertinência em se sancionar condutas não lesivas ao sujeito passivo, seja pelo não locupletamento com os bens ou mesmo pela não visualização de comportamentos prejudiciais à integridade física do ofendido.
CONCLUSÃO
É importante que tenhamos em mente que para a configuração de um delito de roubo, todo o iter criminis deve ser percorrido, pois sem a sua visualização o que acontece é a punição desmedida por condutas que não foram aptas a lesar a esfera de interesses protegidos pela seara penal.
O roubo, por ser crime complexo, atinge dois ou mais bens jurídicos e se o comportamento do agente não foi apto a promover a lesão a qualquer deles, é mister que o delito não existiu.
Punir por punir não deve ser a solução almejada pela sociedade, mas sim buscar interagir com o direito de forma que, apenas, fatos transcendentes sejam sancionados.
Por fim, é imperioso aduzir que a preocupação com o indivíduo deve se tornar a inquietação preponderante a ser vivenciada pelo Estado, em detrimento da visão equivocada de que unicamente o cárcere é capaz de gerar a proteção adequada para o corpo social.
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[1] Dentre o conceito de inimigo mais difundido, na sociedade de risco, encontra-se a visão de Jakobs (2003), que em sua obra entendeu ser aquele que desrespeita o Contrato Social e, por isso, não merece o âmbito de proteção do cidadão.
[2] Roxin (1972).
[3] Roxin (1997, p. 252).
Assessora Jurídica do Núcleo de Tecnologias para Educação-UemaNet. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, Ex-assessora da 1ª Promotoria de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial, ex- bolsista do PIBIC pela UFMA, ex-integrante do Núcleo de Estudos em Direitos Humanos pela UFMA. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Quezia Jemima Custódio Neto da. O crime de roubo e seu delineamento dentro da esfera jurídica e no âmbito doutrinário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 out 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36925/o-crime-de-roubo-e-seu-delineamento-dentro-da-esfera-juridica-e-no-ambito-doutrinario. Acesso em: 23 dez 2024.
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