Introdução
A locação ou compra de bens imóveis figura como uma das hipóteses de licitação dispensável prevista na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos – LLC). O Tribunal de Contas da União (TCU) tem entendido que o dispositivo se aplica quando exista apenas um imóvel que se enquadre nos requisitos previstos no art. 24, X, da LLC, assim, se houver mais de um imóvel que atenda às necessidades da Administração, seria ilícita uma contratação direta, porque obrigatória a realização de uma licitação.
O objetivo do presente estudo é comprovar que a posição do TCU representa uma forma tácita de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, pois implica seu completo esvaziamento. Partindo dessa premissa, os fundamentos postos e as conclusões procurarão demonstrar a possibilidade de contratação direta mesmo quando exista mais de um imóvel que se enquadre nos requisitos do art. 24, X, da LLC, desde que atendidos os todos requisitos para aplicação do dispositivo.
Para se chegar à conclusão pretendida, invoca-se o postulado de presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos, o que permite aos aplicadores a utilização das normas tal qual previstas até eventual declaração de inconstitucionalidade. A partir daí, procura-se dar um determinado sentido e alcance ao dispositivo, de modo que se compatibilize à Constituição Federal, preferindo-se esta solução àquela mais drástica adotada pelo TCU, qual seja, afastar a norma do ordenamento jurídico, ainda que de forma não expressa.
A interpretação do inciso X do art. 24 da LLC adotada pelo TCU
O art. 24 da LLC traz consigo uma série de incisos que tipificam hipóteses em que o procedimento de licitação prévio à contratação se faz dispensável. Ao contrário do que disciplina o art. 25, que trata das inexigibilidades, o art. 24 veicula rol exaustivo.
A dispensa e a inexigibilidade de licitação são medidas de exceção, que retiram seu fundamento do mesmo dispositivo constitucional que obriga o procedimento prévio à contratação, qual seja, o art. 37, XXI, que estabelece a obrigatoriedade de contratação mediante processo de licitação pública “ressalvados os casos especificados na legislação”.
Como explica Di Pietro,
A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável. (2006: 361)
Essa distinção, corriqueira na doutrina, é de imprescindível relevo para o caso em apreço.
A aquisição ou locação de imóveis pela Administração Pública, desde que atendidos alguns requisitos, estão previstas como casos de licitação dispensável. Na linha do que ensina a doutrina, significa dizer que, quando possível o certame, faculta-se a contratação direta com base no art. 24, X, da LLC. Eis o dispositivo:
Art. 24. É dispensável a licitação:
[...]
X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
Note-se que há uma série de condições para que se possa fazer uso da escusa do dever de licitar, tais como o “atendimento das finalidades precípuas da administração” (não acessórias) e “o preço compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia”. Conforme Acórdão nº 6.259/2011-2ª Câmara “finalidades precípuas da administração” são aquelas finalísticas, não meramente acessórias:
No presente caso, de realização de atividades acessórias, a aquisição deveria ter sido precedida de procedimento licitatório. Neste ponto, portanto, as justificativas apresentadas não são suficientes para afastar a irregularidade da conduta das responsáveis.
Merece destaque a vinculação do dispositivo aos motivos da dispensa: a escolha de certo e determinado imóvel (motivo) deve estar condicionada às necessidades de instalação e localização.
Vale destacar também a relevância do primeiro requisito (atendimento às finalidades precípuas da administração), pois em se tratando de imóvel para desenvolver atividades meramente acessórias, enquadramento a ser feito conforme o caso concreto, não há sequer de se cogitar a utilização do dispositivo.
A quantidade de requisitos poderia levar o intérprete à conclusão de que a aplicação do dispositivo somente seria possível quando houvesse um só imóvel à disposição, configurando, na verdade, hipótese de inexigibilidade de licitação, apesar de arrolado no dispositivo que trata da dispensa.
