RESUMO: Este trabalho aborda, sinteticamente, o procedimento da Consulta Pública previsto no Regimento Interno da Agência Nacional de Telecomunicações e na Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472), analisando-o como um exemplo pragmático de exercício de participação do cidadão comum na elaboração das normas e, consequentemente, como meio de legitimação da norma editada, à luz da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas. O presente estudo, sem a pretensão de esgotar o assunto, discorre sobre a Consulta Pública, fazendo um paralelo, principalmente, com a teoria de Habermas, para quem a deliberação, a troca de informações, o diálogo entre os cidadãos é crucial para conferir legitimidade ao Direito e afigura-se como um exercício genuíno da democracia. Desta feita, a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, que confere a legitimidade do Direito moderno na compreensão discursiva da Democracia, é brevemente abordada. Por fim, é ressaltado um dos paradigmas constitucionais estudados, o Estado Democrático de Direito, em que o poder político, para ser legítimo, tem que derivar justamente do diálogo, do consenso, da comunicação entre os seus cidadãos.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Procedimento da Consulta Pública no âmbito da Anatel. Mecanismo de efetivação da democracia. O debate como pressuposto de legitimidade do Direito na visão de Habermas. 3. Conclusão.
PALAVRAS-CHAVE
Anatel. Consulta Pública. Participação. Discussão. Democracia. Legitimidade do Direito. Teoria Discursiva Do Direito e da Democracia de Habermas. Estado Democrático de Direito.
1 Introdução
Como é sabido, uma das funções das agências reguladoras é editar as normas de legislação específica. Assim, cabe ao ente da Administração observar todo o procedimento e exigências formais inerentes à Consulta Pública de modo a garantir a participação popular na elaboração da norma específica a ser elaborada pela Agência, conferindo-lhe legitimidade e legalidade.
Todo regulamento da Agência, antes de ser publicado e de passar a entrar em vigor, é submetido às consultas interna e pública. Na consulta interna, abre-se vista para que o corpo técnico da agência possa emitir sua opinião e dar suas sugestões acerca do regulamento, criando-se um verdadeiro diálogo interno. Após a consulta interna, é formalizada a consulta pública, momento em que é dada a oportunidade para toda a sociedade participar do processo de elaboração da norma de direito de telecomunicação que irá ser editada pela Agência reguladora.
Para ocorrer a consulta pública, a minuta do regulamento é publicada no Diário Oficial da União com prazo para os interessados apresentarem suas sugestões e críticas sobre o regulamento. A análise da procuradoria acerca da elaboração do regulamento é feita antes e após a consulta pública.
Instaura-se, assim, um processo administrativo, para analisar as contribuições da sociedade. Cumpre esclarecer que se trata de uma participação direta, em que o cidadão ou empresa interessada tem a oportunidade de manifestar sua concordância ou não com o regulamento, podendo impugnar artigos específicos da minuta, sugerir texto, redação, etc. Confere-se, desta feita, com a participação da sociedade, legitimidade à norma que será edita e que irá regular as relações de telecomunicações.
Em breve análise, pode-se dizer que o procedimento da consulta pública e todo o processo de discussão acerca da nova norma a ser elaborada pela Anatel, revela-se como um exemplo prático da ideia de democracia e de participação social na elaboração do Direito. Isto porque, a consulta pública é uma forma de se buscar um consenso da sociedade acerca da norma que está prestes a ser editada e por se revelar um processo democrático, a consulta pública acaba por conferir legitimidade à norma.
A intenção deste trabalho é discorrer brevemente acerca da Consulta Pública, relacionando-a com o tema da democracia representativa e com as teorias de Habermas acerca da legitimidade do Direito, por meio da participação direta do cidadão na elaboração das leis.
2 Procedimento da Consulta Pública no âmbito da Anatel. Mecanismo de efetivação da democracia. O debate como pressuposto de legitimidade do Direito na visão de Habermas.
