A Lei 12.490/2011 trouxe como principal inovação, a introdução do artigo 68-A à Lei do Petróleo (Lei 9.478/97) nos termos do PLV 21-2011 (Projeto de Lei de Conversão da MP 532/2011) sobre a regulação da indústria de biocombustíveis e do setor de combustíveis em geral. Vale a pena transcrever o dispositivo para análise mais detalhada:
“CAPÍTULO IX-A
DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS DA INDÚSTRIA DE BIOCOMBUSTÍVEIS
Art. 68-A. Qualquer empresa ou consórcio de empresas constituídas sob as leis brasileiras com sede e administração no País poderá obter autorização da ANP para exercer as atividades econômicas da indústria de biocombustíveis.
§ 1o As autorizações de que trata o caput destinam-se a permitir a exploração das atividades econômicas em regime de livre iniciativa e ampla competição, nos termos da legislação específica.
§ 2o A autorização de que trata o caput deverá considerar a comprovação, pelo interessado, quando couber, das condições previstas em lei específica, além das seguintes, conforme regulamento:
I - estar constituído sob as leis brasileiras, com sede e administração no País;
II - estar regular perante as fazendas federal, estadual e municipal, bem como demonstrar a regularidade de débitos perante a ANP;
III - apresentar projeto básico da instalação, em conformidade às normas e aos padrões técnicos aplicáveis à atividade;
IV - apresentar licença ambiental, ou outro documento que a substitua, expedida pelo órgão competente;
V - apresentar projeto de controle de segurança das instalações aprovado pelo órgão competente;
VI - deter capital social integralizado ou apresentar outras fontes de financiamento suficientes para o empreendimento.
§ 3o A autorização somente poderá ser revogada por solicitação do próprio interessado ou por ocasião do cometimento de infrações passíveis de punição com essa penalidade, conforme previsto em lei.
§ 4o A autorização será concedida pela ANP em prazo a ser estabelecido na forma do regulamento.
§ 5o A autorização não poderá ser concedida se o interessado, nos 5 (cinco) anos anteriores ao requerimento, teve autorização para o exercício de atividade regulamentada pela ANP revogada em decorrência de penalidade aplicada em processo administrativo com decisão definitiva.
§ 6o Não são sujeitas à regulação e à autorização pela ANP a produção agrícola, a fabricação de produtos agropecuários e alimentícios e a geração de energia elétrica, quando vinculadas ao estabelecimento no qual se construirá, modificará ou ampliará a unidade de produção de biocombustível.
§ 7o A unidade produtora de biocombustível que produzir ou comercializar energia elétrica deverá atender às normas e aos regulamentos estabelecidos pelos órgãos e entidades competentes.
§ 8o São condicionadas à prévia aprovação da ANP a modificação ou a ampliação de instalação relativas ao exercício das atividades econômicas da indústria de biocombustíveis.”
A legislação em questão ampliou o escopo regulatório da ANP, de modo que esta agência pudesse acompanhar e regular de modo mais próximo o setor de biocombustíveis, garantindo o correto funcionamento do mercado e evitar retrocessos operacionais na bem sucedida política de biocombustíveis brasileira.
Entretanto, uma pequena alteração sofrida no texto original da referida Medida Provisória durante a tramitação do projeto de lei de conversão acaba por dar um tratamento diferente e injustificado aos agentes econômicos que operam com biocombustíveis, que pode acabar por suprimir os ganhos regulatórios inicialmente propostos, e até mesmo tornar a regulação do setor menos eficiente como um todo.
Pretendemos demonstrar que a menção dos §§ 2º e 3º do artigo 68-A da Lei de Conversão da MP532/2011 a "lei específica" e "conforme previsto em lei", respectivamente para estabelecer os requisitos de autorização de atividades da indústria dos biocombustíveis contém uma falha técnico-conceitual, além de estar em dissonância com a sistemática da regulação federal do abastecimento de combustíveis, o que pode ocasionar ineficiências estruturais e falhas de regulação.
Numa primeira análise, verifica-se que a própria expressão "autorização" tradicionalmente transmite a noção de ato discricionário do poder público sobre o exercício de determinada atividade, noção essa compartilhada pelos principais doutrinadores do Direito Administrativo Brasileiro (P. ex. BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo; CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo; e PIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo.) A jurisprudência dos tribunais superiores não destoa desse entendimento, reconhecendo o STJ o caráter discricionário das autorizações do poder público em atos relativos, por exemplo, à regulação do setor de seguros (REsp 851090 / SP), telecomunicações (MS 14760 / DF) e vigilância sanitária (AgRg no REsp 1183581 / MG).
No caso específico da regulação do abastecimento nacional de combustíveis não é diferente, conforme manifestações jurídicas da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional do Petróleo (Parecer 01/2003 e Nota 102/2007). Ressalte-se que não se defende aqui uma análise subjetiva ou casuística da expedição de autorizações, mas sim do exercício da discricionariedade técnica da agência reguladora, baseada em critérios objetivos, porém dinâmicos dos setores regulados, e por isso mesmo veiculados através de atos de regulação infralegais - no caso, Resoluções da Diretoria Colegiada da ANP.
