RESUMO: O uso e a dependência de drogas lícitas e ilícitas têm sido um assunto frequente em debates políticos, que visam encontrar o melhor caminho de enfretamento desta questão e das possíveis conseqüências provocadas por ela. No ano de 2006, entrou em vigor no Brasil uma nova legislação que, dentre outras medidas, prescreve ações de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e de dependentes de drogas lícitas e ilícitas. Tendo como base o princípio de que as políticas e as legislações brasileiras deveriam estar livres de elementos preconceituosos e de terminologias estereotipadas, o presente estudo, baseado em métodos utilizados em pesquisas qualitativas, faz uma análise do discurso presente na nova Lei de Drogas (n° 11.343/06) no sentido de também se constatar se seus artigos estão em consonância com as orientações pressupostas pela Política Nacional sobre Drogas de 2005. Como resultado, foram encontrados tanto avanços plausíveis para uma política mais equilibrada, quanto elementos que ainda caracterizam uma ideologia marcada pela estigmatização de consumidores de substâncias psicoativas ilegais. Outro importante resultado desta análise se refere ao fato de que a Lei ainda não dispõe de critérios específicos para os diferentes tipos de padrão de consumo, e, portanto, ainda não distingue com clareza usuários e dependentes de drogas. Este fato, além de poder prejudicar ações pragmáticas voltadas para o controle do uso de drogas, pode continuar alimentando preconceitos já existentes com relação a esse mesmo fenômeno.
Palavras-chave: preconceito, estigmatização, usuários e dependentes.
INTRODUÇÃO
Durante os anos de 2006 e 2007, pude desenvolver trabalhos relacionados ao consumo de drogas na Coordenação Geral de Prevenção, da Secretaria Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SENAD. Nesse período, tive acesso a diversos estudos e estatísticas relativos ao uso de drogas, tanto a nível nacional, como internacional. Compreendi que os problemas relacionados ao consumo abusivo de substâncias lícitas e ilícitas exigem uma atenção especial e interdisciplinar, o que me levou a considerar que os estudos em matéria de Direito voltados para essa temática são tão importantes quanto os realizados em outros domínios igualmente competentes.
O termo “droga” é derivado da palavra holandesa droog, cujo significado é seco, e se referia a especiarias asiáticas no século XVI (CARNEIRO, 2006). Segundo definição da Organização Mundial de Saúde, “droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento” (NICASTRI et al, 2006, p. 48).
As drogas capazes de alterar o funcionamento cerebral, causando modificações no estado mental, são chamadas de drogas psicotrópicas e conhecidas também como substâncias psicoativas. Nesse sentido, a Convenção de Viena sobre drogas psicotrópicas, realizada em 1971, já anotava:
Basta que uma droga tenha capacidade de produzir: (a) um estado de dependência; (b) estímulo ou depressão do sistema nervoso central, que cause alucinações, distúrbios de função motora, do raciocínio do comportamento, da percepção ou do estado de ânimo ou abusos e efeitos semelhantes a uma substância constante da tabela I a IV. (art. 2°, parágrafo 4°).
Nas referidas tabelas podem ser encontrados os nomes dos vários componentes químicos que também constituem a lista de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial no Brasil, regulamentados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), por meio da Portaria n° 344, de 12 de maio de 1998.
Do ponto de vista legal, as drogas são classificadas como lícitas ou ilícitas, ou seja, as que podem ser livremente obtidas ou as que somente podem ser obtidas mediante a prescrição médica, e as que são proibidas por lei.
Atualmente, na acepção da Lei Brasileira de Drogas N° 11.343/06, não mais se usa o termo substância entorpecente, tido como uma locução inadequada, e se define drogas como “substâncias ou produtos capazes de causar dependência, e que estejam especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas, de forma periódica, pelo Poder Executivo da União” (parágrafo único, art. 1ª).
Considerando que a própria existência de controvérsias do ponto de vista conceitual da terminologia “droga” já constitui alvo de inúmeros debates, é previsível que a complexidade inerente à temática e aos estudos da dinâmica de seu consumo na sociedade seja ainda maior.
Em 2005, foi realizado no Brasil um estudo com base em levantamentos que envolveram as 108 maiores cidades, onde foram obtidos dados nacionais acerca do consumo de drogas. “O objetivo principal deste estudo foi estimar a prevalência do uso de drogas psicotrópicas, lícitas e ilícitas, além de esteróides anabolizantes” (GALDURÓZ, 2007. p. 13).
Um primeiro Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas já havia sido feito em 2001, e foi utilizado como importante fonte de comparação com o II Levantamento de 2005. Os resultados destas comparações propiciaram discussões sobre realidade brasileira em relação ao consumo drogas, que apontaram para um crescimento generalizado de usuários e de dependentes.
Ainda durante o ano de 2005, foi realizado o trabalho de realinhamento das Políticas Nacionais sobre Drogas no Brasil e, no ano seguinte, a Lei de Drogas (n° 11.343/06), foi então sancionada.
A perspectiva de constantes debates e de formação de diferentes opiniões a respeito da temática de drogas pode ser considerada um indicador de que os discursos utilizados nas diversas formas de retratar o fenômeno é carregado de ideologias historicamente construídas.
