O ilícito administrativo do exercício de gerência de sociedade empresária acarreta, se devidamente comprovado, após o devido processo legal administrativo, a penalidade de demissão do servidor.
Tão grave sanção, deve ser a resposta à grave infração. Porém, hodiernamente a interpretação do possível ilícito vem sendo cada vez mais abrandada, no sentido inclusive de atendimento à proporcionalidade e à razoabilidade.
Pode-se notar que, nos últimos quinze anos, o legislador ordinário modificou por mais de cinco vezes o referido ilícito administrativo.
A Lei nº 8.112/90, ao estabelecer a proibição de o servidor público, no exercício de sua função, exercer a gerência de sociedade empresarial, ainda que de fato apenas, utiliza-se como vetor axiológico a cunho de primazia das funções públicas, que muitas vezes se incompatibiliza com o exercício do comércio. Há legislação por vir, que tratará inclusive de eventual conflito de interesses entre a titularidade de sociedade mercantil e o múnus público.
Atualmente, temos que o dispositivo que veda o exercício de gerência ao servidor em atividade encontra-se redigido desta forma:
Art. 117. Ao servidor é proibido:
X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;
Conceitualmente, o servidor poderá ser demitido, segundo a combinação deste dispositivo com o inciso XIII do art. 132, ambos do Estatuto, se participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, ou seja, ainda que seja apenas uma sociedade de fato, e ainda se exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário. Ora, nestes três últimos casos, de exceção, como acionista, cotista ou comanditário, como não estará de fato exercendo a gerência da empresa nenhum ilícito de plano pode ser-lhe imputado. Porém, se participar de gerência ou administração ou exercer o comércio, pode vir a ser demitido.
Houve uma alteração legislativa, criando expressamente casos em que, embora o servidor esteja na qualidade de gerente, administrador ou comerciante, não incide a hipótese legal sancionatória. A Lei nº 11.784/2008, alterou a redação do art. 117 da Lei nº 8.112/90, nos seguintes termos:
Art. 172. A Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
.................
X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;
.....................
A vedação de que trata o inciso X do caput deste artigo não se aplica nos seguintes casos:
......................
II - gozo de licença para o trato de interesses particulares, na forma do art. 91 desta Lei, observada a legislação sobre conflito de interesses.”
Pela legislação anterior à edição da Lei nº 11.784, de 2008, ainda que o servidor estivesse em gozo de licença sem remuneração, por interesse particular, pela leitura do tipo sancionador, caberia uma acusação, ou pelo menos uma persecução disciplinar contra o servidor licenciado. Entretanto, em direito punitivo a razoabilidade e a proporcionalidade devem evitar os absurdos.
Então temos duas situações, cuja relevância é tamanha em termos jurídicos, que merecem estudo aprofundado, e cuja menção a partir de agora faremos, para o fim de equacionar o problema, solucionando-o e servindo de norte inclusive para fins de processo de revisão de inúmeros processos administrativos disciplinares.
I
É que, antes de ter sido editada a Lei nº 11.784/2008, poderia ser aplicada penalidade ao servidor que exercesse a gerência, ainda que houvesse uma licença para o trato de interesses particulares. Ainda que entendemos ser isso um absurdo, na prática, aconteciam demissões, em que pese a situação factual, em seu conteúdo, nada de grave contivesse, ainda porque o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o princípio da livre iniciativa e o direito universal ao trabalho, vedariam uma obrigatoriedade de vedação de trabalho ao servidor, proibindo-se-lhe de ter uma atividade empresarial, ainda que estivesse de licença sem vencimentos. Afinal, do que viveria o servidor licenciado e sua família? Ou seja, ainda antes da edição da lei, a lógica e o bom senso deveriam orientar o poder disciplinar da Administração. A Lei então veio no bom tempo, para sanar dúvidas, tornar lícita a conduta, e inclusive, proporcionar a revisão disciplinar de eventuais apenados, porquanto em direito punitivo a lei mais benéfica deve retroagir para beneficiar o acusado.