Ou seja, à semelhança do sistema atualmente vigente para toda a indústria do petróleo, seus derivados e gás natural, a outorga e manutenção das autorizações para atividades relacionadas aos biocombustíveis estaria vinculada à observância de requisitos impessoais e objetivos estabelecidos pela ANP, que, manteria a flexibilidade para adequar as exigências ao dinamismo da indústria. Essa flexibilidade, na verdade, é uma das principais razões de ser das agências reguladoras, conforme ampla doutrina no âmbito do direito comparado (MAJONE, 2006).
Adicionalmente, verificamos que a própria Lei do Petróleo, na sua redação original, outorga competência para exercer a regulação do abastecimento nacional de combustíveis em geral (art. 8º, XV), e com as alterações da MP 532/2011, também dos biocombustíveis (art. 8º, XVI, nova redação), sempre utilizando em conjunto os vocábulos "regular e autorizar", demonstrando que são duas vertentes indissociáveis da aplicação contemporânea do direito administrativo econômico. Convém aqui destacar que a ANP tem estabelecido tal regulação do setor de combustíveis, desde que foi fundada, com prudência e apuro técnico, sem que tenha sido sequer cogitado qualquer excesso ou exigência infundada a merecer correção do legislador. Pelo contrário, a regulação da área é considerada um modelo de sucesso para outros países e contribuiu para o atingimento de índices de conformidade de combustíveis compatíveis com os melhores padrões internacionais.
Por outro lado, o estabelecimento de requisitos normativos distintos para as atividades relacionadas com combustíveis derivados de petróleo e os chamados biocombustíveis vai de encontro às próprias finalidades declaradas quando da edição da MP 532/2011, quais sejam, de prover a ANP com arsenal de medidas para regulação dos biocombustíveis equivalentes às já disponíveis para regulação do abastecimento em geral, viabilizando a execução de uma política integrada para o setor.
Com a nova redação atribuída aos §§ 2º e 3º do artigo 68-A, temos a insólita possibilidade de a ANP ter a competência de instituir requisitos técnicos para a outorga de autorizações de atividades relacionadas a combustíveis derivados de petróleo (como os relativos à qualidade dos produtos, capacidade de armazenamento para amenizar a oscilação de preços, segurança de operação, etc.), mas não poder fazer o mesmo em relação aos biocombustíveis.
O § 3º, em especial, se aplicado em conjunto com o artigo 10 da Lei 9.847/99, atualmente vigente, pode ser interpretado no sentido de que veda que a ANP revogue a autorização para atividade de revenda de biocombustíveis, mesmo que o agente econômico seja flagrado praticando fraudes na formulação dos biocombustíveis com desrespeito a normas básicas de respeito à saúde e segurança dos trabalhadores e consumidores, pois tal fato só poderia ocorrer após a quarta condenação seguida. Ainda assim, o ingresso com ação judicial pode suspender por anos a decisão final de cada uma das condenações, o que tornaria praticamente inviável, na prática, a revogação da autorização, por piores que sejam as condutas dos agentes econômicos.
Além da aplicação da revogação de autorização com o caráter de sanção, a ANP dispõe, em relação à cadeia dos combustíveis em geral, da prerrogativa de revogação da autorização em caráter discricionário, para atendimento do interesse público, a ser exercida em raríssimas hipóteses e com a devida fundamentação. A nova redação do dispositivo retira tal possibilidade exclusivamente para a cadeia dos biocombustíveis, de modo inconsistente com a pretendida unificação da regulação. E o que é pior, tal diferenciação estende-se até o posto de revenda de combustíveis em geral, conforme o conceito de "índústria de biocombustíveis" inserido no inciso XXVIII do art. 6º da Lei do Petróleo lei sob análise. Isso dá margem a situações absurdas: um posto que não atenda determinados requisitos regulamentares básicos, por exemplo, pode ter sua autorização indeferida em relação a combustíveis em geral, mas teria direito de exigir sua licença exclusivamente para comercializar biocombustíveis puros (p. ex. etanol hidratado).
Com o tempo, a confiabilidade e a estabilidade dos preços desses últimos seriam menos tuteladas pela ANP que as dos primeiros, prejudicando os programas nacionais de biocombustíveis na contramão do pretendido inicialmente com a edição da MP 532/2011. Tal quadro pode gerar também uma série de problemas operacionais para a regulação e fiscalização do setor, uma vez que a principal destinação dos biocombustíveis tem sido justamente a mistura com combustíveis convencionais. Como prever regulações sujeitas a arcabouços legais distintos para atividades tão proximamente relacionadas?
Deste modo, consideramos que as alterações trazidas pela Lei 12.490/2011, em especial o novo artigo 68-A da Lei 9.478/1997, apesar de representarem um avanço na regulação dos biocombustíveis, contém limitações inseridas ao longo do processo legislativo que podem trazer sérios problemas à regulação do setor.
REFERÊNCIAS
DUAILIBE, Allan Kardec (org.). Combustíveis no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Synergia Editora, 2012.
MAJONE, Giandomenico. Do estado Positivo ao estado regulador: causas consequências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord.). Regulação Econômica e Democracia: O debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Artur Watt. A regulação dos biocombustíveis com as mudanças introduzidas pela Lei 12.490/2011 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37110/a-regulacao-dos-biocombustiveis-com-as-mudancas-introduzidas-pela-lei-12-490-2011. Acesso em: 23 dez 2024.
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