Assim entende expressamente Niebuhr quando assevera que “esse é um dos dispositivos [...] que, em vez de dispensa, consignam hipótese de inexigibilidade” (2008: 489). No mesmo sentido é a doutrina de Justen Filho, que, ao comentar o dispositivo, sustenta que:
A ausência de licitação deriva da impossibilidade de o interesse público ser satisfeito através de outro imóvel, que não aquele selecionado [...]. A aquisição ou locação de imóvel destinado a utilização específica ou em localização determinada acarreta a inviabilidade de competição. Trata-se de hipótese de inexigibilidade de licitação e o caso sujeita-se ao disposto no art. 25.
Há hipóteses em que dois (ou mais) imóveis atendem aos reclamos da Administração. Ainda que os imóveis sejam infungíveis entre si, surgirão como intercambiáveis tendo em vista a necessidade e o interesse da Administração Pública. Qualquer dos imóveis satisfará a exigência que justifica a aquisição pela Administração. Nesses supostos, a questão muda de figura e a licitação se impõe. Estarão presentes os pressupostos de competição.
(2004: 250-251)
Tal posicionamento ressoa nas decisões do TCU, tanto nas Câmaras como no Plenário, conforme numerosos casos analisados, alguns abaixo transcritos:
[ACÓRDÃO]
9.6. alertar a [...] que, doravante, caso haja a necessidade da locação de imóvel destinado a acomodar os profissionais de saúde que prestam serviços ao município, realize procedimento licitatório ou, em caso de dispensa prevista no art. 24, inciso X, da Lei nº 8.666/1993, autue processo correspondente, em que fique bem definida a situação de excepcionalidade e característica única do imóvel e a impossibilidade de competição.
(Acórdão nº 5281/2010 – 1ª Câmara) - sublinhamos
[ANÁLISE]
11. Preliminarmente, cabe registrar, caso a Administração Pública figure como locatária, a possibilidade de contratação direta com base no inc. X do art. 24 da Lei nº 8.666/93, que somente deve ser realizada nas situações excepcionais expressamente previstas em lei.
12. Por conseguinte, caso exista mais de um imóvel que atenda às necessidades da Administração, estarão presentes os pressupostos da competição, impondo-se a licitação, como adverte Marçal Justen Filho:
[...]
(Acórdão nº 1127/2009 – Plenário) – sublinhamos
[ACÓRDÃO]
1.5. Determinações:
1.5.1. ao [...] que realize o devido procedimento licitatório, ao proceder à compra ou à locação de imóvel, e somente utilize o art. 24, inciso X, da n. Lei n. 8.666/1993, quando identificar um imóvel específico cujas instalações e localização evidenciem que ele é o único que atende o interesse da administração, fato que deverá estar devidamente demonstrado no respectivo processo administrativo;
(Acórdão 3461/2009 – 1ª Câmara) – sublinhamos
[VOTO]
9. Há, entretanto, um outro aspecto que deve ser abordado - a utilização de dispensa de licitação para realizar a locação do imóvel, com base no art. 24, inciso X, da Lei nº 8.666/93. Com as devidas vênias, discordo nesse ponto da unidade técnica, que entendeu que o caso concreto se enquadra na hipótese prevista no referido dispositivo.
10. O art. 24, inciso X, da Lei de Licitações estabelece ser dispensável a licitação 'para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da Administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia'.
11. Verifica-se, portanto, que a utilização desse dispositivo só é possível quando se identifica um imóvel específico cujas instalações e localização sinalizem que ele é o único que atende o interesse da administração. Nesse sentido se manifestam Marçal Justen Filho e Jessé Torres Pereira Júnior a respeito desse comando legal:
12. No caso em tela, essa hipótese não se verificou. Tanto é assim que o [...] publicou em Diário Oficial aviso de que estava procurando um imóvel, recebeu dez propostas, e a partir delas escolheu qual delas melhor lhe atenderia. Ou seja, não havia um determinado imóvel previamente identificado, que por suas características de instalações e localização fosse o único a atender as necessidades da administração. Havia, potencialmente, diversos imóveis que poderiam atender o instituto. Assim, deveria ter sido realizado um certame licitatório para realizar a locação.
