Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a questão relativa à possibilidade de adoção pelo autor, no processo comum de conhecimento, de procedimento diverso do legalmente previsto, à luz da legislação e da jurisprudência atuais.
Palavras-chave: Processo Civil. Processo de conhecimento. Procedimento. Alteração.
INTRODUÇÃO
Para uma melhor compreensão do tema em análise, é importante traçar a distinção, ainda que em breves linhas, dos conceitos de processo e procedimento.
Processo é a relação jurídica de direito público que se traduz no método utilizado para a solução de litígios pelas partes por meio da atuação estatal através da jurisdição. É o “instrumento de que dispõem o Estado e as partes para buscar a solução pacificadora dos conflitos, servindo de meio, portanto, para a realização de objetivos afeiçoados ao Estado de Direito”[1].
O procedimento é a veste formal do processo, ou seja, a exteriorização da relação processual, “conjunto ordenado de atos mediante os quais o juiz exerce a jurisdição e as partes a defesa de seus interesses”[2], podendo assumir distintas feições de acordo com fatores eleitos pelo legislador, tais como o valor da causa, a natureza do direito material controvertido, a espécie de tutela jurisdicional pretendida, dentre outros.
Em uma mesma categoria de processo podem existir diversos tipos de procedimento, tal como ocorre no processo de conhecimento, no qual coexistem os procedimentos sumário e ordinário.
O presente trabalho objetiva analisar, sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, a possibilidade de utilização pelo autor, no processo de conhecimento, de procedimento diverso do legalmente previsto.
PROCEDIMENTOS NO PROCESSO COMUM DE CONHECIMENTO
De acordo com o art. 271 do CPC, aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário do próprio código ou de lei especial. O art. 272 subdivide o procedimento comum em ordinário ou sumário.
O art. 275 elenca as hipóteses em que deve ser observado o procedimento sumário:
I – em razão do valor, nas causas cujo valor não exceda a 60 (sessenta) vezes o valor do salário mínimo;
II – em razão da matéria, independente do valor da causa, nas hipóteses de:
a) de arrendamento rural e de parceria agrícola;
b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio;
c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico;
d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre;
e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados os casos de processo de execução;
f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial;
g) que versem sobre revogação de doação;
h) nos demais casos previstos em lei (exemplos: art. 129, Lei 8213/91 – benefícios previdenciários; art. 110, §3º da Lei 6015/73 – retificação de registro civil; art. 68 da Lei 8245/91 – revisional de aluguel; art. 16, DL 58/37 – ação de adjudicação compulsória)
O rito sumário caracteriza-se por uma maior celeridade e concentração de atos processuais com vistas a uma solução mais rápida da lide. Assim, no procedimento sumário: a petição inicial deverá trazer o rol de testemunhas e se requerer pericia deverá o autor desde logo formular quesitos (art. 276), o réu será citado para comparecer à audiência de conciliação, e caso não obtida a composição deverá oferecer sua resposta escrita ou oral (arts. 277 e 278) e o seu não comparecimento injustificado implica em reputarem-se verdadeiros os fatos alegados na petição inicial (salvo se o contrário resultar da prova dos autos), proferindo o juiz, desde logo, a sentença (art. 277, §2º)
Por exclusão, não sendo hipótese de adoção do rito sumário, deverá ser observado o procedimento ordinário, através do qual se buscará uma cognição ampla com o exaurimento das fases postulatória, ordinatória, instrutória e decisória.
ADOÇÃO DE PROCEDIMENTO DIVERSO DO LEGALMENTE PREVISTO
É possível que o autor, na petição inicial, eleja rito processual diverso do legalmente previsto, propondo ação pelo rito ordinário quando há previsão expressa de aplicação do rito sumário, ou pelo rito sumário, quando cabível o ordinário?
Há entendimento de que não é dado às partes ou ao Juiz a faculdade de substituir o rito sumário pelo ordinário nos casos em que a lei prevê expressamente a aplicação do rito sumário, uma vez que a norma que estabelece o rito procedimental tutela o interesse público.
Humberto Theodoro Júnior[3] leciona que:
“Não pode o autor nem mesmo com o assentimento do réu, substituir o procedimento sumário pelo ordinário naqueles casos em que a lei manda observar o primeiro.(...) ‘A forma de procedimento não é posta no interesse das parte, mas da Justiça.’ A não ser nas hipóteses de pedidos cumulados (art. 292, §2º), ‘ a parte não tem disponibilidade de escolha do rito da causa’”.
