A República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana[1]. Assim, deve o país intentar todas as ações, necessárias e possíveis, com o escopo de preservar esse traço do “existir humano”.
É cediço que o Brasil possui insuficientes recursos materiais para suprir as demandas sociais graves e sempre crescentes, mas mesmo diante dessa realidade, há que se preservar o chamado “mínimo existencial” para que sejam garantidas as necessidades básicas da pessoa humana. Pode-se dizer, então, que este “mínimo existencial” se constitui na garantia das condições mínimas de existência, que por um lado não pode ser objeto de intervenção restritiva do Estado, e por outro exige prestações estatais positivas. O mínimo existencial apresenta-se, assim, como um núcleo básico de direitos prestacionais que se inclui no rol dos direitos fundamentais sociais.
A adoção da expressão “mínimo existencial” reflete a opção da doutrina pátria[2] pela definição criada na Alemanha[3]. É pacífico o entendimento no sentido de que há um direito, e portanto deve existir uma garantia, a determinadas condições mínimas de subsistência humana, que, para ser aceitável, deve preservar a dignidade do indivíduo. Pode-se afirmar que
A teoria engenhosa que liga a prestação do “mínimo social“ aos direitos fundamentais de liberdade (primeira geração) é fruto da doutrina alemã pós-guerra que tinha que superar a ausência de qualquer direito fundamental social na Lei Fundamental de Bonn, sendo baseada na função de estrita normatividade e jurisdicionalidade do texto constitucional do texto constitucional. Assim, a Corte Constitucional Alemã extraiu o direito a um “mínimo de existência” do princípio da dignidade da pessoa humana (art.1, I, Lei Fundamental), do direito à vida e à integridade física, mediante interpretação sistemática junto ao princípio do Estado Social (art. 20, I). Não há dúvidas que ela parte de um direito fundamental a um “mínimo vital”. Ao mesmo tempo, a Corte deixou claro que esse “padrão mínimo indispensável” não poderia ser desenvolvido pelo Judiciário como “sistema acabado de solução”, mas por meio de uma “casuística gradual e cautelosa”[4].
Na Colômbia, a sentença T-426/92 foi a primeira a conceituar o mínimo existencial, entendendo ser este “un mínimo de condiciones materiales para una existencia digna”. A maior parte das decisões judiciais que trataram posteriormente a esta do, contudo, referem o mínimo existencial (ou mínimo vital, como lá é designado) como as próprias condições materiais, garantidas por outros direitos, que podem ser prestacionais ou fundamentais[5].
Também da análise da jurisprudência da Corte Constitucional colombiana é que se extrai o seguinte ensinamento[6]:
“Sea que la Corte trate el mínimo vital como un derecho o como un método para determinar la violácion de otros derechos, en todos los casos revisados, el concepto de mínimo vital se relaciona con una persona o grupo de personas cuya subsistencia se ve amenazada por el incumplimiento de las obligaciones del Estado, o de un particular ante el cual se encuentra em situación de indefensión. Quizá la Corte comprenda el mínimo vital más como una función que como un concepto.
Así, la Corte le da al mínimo vital la funcion de lograr uma igualdad material: “El derecho al mínimo vital no sólo incluye la facultad de neutralizar situaciones violatorias de la dignidad humana, o de la de exigir asistencia y protección por parte de personas o grupos discriminados, marginados o en circunstancias de debilidad manifiesta (C.P. artículo 13) sino que, sobre todo, busca garantizar la igualdad de oportunidades y la nivelación social en uma sociedad históricamente injusta y desigual, con factores culturales y económicos de grave incidencia em el “déficit social”.
La Corte protege de manera consistente, así pareciera no tener claro la estructuración de sus argumentos, y así la palabra mínimo vital se use de diferentes formas, a las personas cuando, como la misma Corte dice, “se comprueba un atentado grave contra la dignidad humana de personas pertenecientes a sectores vulnerables de la población, y el Estado, pudiéndolo hacer, há dejado de concurrir aprestar el apoyo material mínimo...sin el cual la persona indefensa sucumbe ante su propia impotencia”.
Essa garantia ao mínimo existencial tem duas faces, de um lado – evidenciando um caráter negativo dos direitos positivos – litiga contra qualquer intervenção estatal no núcleo básico possibilitador da existência humana digna[7]; e de outro exige ações afirmativas por parte do Poder Público, a fim de concretizar e prover os cidadãos com os meios suficientes à manutenção de um padrão de dignidade.
Necessário salientar que o Estado Social de Direito[8] encontra-se em crise, notadamente nos países em desenvolvimento, o que se reflete, no entender de Ingo Sarlet, em uma crise dos próprios direitos fundamentais, evidenciada, principalmente, na “intensificação do processo de exclusão da cidadania”, fenômeno ligado ao aumento dos níveis de desemprego e subemprego; na “redução e até mesmo supressão de direitos sociais prestacionais básicos”, como a saúde, educação, previdência, assistência social, além da “flexibilização dos direitos dos trabalhadores”, além da ausência ou precariedade de instrumentos jurídicos hábeis a proporcionar o equilíbrio social; o que acaba por agravar o problema da efetividade dos direitos fundamentais e da própria ordem jurídica estatal[9].
O reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais nunca foi um consenso entre os doutrinadores que se debruçaram sobre a matéria, tendo sido sempre tratados de forma diferenciada dos demais direitos fundamentais, notadamente no que se refere à sua efetivação. Isto se torna ainda mais evidente com a crise do Estado Social de Direito hoje evidenciada, uma vez que este caracteriza-se pelo reconhecimento e garantia de direitos sociais básicos[10].