13. A questão a ser analisada a partir desse ponto é se essa irregularidade - a falta de licitação para a locação do imóvel, por parte do [...] - deve ensejar alguma proposta de paralisação dos procedimentos para locação e/ou a realização de audiência dos responsáveis para fins de eventual apenação.
[...]
23. A conclusão é que a não-realização da licitação nos moldes previstos na Lei 8.666/93, neste caso concreto, não trouxe prejuízos que ensejassem a paralisação dos procedimentos para locação do imóvel ou mesmo a apenação dos responsáveis, tendo em vista que diversas imobiliárias apresentaram propostas, o preço do imóvel escolhido foi compatível com o de mercado e a não-opção por imóveis mais baratos foi devidamente justificada, tendo em vista os interesses da administração. Entendo suficiente que se faça a determinação corretiva pertinente ao [...].
[ACÓRDÃO]
9.2. determinar ao [...] que, ao proceder à compra ou à locação de imóvel, somente utilize o art. 24, inciso X, da Lei 8.666/93, quando identificar um imóvel específico cujas instalações e localização evidenciem que ele é o único que atende o interesse da administração, fato que deverá estar devidamente demonstrado no respectivo processo administrativo;
(Acórdão 444/2008 – Plenário) – sublinhamos
[VOTO]
A Tomada de Contas Especial em exame originou-se da Representação formulada pela Secex/SC, a partir de matéria veiculada em jornal de grande circulação no Estado de Santa Catarina, noticiando possíveis irregularidades praticadas pelo [...], na aquisição de imóvel destinado a abrigar a sua nova sede.
[...]
9. [...] a não-observância dos requisitos para a aquisição do imóvel com dispensa de licitação fundada no art. 24, inciso X, da Lei n. 8.666/1993, uma vez que, além de se ter conhecimento da existência de, no mínimo, quatro imóveis que poderiam atender aos objetivos do Inmetro, não houve, como constou detalhadamente das análises feitas pela unidade técnica, a necessária compatibilidade do bem com o valor de mercado.
[SUMÁRIO]
A não-observância dos requisitos para a aquisição do imóvel com dispensa de licitação fundada no art. 24, inciso X, da Lei n. 8.666/1993, além do configurado prejuízo decorrente da ausência de compatibilidade do bem com o valor do mercado, segundo avaliação prévia, enseja a irregularidade das contas, com a condenação em débito dos responsáveis e aplicação de multa.
(Acórdão 429/2008 – 1ª Câmara) – sublinhamos
Nota-se que a interpretação corrente no TCU considera o art. 24, X, da LLC hipótese de inexigibilidade, pois somente seria aplicável quando da existência de apenas um único imóvel que interessasse à Administração. O posicionamento, como já destacado, ampara-se principalmente na doutrina de Justen Filho, colacionada neste Parecer.
Contraponto à posição do TCU
Com a devida vênia, a interpretação dada pelo TCU amparada na doutrina citada implica tácita declaração de inconstitucionalidade do art. 24, X, da LLC, conforme a seguir demonstrado. Ao limitar a aplicação do dispositivo quando exista um só imóvel, o Tribunal está na verdade utilizando a regra geral do art. 25, aplicável quando impossível a competição, sem qualquer necessidade de recurso ao inciso do art. 24; ao adotar, ainda que tacitamente, a inexigibilidade, afasta a faculdade do art. 24, uma vez que, sendo único o imóvel (singular), a contratação dar-se-ia por inexigibilidade.
Havendo um só imóvel, não haveria sequer de cogitar-se sobre o atendimento das atividades-fim (atividade precípua da administração) ou de atividade acessória, como exige o inciso X do art. 24, pois a hipótese seria de inexigibilidade. O Tribunal acaba por utilizar o art. 25, mas de forma ainda mais restritiva, pois exige o atendimento dos requisitos do art. 24, X. Ora, se o imóvel é único, não há que se verificar qualquer outro requisito que não os da inexigibilidade.