Inicialmente, cumpre esclarecer que a Constituição Federal (artigo 21, XI, CF) e a Lei Geral de Telecomunicações-LGT atribuíram à Anatel a qualidade de órgão regulador das telecomunicações, conferindo-lhe competência para adotar as medidas necessárias para implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de telecomunicações (artigo 19, I, LGT). Nessa esteira, verifica-se que a aprovação de normas e regulamentos (assim como suas respectivas alterações) pela Anatel constitui exercício de sua função normativa, a qual decorre de sua natureza de órgão regulador.
Quanto à necessidade de submeter a elaboração e/ou alteração de minuta de ato normativo a procedimento de Consulta Pública, de bom alvitre transcrever os pertinentes dispositivos da LGT e do Regimento Interno da Anatel (aprovado por meio da Resolução nº 612, de 29 de abril de 2013,), in verbis:
Lei nº 9.472/97 (LGT):
Art. 42. As minutas de atos normativos serão submetidas à consulta pública, formalizada por publicação no Diário Oficial da União, devendo as críticas e sugestões merecer exame e permanecer à disposição do público na Biblioteca.
Regimento Interno da Anatel:
Art. 59. A Consulta Pública tem por finalidade submeter minuta de ato normativo, documento ou matéria de interesse relevante, a críticas e sugestões do público em geral.
§ 1º A Consulta Pública pode ser realizada pelo Conselho Diretor ou pelos Superintendentes, nas matérias de suas competências.
§ 2º A Consulta Pública será formalizada por publicação no Diário Oficial da União, com prazo não inferior a 10 (dez) dias, devendo as críticas e as sugestões serem apresentadas conforme dispuser o respectivo instrumento deliberativo.
§ 3º A divulgação da Consulta Pública será feita também na página da Agência na Internet, na mesma data de sua publicação no Diário Oficial da União, acompanhada, dentre outros elementos pertinentes, dos seguintes documentos relativos à matéria nela tratada:
I - informes e demais manifestações das áreas técnicas da Agência;
II - manifestações da Procuradoria, quando houver;
III - análises e votos dos Conselheiros;
IV - gravação ou transcrição dos debates ocorridos nas Sessões ou Reuniões em que a matéria foi apreciada;
V - texto resumido que explique de forma clara e suficiente o objeto da consulta.
§ 4º As críticas e as sugestões encaminhadas e devidamente justificadas deverão ser consolidadas em documento próprio a ser enviado à autoridade competente, anexado aos autos do processo administrativo da Consulta Pública, contendo as razões para sua adoção ou rejeição, e permanecerá à disposição do público na Biblioteca e na página da Agência na Internet.
§ 5º Os pedidos de prorrogação de prazo de Consulta Pública serão decididos pelo Superintendente nas matérias de sua competência e, aqueles relativos a matérias sob a competência do Conselho Diretor, distribuídos ao Conselheiro Relator do processo submetido à Consulta Pública, exceto quando a ausência deste prejudicar a análise tempestiva do pedido, caso em que deverá ser realizado sorteio da matéria, nos termos do art. 9º deste Regimento.
§ 6º Na fixação dos prazos para a apresentação de críticas e sugestões às Consultas Públicas, a Agência deverá considerar, entre outros, a complexidade, a relevância e o interesse público da matéria em análise.
Como se observa, pode-se afirmar que o procedimento da consulta pública é sem dúvida um instrumento de efetivação da democracia e consequentemente do Estado Democrático de Direito.