Para Ricardo Lobo Torres[11] a dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém do mínimo, contudo, afirma que o acesso igualitário aos serviços de saúde, supostamente assegurados pela dicção do artigo 196 da CF é utópico e demagógico, porquanto gera expectativas inatingíveis a todos os cidadãos[12].
Para o referido autor, o mínimo necessário à existência constitui um direito fundamental, uma vez que, no seu entender, sem este mínimo, cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as “condições iniciais de liberdade”[13].
LEIVAS[14] desenvolve o tema relativo ao mínimo existencial a partir de um conceito de necessidades básicas, entendidas estas como “situações ou estados que constituem uma privação de aquilo que é básico ou imprescindível e que, em consequência, põe-nos diretamente em relação com a noção de dano, privação ou sofrimento grave para a pessoa”.
Adotando as ideias de DOYAL e GOUGH[15], aponta que o necessário seria um padrão ótimo crítico ou máximo de saúde e autonomia, ou seja, a obtenção do melhor nível de satisfação de necessidades que pudesse ser alcançado, hodiernamente, em qualquer lugar do globo terrestre. Contudo, reconhece que em países ditos de terceiro mundo, como o Brasil, essa exigência é fantasiosa, e pugna, então, por uma estratégia de desenvolvimento a médio prazo, com o intuito de se chegar a níveis mais realistas de satisfação.
Essa concepção do que seja mínimo existencial, como bem destacou LEIVAS[16] passa, necessariamente, por uma contextualização, porquanto cada nação tem uma realidade social, política, cultural e econômica distinta das demais. “A leitura do mínimo vital passa a uma formulação em que as necessidades estão relacionadas com o estândar de vida mínimo de vida aceitável em uma sociedade”.
Nesse passo, o referido autor, após percuciente análise, defende a existência de um direito fundamental definitivo ao mínimo existencial, pugnando pela aplicação do princípio da proporcionalidade, haja vista a ocorrência de colisão entre vetores de otimização.
Por concordarmos integralmente com a formulação, e à guisa de conclusão, é necessário transcrever a precisa ideia do autor:
O caminho para chegar-se a um direito subjetivo público ao mínimo existencial, do mesmo modo que para chegar-se a os demais direitos fundamentais sociais, passa pela ponderação entre os princípios que o fundamentam e os princípios colidentes. Em favor do mínimo existencial falam os princípios da liberdade fática, da dignidade humana, do Estado Social e igualdade fática. Do outro lado, como princípios que podem restringir esse direito, entre outros estão o princípio da competência orçamentária do legislador e o direito de terceiros. Para o reconhecimento de um direito fundamental definitivo ao mínimo existencial, os princípios que o fundamental devem ter um peso maior, no caso concreto, que os princípios colidentes[17].
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[1] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político”. (grifou-se)
[2] No Brasil dedicaram-se ao tema, entre outros, Ingo Sarlet, Ana Paula de Barcellos, Paulo Gilberto Cogo Leivas e Ricardo Lobo Torres.
[3] John Rawls refere-se ao “mínimo social” e a doutrina americana a “direitos constitucionais mínimos”. Na Colômbia, e via de regra, nos países de língua espanhola, é referido o “mínimo vital”.
[4] KRELL, Andreas J. Realização, ... p. 247.
[5] ARANGO. Jurisprudência… p. 12. Da mesma obra, p.11, extrai-se a seguinte definição de mínimo existencial: “(...) en ocasiones se define como un derecho fundamental innominado, y en otras se confunde con las condiciones materiales que lo garantizan, en un tratamento anfibiológico del concepto”.
[6] ARANGO. Jurisprudência,… p. 17.
[7] Já se fala que o “mínimo existencial” seria um dos limites impostos ao Estado em seu poder de tributar. Assim, ÁVILA, Humberto Bergmann. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. In.: Revista Diálogo Jurídico, ano I, v. I, n. 3, jun/2001. Salvador, Bahia. p. 15.
[8] Ingo Sarlet justifica sua opção pela utilização da expressão “Estado Social de Direito”, ao invés de “Estado-Providência”, “Estado de Bem-Estar Social”, “Estado Social”, “Estado Social e Democrático de Direito” ou “Estado de Bem-Estar” (“Wellfare State) mencionando que “o assim denominado ‘Estado Social de Direito’ constitui um Estado Social que se realiza mediante os procedimentos, a forma e os limites inerentes ao Estado de Direito, na medida em que, por outro lado, se trata de um Estado de Direito voltado à consecução da justiça social”. Os direitos fundamentais sociais na ordem constitucional brasileira. Os direitos fundamentais… p.34-35.
[9] SARLET, Os direitos fundamentais… p. 36-37.
[10] SARLET, Os direitos,… p. 38.
[11] TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 262.
[12] TORRES. A cidadania,… p. 282.
[13] TORRES. Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais. Revista de Direito da Procuradoria-Geral, Rio de Janeiro, n. 42, 1990, p. 69.
[14] LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais. Obra inédita.
[15] Leivas, A estrutura,…
[16] Leivas, A estrutura,…
[17] Leivas, A estrutura,…
Procurador Federal. Especialista em Direito do Estado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRENTANO, Alexandre. O Mínimo Existencial: conceituação e análise Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36985/o-minimo-existencial-conceituacao-e-analise. Acesso em: 23 dez 2024.
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