Niebuhr chega a defender expressamente a inconstitucionalidade do dispositivo:
Nesse quadro, é patente que realizar licitação para comprar ou locar imóvel não implica prejuízo ou gravame algum; por isso, o legislador não agrega competência para qualificar como dispensa casos desse naipe, que, se fossem criados, forçosamente ensejariam o reconhecimento de desvio de poder legislativo, que é espécie de inconstitucionalidade. Então, para evitar tachar de inconstitucional o dispositivo em apreço, é imperioso interpretá-lo conforma a Constituição, para o efeito de reconhecer a ele incidência somente nos casos em que o imóvel visado pela Administração desfrute de características que o singularize, ainda que, para tanto, seja inevitável admitir tratar-se de hipótese de inexigibilidade, não de dispensa. (2008: 491)
A despeito da discussão doutrinária sobre a natureza jurídica da técnica denominada interpretação conforme (cf. Branco, Gonet e Mendes, 2011: 1366-1372), a tese que sustenta a aplicação do inciso X do art. 24 da Lei 8.666/93 somente quando exista um único imóvel implica declaração transversa de inconstitucionalidade do dispositivo, uma vez que transfere o fundamento da contratação para o art. 25 (inexigibilidade) como se a hipótese de dispensa não pudesse subsistir por ser inconstitucional.
Apesar de reconhecida a competência do TCU para apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público (Súmula nº 347 do STF), quando se utilizar dessa faculdade, deve fazê-lo de modo expresso e em obediência à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF). Sem essa decisão, parece perfeitamente possível ao gestor utilizar-se da norma como se encontra no ordenamento, ou seja, como hipótese de licitação dispensável.
Adotar a tese até então enunciada pela doutrina e acolhida pela jurisprudência do TCU implicaria reconhecer tacitamente a inconstitucionalidade do inciso X do art. 24 da LLC, que faculta ao gestor, desde que atendidos os demais pressupostos legais, a dispensa de licitação para a aquisição e locação de imóveis.
A defesa da constitucionalidade do dispositivo implica no reconhecimento da possibilidade de contratação direta ainda que exista mais de um imóvel à disposição do gestor. Isso não significa escolha aleatória ou pessoal, pois, para além das regras da LLC, hão sempre de prevalecer os princípios da impessoalidade, da moralidade e da economicidade.
No caso de utilização do art. 24, X, da LLC não pode o gestor afastar-se, por exemplo, do cumprimento do art. 26, parágrafo único, que exige expressamente “a razão da escolha do fornecedor ou executante” (inciso II). O atendimento a este requisito legal garante que, havendo mais de um imóvel, ainda que se faça a contratação direta, estará devidamente motivada a dispensa do certame. A escolha pessoal ou sem fundamento, ao contrário, sujeitará o administrador às sanções legais, que vão desde um mero ilícito administrativo até uma infração penal.
A casuística pode oferecer motivos vários. Cite-se o exemplo de imóveis vizinhos, com a mesma planta, sendo uma edificação bastante antiga e desgastada e outra entregue há pouco tempo, com instalações e equipamentos bem mais modernos. Decerto ambos atenderiam às necessidades de instalação e localização. Numa licitação do tipo menor preço, muito provavelmente o imóvel mais velho sairia vencedor, contudo, quando avaliados os custos com adaptação, manutenção ordinária, adequação etc., a escolha militaria em favor do mais recente, desde, obviamente, que o preço fosse compatível com o de mercado, com imóvel de condições semelhantes.
O que não parece adequado nem juridicamente sustentável é tolher, de antemão, a possibilidade de o gestor fazer uso da dispensa que faculta o inciso X do art. 24 da LLC. Diante do caso concreto, ser-lhe-á lícito decidir entre a realização de uma licitação e a contratação direta por dispensa com fundamento no dispositivo ora em apreço.
