RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade de rateio de pensão por morte entre viúva e concubina, sob a perspectiva legal, doutrinária e jurisprudencial, especialmente a partir do julgamento do Recurso Extraordinário – RE 397.762 pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Pensão por morte à concubina; diferença entre união estável e concubinato; rateio da pensão entre viúva e concubina; RE 397.762.
INTRODUÇÃO
Após a Constituição Federal de 1988, a família tornou-se objeto de proteção do Estado, sendo reconhecida “a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (art. 226, §3º).
Questiona-se se a união decorrente de concubinato também estaria protegida pelo Estado e geraria direito ao rateio da pensão por morte entre viúva e concubina.
1. DIFERENÇA ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CONCUBINATO
Sílvio Venosa ressalta que o concubinato “não é mais sinônimo de união estável”[1].
Segundo Washington de Barros Monteiro, união estável é a “relação lícita entre um homem e uma mulher, em constituição de família, chamados os partícipes desta relação de companheiros (Cód. Civil, art. 1723). Concubinato é a relação que não merece a proteção do direito de família, por ser adulterina, denominados concubinos os seus participantes (Cód. Civil, art. 1727)”[2].
O que se observa é que o legislador brasileiro optou por distinguir união estável, existente entre companheiros, livres e desimpedidos de casar, do concubinato, estabelecido entre concubinos, ou seja, entre pessoas impedidas de casar, como ocorre na hipótese em que alguma delas já é casada (art. 1.521, inciso VI, do Código Civil).
2. DA IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE PENSÃO POR MORTE À CONCUBINA NA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA
A pensão por morte somente é garantida aos cônjuges e companheiros (art. 201, V, da CF e art. 16 da lei 8.213/91).
Na legislação previdenciária, caso a união seja estabelecida entre pessoas já casadas, que não estejam separadas de fato ou judicialmente ou cujo cônjuge não esteja ausente, os participantes dessa união extraconjugal não serão considerados dependentes e não farão jus à pensão por morte.
O parágrafo 3º do artigo 16 da lei 8.213/91 conceitua companheira ou companheiro como a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada:
Art. 16. (...)
(...)
§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. (Grifado).
O artigo 76 da lei 8.213/91 reforça o entendimento que afasta a proteção ao concubinato ao esclarecer que somente serão aceitos como companheiros, no caso de algum deles já ser casado, se o respetivo cônjuge estiver ausente, divorciado, separado judicialmente ou de fato:
Art. 76. A concessão da pensão por morte não será protelada pela falta de habilitação de outro possível dependente, e qualquer inscrição ou habilitação posterior que importe em exclusão ou inclusão de dependente só produzirá efeito a contar da data da inscrição ou habilitação.
§ 1º O cônjuge ausente não exclui do direito à pensão por morte o companheiro ou a companheira, que somente fará jus ao benefício a partir da data de sua habilitação e mediante prova de dependência econômica.
§ 2º O cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos concorrerá em igualdade de condições com os dependentes referidos no inciso I do art. 16 desta Lei.
Jedial Galvão Miranda não inclui a concubina como dependente do segurado, pois “para fins previdenciários, conceitua-se como companheiro a pessoa que, não sendo casada, mantém união estável como o segurado da previdência social”[3].
Miguel Horwath Júnior esclarece que a Constituição Federal de 1988 pretendeu dar proteção somente à união estável, já que, inclusive, previu a necessidade de facilitação dessa relação em casamento, o que seria inviável em caso de concubinato[4].
Dessa forma, ainda que seja comprovada a existência de verdadeira família de fato concorrente com a família advinda do casamento, o cônjuge fará jus à pensão por morte na integralidade.
A despeito da tendência inovadora e protetiva da legislação previdenciária às uniões estáveis constituídas de fato[5], o mesmo avanço não ocorreu no que se refere às uniões decorrentes de concubinato.
Portanto, de acordo com a legislação previdenciária atual, não é legítimo o rateio da pensão por morte entre viúva e concubina.
3. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL
No julgamento do Recurso Extraordinário 397.762[6], em 03.06.2008, o Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento no sentido de que “a proteção do Estado à união estável alcança somente as relações legítimas e nestas não está incluído o concubinato” e que “é impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina”.
Tratava-se de segurado falecido (Waldemar do Amor Divino) que era casado e vivia maritalmente com a esposa até a morte, advindo da relação conjugal onze filhos, e que também mantinha relação paralela extraconjugal por 37 anos com Joana da Paixão Luz, da qual foram gerados nove filhos, e administrava as duas famílias, sustentando-as.
Em linhas gerais, o Ministro Marco Aurélio de Mello relatou que o objetivo maior do artigo 226 da Constituição Federal é a proteção ao casamento, uma vez que o reconhecimento da união estável pressupõe a possibilidade de conversão em casamento, o que é inviável no concubinato. Ressaltou que, na legislação ordinária, o Código Civil não admite a configuração de união estável se um dos integrantes já é casado e não está separado de fato. O Ministro considerou o concubinato ilegítimo e com fundamento na segurança jurídica negou a concessão de pensão por morte à concubina. Por fim, observou que conceder pensão à concubina seria permitir que ela se beneficiasse da própria torpeza, por se tratar de situação ilegal.
Em sentido divergente, o Ministro Carlos Ayres Britto criticou a permanência da utilização da palavra “concubinato”, que é “feia, azeda, discriminadora e preconceituosa”, e defendeu que deve ser feita uma interpretação teleológica da Constituição Federal para identificar a necessidade de proteção da família pelo Estado, de forma ampla, e que “o modo pelo qual a família se constituiu é absolutamente secundário”, pois ao Direito “não é permitido sentir ciúmes pela parte traída” e deve atuar como instância protetiva e “não censora ou por qualquer modo embaraçante”. De acordo com o Ministro, para a Constituição não existe concubina, mas apenas companheira, e todo núcleo doméstico deve ser protegido, independentemente da origem.