Para Cândido Rangel Dinamarco[4]:
“O traçado do quadro dos procedimentos em dada ordem jurídico-processual, acompanhado da minuciosa definição das causas a serem processadas segundo cada um deles, é regido por razões de ordem pública que se impõem à vontade das partes e prevalecem sobre ela ainda quando estejam de acordo. Essa é uma característica das normas processuais cogentes, não-dispositivas. Para a boa ordem dos serviços judiciários, o Estado quer que seus juízes exerçam uma função que é sua – a jurisdição – pelos modos que ele indica na lei e não como preferirem os particulares. Daí a indisponibilidade dos procedimentos, que é um ponto verdadeiramente fixo na teoria e na disciplina destes.
De acordo com o entendimento segundo o qual a fixação do procedimento a ser observado tem por escopo a tutela do interesse público, a hipótese de substituição pela parte do procedimento legalmente previsto restaria de plano afastada. Porém, apesar da autoridade das opiniões em sentido contrário, a análise do tema deve levar em consideração a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, da razoável duração do processo (Constituição Federal, art. 5º, LV e LXXVIII), e da instrumentalidade das formas.
Tomemos como exemplo as seguintes situações hipotéticas: a) determinada pessoa mantém parceria agrícola com um grupo grande de agricultores e como estes deixaram de cumprir sua obrigação, pretende propor ação visando o adimplemento do contrato; b) em um acidente de trânsito com grande número de abalroamentos, um dos prejudicados pretende ajuizar ação indenizatória em face de vários dos envolvidos, o que demandará extensa dilação probatória. Nas duas hipóteses, apesar de se tratarem de situações em que por expressa disposição legal o rito processual cabível é o sumário, sua adoção poderia implicar na inviabilidade do trâmite processual, seja pela dificuldade de citação a tempo de todos os réus para audiência de conciliação, seja pela necessidade de realização de provas técnicas de maior complexidade.
O sistema do CPC permite a fungibilidade de ritos, podendo o autor empregar o procedimento ordinário para cumular pedidos que isoladamente seriam processados por ritos diferentes (art. 292, §2º), bem como autoriza ao Juiz proceder a conversão do rito (art. 277, §4º e 5º), o que demonstra que a norma que dispõe sobre as hipóteses de cabimento do rito sumário não tem caráter absoluto[5].
O imperativo da razoável duração do processo deve ser observado por todos os atores da relação processual, não se dirigindo apenas ao Estado-Juiz. Caso o autor verifique que a adoção do procedimento sumário poderá implicar em um prolongamento demasiado da solução da lide, restando desatendida finalidade de tal rito processual, que é justamente o de dar maior celeridade à prestação jurisdicional, nada impede que na petição inicial proponha a adoção do rito ordinário, justificando tal opção.
Não é razoável exigir-se que o autor, já vislumbrando a possibilidade de conversão do rito para o ordinário ante à inviabilidade de adoção do procedimento sumário em função de determinadas circunstâncias peculiares ao caso concreto, tenha que ajuizar a ação por este rito e aguardar a realização da audiência de conciliação, para que somente após a constatação pelo Juiz da inviabilidade de prosseguimento do feito pelo rito sumário, seja determinada a conversão com fundamento no art. 277, §4º do CPC.
Isto porque a opção pelo procedimento ordinário não gera prejuízo ao réu e inclusive amplia a possibilidade de defesa, sendo de inteira aplicação neste caso o princípio da instrumentalidade das formas (CPC, artigos 249, §1º e 250, parágrafo único).
“O processo não é um fim em si mesmo, mas uma técnica desenvolvida para a tutela do direito material. O processo é a realidade formal – conjunto de formas preestabelecidas. Sucede que a forma só deve prevalecer se o fim para o qual ela foi desenvolvida não lograr ser atingido. A separação entre direito e processo – desejo dos autonomistas – não pode implicar um processo neutro em relação ao direito material que está sob tutela. A visão instrumentalista do processo estabelece a ponte entre o direito processual e o direito material”.[6]
Já o contrário, ou seja, a adoção do rito sumário quando não há previsão legal para tanto, não é possível.
Além da falta de previsão legal, a adoção do rito sumário quando cabível o ordinário certamente implica em prejuízo para a defesa, em razão da cognição limitada, das restrições à instrução probatória e da redução das possíveis respostas do réu em tal procedimento simplificado, deixando de atingir o fim que norteia a adoção do rito ordinário, que é justamente o de possibilitar uma cognição ampla e exauriente. Por essas razões, não se tratando de hipótese em que é cabível o procedimento sumário, seja pelo valor da causa ou pela matéria, não é possível a adoção de tal rito, devendo ser observado o procedimento ordinário.
Vejam-se a respeito os seguintes julgados:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE TRÂNSITO. ADOÇÃO DO RITO ORDINÁRIO AO INVÉS DO SUMÁRIO. POSSIBILIDADE.
1. É pacífica a orientação do STJ, no sentido de que "inexiste prejuízo ao réu e consequentemente nulidade processual, nos casos de adoção do rito ordinário em lugar do sumário, dada a maior amplitude de defesa conferida por aquele procedimento" (REsp 1.026.821/TO, Quarta Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 28/8/2012).