Considere-se ainda que, em âmbito federal, o §2º do art. 3º do Decreto nº 7.689/2012 vedou a restrição de bairro ou região na pesquisa por imóveis para locação e aquisição, a não ser no caso de o órgão prestar atendimento ao público. Com isso, obriga-se a ampliação do universo de pesquisa, de modo a permitir ao gestor um maior número de opções, permanecendo, no caso de dispensa de licitação, a obrigação de justificar a razão da escolha do fornecedor e a compatibilidade com o preço de mercado.
Cabe registrar que o regime jurídico anterior à LLC para a locação de imóveis pela Administração, este sim, previa a locação de imóvel como hipótese de inexigibilidade, fazendo-se necessária, por óbvio, a inviabilidade de competição (art. 23, IV, do Decreto-lei nº 2.300/86). A mudança de regime, ou seja, o arrolamento na atual legislação como hipótese de dispensa, não pode ser ignorado pelo intérprete e aplicador da norma. Em outras palavras, não parece lícito dar à legislação atual o mesmo tratamento previsto no regime jurídico passado quando claramente distintos. A alteração há de ser tida como opção legislativa, a ser obedecida até que sobrevenha eventual declaração de inconstitucionalidade.
Subsiste, contudo, a possibilidade de contratação por inexigibilidade, com base no art. 25, caput, da LLC, aplicável, de fato, ao caso em que, após a definição do tipo de imóvel demandado e das propostas apresentadas, restar comprovado que apenas um imóvel atende às características pré-estabelecidas como imprescindíveis, cabendo aqui a lição de Mello, aplicável tanto para o caso de dispensa como para o de inexigibilidade: “Só se licitam bens homogêneos, intercambiáveis, equivalentes. Não se licitam coisas desiguais. Cumpre que sejam confrontáveis as características do que se pretende e que quaisquer dos objetos em certame possam atender ao que a Administração almeja” (2009: 534).
Um dos aspectos distintivos entre a hipótese de dispensa e a de inexigibilidade é que no primeiro caso somente se admite a utilização do art. 24, X, da LLC quando se tratar de “atendimento das finalidades precípuas da administração”, o que o TCU identifica como sendo a atividade-fim do órgão público, aquela para cujo mister ele existe. Essas características, como se disse mais acima, serão apuradas conforme o caso concreto e as atividades desempenhadas por cada órgão da Administração Pública, sendo importante constar dos autos para que se faça o correto enquadramento da possível contratação direta.
Assim, ainda que exista um só imóvel, se a locação ou aquisição não tiver por escopo o “atendimento das finalidades precípuas da Administração”, não será lícita a utilização da dispensa do art. 24, X, da LLC, devendo-se fazer o enquadramento no art. 25, caput, da mesma Lei, se for o caso, ou licitar. Aqui mais uma vez resta clara a possibilidade de existência e aplicação autônoma dos dispositivos.
Pelos motivos acima expostos, o que se defende é que, em sede de aquisição ou locação de imóveis pela Administração, admita-se a convivência entre o art. 24, X, da LLC e o art. 25 da mesma Lei como dispositivos e hipóteses de contratação direta essencialmente distintos, aplicando-se a cada uma deles a disciplina própria.
Entendimento contrário, isto é, no sentido do que vem se posicionando parte da doutrina e do TCU, desafiaria a declaração expressa de inconstitucionalidade do inciso X do art. 24 da LLC, fato de que não se tem notícia. Não é demais destacar a qualidade de que gozam as leis e atos normativos, qual seja, a presunção de constitucionalidade. Devem ser elas aplicadas pelos órgãos executivos como se constitucionais fossem, não obstante a discussão doutrinária a respeito da compatibilidade da norma com a Constituição.