O Ministro Menezes Direito acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio, sob o fundamento de que a Constituição reconheceu a proteção à união estável, devendo a lei facilitar a conversão em casamento, razão pela qual seria contraditório admitir a configuração de união estável na hipótese em que exista impedimento para casar e, portanto, seja “impossível transformar essa união estável em casamento”.
A Ministra Carmén Lúcia ressaltou que permanece vigente em nosso ordenamento o crime de bigamia e a impossibilidade de converter união estável em casamento caso uma das partes já seja casada.
O Ministro Ricardo Lewandovski sustentou que o ordenamento jurídico diferencia união estável de concubinato (art. 1.723 e 1.727 do Código Civil) e observou que as relações extraconjugais não preenchem o requisito de publicidade para a configuração de união estável, uma vez que são relações adulterinas e clandestinas.
Portanto, o Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, não reconheceu o direito à concessão de pensão por morte à concubina.
No mesmo sentido, é o entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça[7] e na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais[8].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A nova ordem constitucional alterou profundamente o conceito de família e garantiu a proteção do Estado não somente à família constituída pelo casamento, mas também pela união estável e pelas relações monoparentais.
Contudo, o Código Civil é expresso no sentido de que as relações oriundas de concubinato são ilegítimas e não constituem entidade familiar para efeito de proteção pelo Estado.
A lei 8.213/91 somente garante a pensão por morte aos cônjuges e companheiros que, sem serem casados, vivam em união estável. A lei previdenciária dispõe que somente podem ser beneficiários da pensão os companheiros, no caso de algum deles já ser casado, se o cônjuge estiver ausente, divorciado, separado de fato ou judicialmente.
O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, em consonância com a doutrina no âmbito do Direito de Família e do Direito Previdenciário, negaram proteção do Estado ao concubinato.
Nesse contexto, é possível afirmar que atualmente é vedado no ordenamento jurídico o rateio da pensão por morte entre viúva e concubina.
Contudo, a legislação deveria avançar para acompanhar a complexidade das relações sociais do mundo contemporâneo e proteger os relacionamentos estáveis, duradouros e públicos, que constituam uma família de fato, desde que devidamente comprovados, independentemente da origem dessas relações.
Se a Constituição Federal retirou o pressuposto de casamento para proteção de uma família de fato, o casamento também não deveria ser utilizado como argumento para afastar a proteção a uma segunda família.
Tanto é verdade que, embora exista o crime de bigamia, caso haja duas uniões estáveis de fato, ambas serão protegidas pelo Direito.
O preconceito referente ao concubinato deveria ser abandonado pelo ordenamento jurídico, sob todos os aspectos. Inclusive, sequer há o termo “concubino” no dicionário da Língua Portuguesa[9], mas somente concubina, o que denota sua origem retrógrada e preconceituosa.
O dever de fidelidade já existe e moralmente deve ser respeitado, mas não garante a estabilidade da família. Muitas vezes surge uma segunda família de fato, e, desde que devidamente comprovado que também configure uma união estável, duradoura e pública, com objetivo de constituição de família, deveria ser objeto de proteção pelo Estado, independentemente da origem, o que, porém, ainda não ocorre no ordenamento vigente.
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito de família. v. 6. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
HORVATH Jr., Miguel. Direito Previdenciário, 7. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
MIRANDA, Jediael Galvão. Direito da Seguridade Social: direito previdenciário, infortunística, assistência social e saúde. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito de família. v. 2. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. v. 6. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
[1] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. v. 6. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 38.
[2] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito de família. v. 2. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 31.
[3] MIRANDA, Jediael Galvão. Direito da Seguridade Social: direito previdenciário, infortunística, assistência social e saúde. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 151
[4] HORVATH Jr., Miguel. Direito Previdenciário, 7. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 169.
[5] As leis previdenciárias há tempos garantiam a proteção à união estável (lei 4.297, de 23-12-1963, lei 5.698, de 31-8-1971, lei 6.194, de 19-12-1974, art. 4º, §1º, com alterações pela lei 8.441, de 13-7-1992, lei 8.212/91, art. 12, VII e lei 8.213/91, art. 16, I). A lei de acidentes de trabalho também já assegurava à companheira mantida pela vítima os mesmos direitos da pessoa civilmente casada (Decreto-lei n. 7.036, de 10 de novembro de 1994, art. 21, parágrafo único, e a Lei 6.376, de 19 de outubro de 1976) . (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito de família. v. 2. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 40-41).
[6] STF, RE 397762 / BA – BAHIA, Relator Min. Marco Aurélio de Melo, Julgamento: 03/06/2008 , Órgão Julgador: Primeira Turma, RECTE.(S): ESTADO DA BAHIA ADV.(A/S): PGE-BA - ANTONIO ERNESTO LEITE RODRIGUES RECDO.(A/S): JOANA DA PAIXÃO LUZ ADV.(A/S): CÁTIA RÉGIA TELES NERY E OUTRO(A/S).
[7]Disponível em: < http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=91142>. Acesso em: 01/11/2013.
[8] TNU, PEDILEF 00134218020104013900, Relatora Juíza Federal Simone Lemos Fernandes, DOU 27/04/2012.
[9]Disponível em: . Acesso em: 03.11.2013.
Procuradora Federal. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado e Escola Superior da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TSUTSUI, Priscila Fialho. Rateio de pensão por morte entre viúva e concubina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37186/rateio-de-pensao-por-morte-entre-viuva-e-concubina. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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