Nessa esteira, para ilustração do feito, cito um trecho do texto de Ricardo Castilho, que traz a visão do filósofo alemão Habermas acerca da democracia, que para ele, em resumo, é a possibilidade de o cidadão poder ser autor e destinatário da norma de direito. Vejamos:
Habermas considera que, numa democracia, o cidadão deve ser, ao mesmo tempo, destinatário e autor das normas jurídicas. Por isso, define uma relação de autonomia recíproca entre soberania do povo (pública) e direitos humanos (privados). Soberania popular porque todos os destinatários da norma jurídica devem concordar com ela. E direitos humanos porque a norma jurídica deve abranger a ação orientada pelo interesse privado. [1]
Para o filósofo alemão, a democracia é garantida pela linguagem, pelo consenso, fruto da intersubjetividade. O que a consulta pública representa é justamente essa ideia de busca de consenso, de debate entre as partes interessadas, pretendendo-se, por meio dela, que a norma seja fruto da discussão pública, o que lhe conferirá, ao final, a legitimidade para ser uma norma válida.
Ora, como visto, o procedimento da Consulta Pública previsto no Regimento Interno da Anatel proporciona ao cidadão participar ativamente do processo de elaboração de suas normas. É dizer, o próprio destinatário da norma será também autor dela.
Ademais, o procedimento citado possibilita o amplo debate em busca de consenso entre os cidadãos, o que efetivamente representa para Habermas a garantia da democracia.
Nessa toada, cumpre esclarecer acerca da ideia de intersubjetividade de Habermas, que se baseia na racionalidade e nos remete à relação entre os sujeitos, diferentemente da ideia de relação subjetiva entre sujeito e objeto. A intersubjetividade, para o filósofo alemão, seria a base da sociedade racional e é dentro deste contexto apresentado, que Habermas nos apresenta a noção de legitimidade social.
Habermas afirma que a racionalidade da sociedade moderna está ligada às decisões coletivas e nesse contexto ele destaca a importância da ação comunicativa, que para ele seria um novo fundamento da razão. Ao pensar a racionalidade, Habermas diz que a razão não é apenas instrumental, ela também pode ser intersubjetiva, comunicativa.
A ação comunicativa, em outras palavras, seria justamente, o debate, a discussão, a comunicação entre os cidadãos que culminam nas decisões coletivas. A ideia da Consulta Pública é justamente submeter a debate minuta de norma a ser editada pela Agência. É esse debate e discussão entre os cidadãos- ação comunicativa na visão de Habermas – que conferirá a legitimidade ao regulamento.
Pois bem, nesse contexto insta ressaltar que Jünger Habermas se destaca por pensar os problemas sociais e humanos a partir da vertente da comunicação. Para o filósofo, a deliberação, a troca de informações, o diálogo entre os cidadãos é crucial para conferir legitimidade ao direito e afigura-se como um exercício genuíno da democracia. Trata-se, sinteticamente, da ideia central da Teoria do Agir Comunicativo, elaborada por ele.
Com efeito, seguem colacionadas as lições do Professor Eduardo C. B. Bittar, acerca da Teoria do Agir Comunicativo de Habermas:
Afinal, como se pode avaliar o Direito a partir da concepção apresentada por Jüger Habermas? Partindo da razão comunicativa, é possível pensar que o Direito legítimo se funda sobre as experiências ordinárias colhidas no mundo da vida, de onde se extraem condições para a participação na arena da esfera pública, através da qual os circuitos de comunicação habilitam os atores sociais à produção de decisões social e juridicamente relevantes.
Assim, pode-se com Habermas, pensar no Direito como sendo um instrumento necessário da experiência social, mas, sobretudo imprescindível para a vivência governada pela razão, enquanto razão comunicativa, em lugar da irracionalidade e do atomismo sociais. É assim que o Direito se anela à ideia de ser uma prática social de deliberação, compartilhamento e estabelecimento de referencias do agir comum;[2]
Outrossim, para Habermas, o cidadão deve dentro do Estado Democrático de Direito ser o autor das normas que o regem, de modo que assim seja conferida legitimidade ao Direito. Isso porque, é inerente ao Estado Democrático de Direito, a participação no debate público, que conforma a soberania democrática.