Eventual questionamento deverá ocupar o foro próprio das ações judiciais, notadamente aquelas destinadas a averiguar a constitucionalidade das leis e atos normativos. Contudo, a presunção é de constitucionalidade; tanto é assim que Mendes, ao falar dos efeitos de um julgamento procedente em ação declaratória de constitucionalidade, ou seja, aquela que busca confirmar a validade de uma norma a despeito dos questionamentos que pesam sobre ela, seria o seguinte: “A validade da lei não depende de declaração judicial e a lei vige, após a decisão, tal qual vigorava anteriormente”. (2005: 312).
As decisões restritivas do TCU, inclusive, poderiam até justificar o ajuizamento de uma ação declaratória de constitucionalidade, dada a controvérsia instalada, em que pese a Corte de Contas não ter declarado expressamente a inconstitucionalidade da norma, mas anulado tacitamente sua aplicação.
Por fim, cumpre registrar que a tese aqui defendida já teve a oportunidade de ser analisada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso especial no bojo de uma ação de improbidade. Alguns trechos da ementa convêm sejam reproduzidos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. DISPENSA DE LICITAÇÃO. COMPRA E VENDA E DOAÇÃO DE IMÓVEIS REALIZADOS PELO MUNICÍPIO. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ DO AGENTE PÚBLICO. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. NÃO COMPROVADOS. DANO EFETIVO. AUSÊNCIA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 07/STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA.
1. A compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia, não carece de licitação, ante a ratio do art. 24 da Lei 8666/93.
[...]
6. Ad argumentandum tantum, ainda que ultrapassado o óbice erigido pela Súmula 07/STJ, no mérito, melhor sorte não assiste ao recorrente, mormente porque a abalizada doutrina sobre o thema decidendum, especialmente no que pertine à dispensa de licitação, assenta que: "(...) As diferenças entre inexigibilidade e dispensa de licitação são evidentes. Não se trata de questão irrelevante ou meramente retórica, mas de alternativas distintas em sua própria natureza, com regime jurídico diverso. A inexigibilidade é um conceito logicamente anterior ao da dispensa. Naquela, a licitação não é instaurada por inviabilidade de competição.Vale dizer, instaurar a licitação em caso de dispensa significaria deixar de obter uma proposta ou obter uma proposta inadequada. Na dispensa, a competição é viável e, teoricamente, a licitação poderia ser promovida. Não o é, diante das circunstâncias, a lei reputa que a licitação poderia conduzir à seleção de solução que não seria a melhor, tendo em vista circunstância peculiares. Em suma a inexigibilidade é uma imposição da realidade extranormativa, enquanto a dispensa é uma criação legislativa. Como decorrência direta, o elenco de causas de inexigibilidade contido na Lei tem cunho meramente exemplificativo. Já os casos de dispensa são exaustivos, o que não significa afirmar que todos se encontram na Lei n° 8.666. Outras leis existem, prevendo casos de dispensa de licitação. Como decorrência, a conclusão acerca da caracterização da inexigibilidade faz-se em momento logicamente anterior ao do reconhecimento da dispensa. Num primeiro momento, avalia-se se a competição é ou não é viável. Se não for, caracteriza-se a inexigibilidade. Se houver viabilidade de competição, passa-se à verificação da existência de alguma hipótese de dispensa " Marçal Justen Filho, in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Dialética, São Paulo, 2005
7. Nada obstante, sobreleva notar, a dispensa de licitação para a compra dos imóveis in foco, sob o pálio da Lei Municipal nº 540, de 29 de julho de 1997, [...], decorreu de estudo realizado pela Comissão de Licitação, consoante se infere do excerto do voto condutor, verbis: "(...) Após a análise dos autos verifica-se que, efetivamente, a Administração municipal, após o levantamento realizado pela Comissão Especial instaurada com o objetivo de estudar a viabilidade da compra de terrenos no Distrito Industrial, concluiu pela dispensa de licitação para a aquisição dos referidos lotes, conforme se constata pelo documento de fl. 424-TJ. No entanto, extrai-se que a dispensa de licitação e a posterior compra do terreno foi precedida de um estudo realizado pela referida Comissão, conforme se vê as f.127, a qual informou que "foram visitados vários terrenos, dentre os quais foi considerado o mais apropriado para futuras instalações da empresa Souza e Cambos Ltda, levando-se em conta a localização e infra estrutura", concluindo que o terreno escolhido era aquele pertencente à empresa [...] (...)".