Considerado como postulados o direito constitucional da livre iniciativa e o direito universal ao trabalho, temos como medida de razoabilidade a licitude do exercício da gerência ou administração ou a prática do comércio pelo servidor licenciado sem remuneração. A licença em questão está tratada no Estatuto dos servidores públicos civis da seguinte maneira:
Seção VII
Da Licença para Tratar de Interesses Particulares
Art. 91. A critério da Administração, poderão ser concedidas ao servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não esteja em estágio probatório, licenças para o trato de assuntos particulares pelo prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)
Parágrafo único. A licença poderá ser interrompida, a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)
Ora, se a Administração defere a licença sem remuneração, ainda permanece um liame entre ela e o servidor. Porém este não é mais remunerado, nem exerce suas antigas funções pelo período da licença. Logo, não pode ser-lhe exigida a conduta de não ter uma empresa, um negócio, ou o exercício de administração de sociedade comercial, sob pena de inviabilizar muitas vezes o sustento próprio ou de sua família. Parece óbvio que, estando de fora, ainda que temporariamente, da Administração qual o mal que poderia acarretar ao país, o servidor licenciado do INSS, por exemplo, que monta um restaurante e passa a se dedicar à sua administração e gerência, visando inclusive no futuro se desligar completamente do serviço público. Fere o bom senso encontrar gravidade nessa situação para irrogar a penalidade de demissão. O legislador ordinário agiu com muita sabedoria nesse caso, afastando expressamente a ilicitude da conduta.
De modo que atualmente não constitui ilícito a gerência, administração ou a prática do comércio, quando o servidor estiver formalmente em gozo de licença para o trato de assuntos particulares e sem remuneração.
Fala-se na possibilidade de verificação de conflito de interesses. Este aspecto sempre deve ser perquirido. Porém, no caso de haver conflito de interesses, por agora enquanto não se edita legislação que trate da matéria, entendemos que a Administração em tomando conhecimento de eventual conflito, deve notificar o servidor para cessar a atividade conflitante sob pena de interromper sua licença e abrir processo administrativo disciplinar para apurar a conduta. Em se verificando a insistência em manter-se a atividade conflitante, entendo, por ora, que o servidor poderá receber uma penalidade de advertência ou suspensão, por violação do artigo 116, IX. Isto porque o conflito de interesse sempre implicará em descumprimento do zelo, da regularidade, da licitude e da moralidade administrativa.
Exemplificando, o mesmo servidor do INSS, ao licenciar-se, em vez de abrir o referido restaurante, abre uma empresa de consultoria em benefícios previdenciários federais do regime Geral de Previdência Social. Ora, como servidor da casa, há evidente conflito de interesses entre esta atividade de consultoria e o cargo ainda ocupado pelo servidor.
Na verdade, tudo seria melhor aplicado e interpretado em termos disciplinares, se a Lei nº 8.112/90 além do art. 128, que trata da proporcionalidade, tivesse também, hipoteticamente, outro dispositivo, qual seja: esta lei deverá ser sempre interpretada com bom senso. Muitas injustiças e nulidades seriam evitadas...
II
Está explicada a primeira consequência jurídica da excludente de ilicitude trazida para o ordenamento jurídico pátrio pela Lei nº 11.784/2008. Não é mais ilícito passível de demissão o exercício da gerência estando o servidor de licença sem remuneração.
A segunda questão, ligada à edição da Lei nº 11.784/2008, é como ficam as penalidades de demissão, eventualmente aplicadas aos servidores, anteriormente ao ano de 2008, por exercício de gerência, quando o mesmo se achava de licença sem pagamentos de salários?
Ora, no direito disciplinar, se a situação legislativa posterior entende como lícito um fato ou ato, é porque o mesmo não é danoso para a instituição. Este princípio rege sempre o direito punitivo. Vamos dar exemplos, o servidor público no Estado Novo, poderia e era severamente punido se manifestasse pensamentos democráticos dentro ou mesmo fora da repartição. Era imediatamente processado sumariamente, perdia o cargo e ainda, de regra, ia preso. Com a redemocratização do país, passa-se a ter como primado dos direitos fundamentais o direito de livre expressão do pensamento.