Em outras palavras, garantir ao cidadão a participação efetiva na elaboração das normas, como acontece, no âmbito da Anatel, no procedimento de consulta pública, significa, na visão de Habermas, conferir ao Direito o caráter de legítimo meio de integração social.
Com efeito, imperioso concluir que o procedimento de consulta pública ora analisado revela-se como um exemplo da aplicação prática da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas no âmbito da agência reguladora. Isso porque, como visto, a referida teoria sustenta que a legitimidade do Direito moderno baseia-se fundamentalmente na compreensão discursiva da Democracia, é dizer, na participação efetiva dos cidadãos na discussão e elaboração das normas que a eles serão dirigidas.
Ademais, o mesmo texto ainda traz a ideia de que no Estado Democrático de Direito, a legitimidade do sistema político deriva do poder comunicativo. Senão vejamos:
No Estado Democrático de Direito, o poder político, para ser legítimo, deve derivar do poder comunicativo gerado a partir da esfera pública política. O Estado, embora ocupe o centro dessa esfera pública, com os complexos parlamentares, não mais se confunde com a ela, em seu todo (como se concebia nos paradigmas liberal e social, especialmente nesse último). A sociedade civil, seus movimentos sociais, organizações e associações de toda ordem, os meios de comunicação de massa, partidos políticos etc. compõem um complexo mais ou menos institucionalizado de formação, reprodução e canalização da opinião pública e da vontade política que, filtrados por sua pertinência, constituem o input dos órgãos políticos estatais.
3 CONCLUSÃO
Em vista do exposto neste presente trabalho, é forçoso concluir que o procedimento de Consulta Pública previsto na LGT e no Regimento Interno da Anatel é uma forma de garantir a discussão e a participação da sociedade na elaboração de suas normas.
Isso porque, o procedimento de Consulta Pública aplicado no âmbito da Agência permite que qualquer cidadão, ante a publicação da minuta de uma norma, por exemplo, possa efetivamente participar de sua elaboração, encaminhando críticas, sugestões e comentários, que poderão ser acatadas ou não pela Administração, observados todo o processo que rege a elaboração de um regulamento.
A efetivação da participação social na elaboração da norma confere a ela legitimidade, uma vez que, de acordo com a teoria habermasiana, a deliberação, a troca de informações e o diálogo entre os cidadãos é crucial para conferir legitimidade ao direito e afigura-se como um exercício genuíno da democracia. Portanto, a norma editada em atenção a esse procedimento representa um autêntico fruto do debate e da racionalidade da linguagem, por meio de trocas de ideias entre os interessados, o que confere, em última instância, legitimidade à norma criada, uma vez que os cidadãos a quem ela se dirige são também os seus autores.
Ademais, como visto, é do poder comunicativo que deriva a legitimidade no Estado Democrático de Direito, consubstanciada na participação popular.
Em arremate, pode-se concluir que o procedimento para elaboração de normas e regulamentos adotados pela Anatel, por meio da consulta pública, está em conformidade com os preceitos e princípios constantes no Estado Democrático de Direito, que preza pelo direito participativo, pluralista e aberto.
REFERÊNCIAS
BITTAR, Eduardo C.B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2011. p. 513.
CASTILHO, Ricardo. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012.p.266.
NETTO, Menelick de Carvalho. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. Conferência feita no Seminário Permanente do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. P. 244.
[1] CASTILHO, Ricardo. FILOSOFIA DO DIREITO. São Paulo: Saraiva, 2012.p.266
[2] BITTAR, Eduardo C.B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO. São Paulo: Atlas, 2011. p. 513.
Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal Especializada da Anatel. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Júlia de Carvalho. A participação direta do cidadão no poder regulamentar da Anatel por meio da consulta pública. Exercício da democracia e legitimidade do direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37295/a-participacao-direta-do-cidadao-no-poder-regulamentar-da-anatel-por-meio-da-consulta-publica-exercicio-da-democracia-e-legitimidade-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
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