2. In casu, ao contrário do que assevera a agravante, não ocorreu conversão de ritos, pois desde a exordial houve a opção, pelos autores, do rito ordinário, embora a Lei lhes facultasse a adoção do rito sumário.
3. Adotado o rito ordinário, não há que se cogitar de violação aos arts. 275, II, "d", e 276 do CPC, que se aplicam apenas ao rito sumário.
4. Agravo regimental não provido. (AGARESP 201101541165, RAUL ARAÚJO, STJ - QUARTA TURMA, DJE DATA:17/12/2012 ..DTPB:.)
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONVERSÃO DE RITO SUMÁRIO PARA ORDINÁRIO. POSSIBILIDADE.
1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla e fundamentada, deve ser afastada a alegada violação ao art. 535 do Código de Processo Civil.
2. Não havendo prejuízo para a defesa, é possível a conversão do rito sumário para o ordinário.
3. O julgamento em desacordo com as pretensões da parte não consubstancia negativa de prestação jurisdicional ou afronta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AGARESP 201202438358, MARIA ISABEL GALLOTTI, STJ - QUARTA TURMA, DJE DATA:24/06/2013 ..DTPB:.)
PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DEINDENIZAÇÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - CONVERSÃO DO PROCEDIMENTO SUMÁRIO EMORDINÁRIO - POSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA DOS §§ 4º E 5º, DO ART. 277 DO CPC - Se o processo reclama possível instrução complexa, é possível transformar o rito sumário em ordinário, para mais ampla defesa das partes, a teor dos §§ 4º e 5º, do art. 277 do CPC. (TJMG100240970664350011 MG 1.0024.09.706643-5/001(1), Relator: MOTA E SILVA, Data de Julgamento: 23/02/2010, Data de Publicação: 12/03/2010)
A QUESTÃO NO PROJETO DO NOVO CPC
O projeto do novo CPC estabelece um procedimento comum, aplicável a todas as causas, salvo disposição em contrário, bem como aos procedimentos especiais e ao processo de execução naquilo em que não houver regulamentação diversa (art. 319), simplificando o rito processual.
Assim, o procedimento comum previsto no projeto assemelha-se ao atual procedimento sumário, com previsão de uma audiência de conciliação prévia (art. 335) antes do oferecimento da contestação, em que é obrigatório o comparecimento das partes. Possibilita maior celeridade, pois oportuniza as partes a composição logo no início da relação processual.
Desse modo, a questão relativa à possibilidade de adoção de rito processual no processo de conhecimento diverso do legalmente previsto resta superada no projeto do novo CPC (caso aprovado na forma em que se encontra), na medida em que prevê a adoção de um rito processual único, sem a atual distinção entre procedimento sumário e ordinário.
CONCLUSÃO
Apesar do entendimento doutrinário no sentido de que não é dado às partes ou ao Juiz a faculdade de substituir o rito sumário pelo ordinário nos casos em que a lei prevê expressamente a aplicação do rito sumário, em razão da norma que estabelece o rito procedimental tutelar o interesse público, à luz dos princípios do contraditório e da ampla defesa, da razoável duração do processo e da instrumentalidade das formas, é possível que o autor, vislumbrando a inviabilidade de adoção do procedimento sumário nas hipóteses legalmente previstas, justificadamente proponha ação pelo rito ordinário, evitando assim uma dilação processual que não se coaduna com o escopo do procedimento sumário, uma vez que a opção pelo procedimento ordinário não gera prejuízo ao réu, ampliando as possibilidades de sua defesa.
Porém o contrário não é possível. A adoção do rito sumário quando não há previsão legal nesse sentido, além da falta de previsão legal, implica em prejuízo para a defesa, em razão da cognição limitada, das restrições à instrução probatória e da redução das possíveis respostas do réu em tal procedimento simplificado.
BIBLIOGRAFIA:
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1. 9ª ed. revista, ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2008.
DINAMARCO, Cândido Rangel . Instituições de direito processual civil. 6ª ed. Revista e atuallizada. São Paulo: Malheiros, 2009. v. III.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 22ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 8ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2006. v.1.
Notas:[1] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2006. v.1, p. 149.
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel . Instituições de direito processual civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2009. v. III, pág. 337.
[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 22ª ed. revista e atualizada Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1, pág. 342.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel . Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2009. v. III, pág.345.
[5] Neste sentido, WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2006. v.1, p. 152.
[6] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1. 9ª ed. revista, ampliada e atualizada. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p. 57.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Alexandre Lopes. Modificação do procedimento no processo de conhecimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37272/modificacao-do-procedimento-no-processo-de-conhecimento. Acesso em: 23 dez 2024.
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