Logo, aquele servidor punido, merece ser imediatamente reintegrado e apagada a mácula de seus assentos funcionais. É por esta razão que o inciso II do art. 116, deveria de lege ferenda ser retirado da Lei nº 8.112/90. O dever de lealdade, inicialmente foi instituído para forçar o pensamento político do servidor, vedando-lhe a liberdade que lhe é garantida constitucionalmente. O servidor que cumpre seus deveres funcionais, não violando nenhum dispositivo legal, é necessariamente leal a instituição a que serve, sendo despiciendo o referido dispositivo, que teve origem durante regimes de exceção ou ditatoriais.
Voltando ao tema de nosso presente estudo, entendo que nos casos de servidores que foram demitidos anteriormente à edição da Lei nº 11.784/2008, se os mesmos se encontravam em gozo oficial de licença sem remuneração, têm eles direito a revisão da penalidade aplicada, porque lei posterior tornou o fato lícito. Além disto, a atual redação da lei pode criar uma situação de injustiça, onde pelo mesmo fato, um servidor foi demitido e outro absolvido.
O processo de revisão deverá ser deferido acaso comprovada a hipótese ventilada e será constituída comissão de revisão de PAD, como fala o Estatuto dos servidores:
Art. 174. O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada.
§ 1o Em caso de falecimento, ausência ou desaparecimento do servidor, qualquer pessoa da família poderá requerer a revisão do processo.
§ 2o No caso de incapacidade mental do servidor, a revisão será requerida pelo respectivo curador.
Art. 175. No processo revisional, o ônus da prova cabe ao requerente.
Art. 176. A simples alegação de injustiça da penalidade não constitui fundamento para a revisão, que requer elementos novos, ainda não apreciados no processo originário.
Art. 177. O requerimento de revisão do processo será dirigido ao Ministro de Estado ou autoridade equivalente, que, se autorizar a revisão, encaminhará o pedido ao dirigente do órgão ou entidade onde se originou o processo disciplinar.
Parágrafo único. Deferida a petição, a autoridade competente providenciará a constituição de comissão, na forma do art. 149.
Art. 178. A revisão correrá em apenso ao processo originário.
Realizada a nova instrução processual, com direito a contraditório e ampla defesa, se no Relatório Final a comissão de revisão apontar que realmente o servidor demitido, quando do acontecimento do fato, estava em gozo de licença sem remuneração, não haverá outra solução senão declarar sua inocência e reintegrá-lo ao serviço público.
Bibliografia:
COSTA, José Armando da. Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 3ª edição, Brasília Jurídica, 1999.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 22ª edição, São Paulo, Malheiros, 1997
MENEGALE, J. Menegale. O Estatuto dos Funcionários, Rio de Janeiro-São Paulo, Forense, 1962.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 12ª edição, 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros, 1999.
MADEIRA, Vinicius de Carvalho. Lições de Processo Disciplinar, Brasília, Editora Fortium, 2008.
REIS, Palhares Moreira. Processo Disciplinar, Recife, Editora Consulex, 1997.
REZENDE, Adriana Menezes. Do Processo Administrativo Disciplinar e da Sindicância, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2000.
Procurador Federal. Coordenador-Geral de Direito Administrativo e Consultor-Geral Jurídico Substituto do Ministério da Previdência Social. Presidente de Comissão de Processo Administrativo Disciplinar. Estudante do Curso de Doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Buenos Aires. Especialista em Direito Público pela ESMAPE.Ex-Assessor da Casa Civil da Presidência da República. Ex-Coordenador de Consultoria e Assessoramento Jurídico da Superintendência Nacional de Previdência Complementar-PREVIC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Virgilio Antonio Ribeiro de Oliveira. A inexistência do ilícito de exercício de gerência no caso de servidor em gozo de licença sem remuneração, nos moldes da Lei nº 8.112/90 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out 2013, 14:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37039/a-inexistencia-do-ilicito-de-exercicio-de-gerencia-no-caso-de-servidor-em-gozo-de-licenca-sem-remuneracao-nos-moldes-da-lei-no-8-112-90. Acesso em: 23 dez 2024.
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