[...]
12. Entrementes, na presente demanda, restou amplamente provado que a conduta do agente político e dos co-réus, não resultou em lesão ao erário público, nem configurou enriquecimento ilícito dos mesmos, o que conduz à inaplicação dos arts. 9º e 10, da Lei 8.429/92, além do fato de que o ato apontado improbo não amolda à conduta prevista no art. 11, à míngua de lesão aos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, tendo em vista que a dispensa de licitação sub examine decorreu de estudo realizado pela Comissão de Licitação, consoante se infere do teor do voto condutor do acórdão recorrido.
[...]
(REsp 797.671/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2008, DJe 16/06/2008) - sublinhamos
Denota-se do julgado a clara percepção de que a hipótese de dispensa do inciso X do art. 24 da LLC distingue-se, em essência, das causas de inexigibilidade. Destarte, uma vez realizados estudos e, ainda que encontrado mais de um imóvel, decidindo-se pela melhor adequação de um em específico (razão da escolha do fornecedor), torna-se lícita a utilização da contratação direta por dispensa ora em apreço.
Conclusão
Para o TCU e parte da doutrina, o art. 24, X, da LLC, que prevê hipótese de licitação dispensável para aquisição e compra de bens imóveis, aplica-se somente quando exista um só bem que atenda aos requisitos do dispositivo.
Esse posicionamento implica reconhecimento, ainda que não expresso, da inconstitucionalidade da norma, pois a afasta completamente sua utilização, transformando uma hipótese de licitação dispensável em inexigível, que tem previsão autônoma. Tal reconhecimento tácito no âmbito do TCU viola a Súmula Vinculante nº 10, além de não ser a melhor solução.
Enquanto não declarada expressamente a inconstitucionalidade do dispositivo, o administrador poderá fazer uso do dispositivo tal qual se encontra na legislação, ou seja, como hipótese de licitação dispensável. Isso implica reconhecer a possibilidade de contratação direta ainda que exista mais de um imóvel que se encaixe nos requisitos legais. No entanto, a contratação direta deve guiar-se pelos princípios da administração pública, notadamente os da publicidade e da impessoalidade, e pelas regras da LLC, especialmente aquela que exige apresentação das justificativas da escolha do fornecedor (art. 26, parágrafo único, II).
O contraponto à posição do TCU toma como base ainda três fundamentos: (a) a clara mudança de tratamento da legislação atual em relação à anterior, que previa, esta sim, uma hipótese de licitação inexigível para a contratação direta atualmente tratada como dispensável; (b) a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos, que permite sua aplicação tal qual previstos até que sobrevenha declaração de inconstitucionalidade ou decisão vinculante fixando a interpretação constitucionalmente admissível e, por fim, (c) uma análise pragmática permite claramente distinguir e aplicar autonomamente os requisitos quando a contratação for por dispensa ou por inexigibilidade, admitindo-se a convivência harmônica de ambos os institutos, sem a necessidade de anular uma deles.
REFERÊNCIAS
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006.
Justen Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 10 ed. São Paulo: Dialética, 2004.
Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Niebuhr, Joel de Menezes Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
Procurador Federal. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DINIZ, Braulio Gomes Mendes. Locação e compra de bens imóveis (Art. 24, X, Lei nº 8.666/93): um contraponto à posição adotada pelo TCU Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37271/locacao-e-compra-de-bens-imoveis-art-24-x-lei-no-8-666-93-um-contraponto-a-posicao-adotada-pelo-tcu. Acesso em: 23 dez 2024.
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