Diante dessas considerações objetiva-se discutir as terminologias que podem levar a diferentes interpretações na Lei de Drogas 11.343/06 sobre usuários e dependentes. Levantar discussões sobre os aspectos ideológicos envolvidos na questão das drogas e os discursos utilizados nas primeiras leis antidrogas adotadas no país, já foram objetos de estudos que, de acordo com o a análise da Lei n° 6.368/76 de Souza, Fontenelle e Ramos (2006), levaram a concluir que as antigas medidas de controle do uso de drogas eram ineficazes, por difundir o medo que antecipa a inviabilização de debates menos superficiais, sendo que esses debates, segundo os autores, deveriam articular um modelo preservador dos direitos humanos.
Nesse mesmo sentido, objetiva-se levantar discussões a respeito do atual posicionamento político adotado pelo governo brasileiro diante das questões relacionadas ao uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas, incluindo a pesquisa de eventuais violações ao princípio da dignidade humana inserto na Constituição Federal Brasileira.
1. Metodologias de Análise
A autora Mary J. Spink (2000) lembra que as idéias com as quais convivemos, as categorias que usamos para expressá-las e os conceitos que buscamos formalizar são provenientes de domínios diversos, de grupos mais próximos e da mídia em geral. Portanto, “é comum pensar que dar sentido é uma atividade que diz respeito apenas ao cotidiano interpretado como os afazeres assistemáticos do senso comum” (p. 63), sendo que práticas científicas, por serem consideradas uma maneira de agir orientada por determinados princípios, regras e metodologias previamente definidas, acabam por dividir o conhecimento e seus significados em duas esferas isoladas: o senso comum e a ciência.
Entretanto, a autora ressalta que a discussão epistemológica contemporânea vem contribuindo para desfazer essa dicotomização rígida: “tanto a ciência, como desempenhar as atividades rotineiras (ou não) de nosso cotidiano passam a ser ressignificados como formas de produzir sentidos sobre os eventos no mundo” (Spink, 2000, p. 64). Pesquisa científica, portanto, é concebida segundo a autora, como uma prática reflexiva, crítica e também social.
Minayo (2007) salienta que a produção de conhecimento é perpassada pela problematização de conceitos usualmente empregados e por uma teorização sobre a prática de pesquisa, entendendo-se que nem a teoria nem a prática são isentas de interesses, de preconceitos e de incursões subjetivas. Ora, se nem a ciência positivista com seus métodos característicos é tida como neutra, ou seja, que não se isenta de estar relacionada com os interesses subjetivos daqueles que a manipulam, quem dirá que outras formas de produzir sentidos menos conservadoras e mais flexíveis vão estar livres desta mesma influência. Portanto, assim como observa Minayo (2007), “qualquer investigador deve pôr em questão os pressupostos inerentes à sua qualidade de observador externo que importa para o objeto, os princípios de sua relação com a realidade, incluindo-se aí suas próprias relevâncias” (p. 22).
Sendo o objeto de estudo um documento de domínio público, produzido por legisladores ditos capacitados para projetar normas sociais justas e coerentes, foi necessário analisá-lo por meio de uma pesquisa qualitativa, cuja metodologia é capaz de “incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo que essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas” (MINAYO, 2007, p. 22).
Para tanto, foi utilizada a metodologia de Análise do Discurso, que é concebida para trabalhar com a fala e seu contexto, ou seja, com os significantes e significados no corpo do texto, e, no caso da presente pesquisa com a nova Lei de Drogas, como uma proposta de investigar a linguagem do discurso político inerente a ela. Como salienta Pêcheux,
o objetivo básico da análise de discurso é realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção e apreensão da significação de textos produzidos nos mesmos campos: das relações primárias, religioso, filosófico, jurídico e sócio-político, visando compreender o modo de funcionamento, os princípios de organização e as formas de produção de seus sentidos (PÊCHEUX apud MINAYO, 2007, p. 319).
A fonte de informações da presente pesquisa é a Lei n° 11.343, de outubro do ano de 2006. As linhas pesquisadas englobam os conteúdos do art. 1°, título I ao art. 28, título III. Como procedimento, os artigos pesquisados da Lei (do art. 1° ao 28) foram lidos diversas vezes, e sublinhada a palavra usuário e dependente toda vez que encontrada no corpo do texto.
Posteriormente, foi utilizado o Mapa de Associação de Ideias proposto por Spink (2000), com o objetivo de sistematizar o processo de análise, em busca de processos formais da construção lingüística, dos repertórios utilizados nessa construção e na dialogia implícita na produção de sentido. Os mapas “constituem instrumentos de visualização que têm duplo objetivo: dar subsídios ao processo de interpretação e facilitar a comunicação dos passos subjacentes ao processo interpretativo” (SPINK, 2000, p. 107).
Nesse sentido, foi utilizado como categorias formadoras do mapa: a) a visão da droga; b) os objetivos da nova Lei; c) a concepção de saúde; d) descrição do usuário e dependente e; e) sua relação com a justiça
a) A visão da droga para esta lei n° 11.343, é proveniente da descrição do parágrafo único do art. 1°;
b) Os objetivos da nova Lei foram analisados por meio dos objetivos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que compõe o art. 5 ° da lei 11.343.
c) As concepções sobre saúde foram buscadas em palavras como “qualidade de vida” e “relação com a comunidade”;
d) As descrições da palavra usuário e da palavra dependente foram investigadas a partir dos sentidos de outras palavras que as acompanhavam no decorrer do texto;
e) A relação com a justiça focou-se no artigo em que são descritas as penalidades para quem portar, para consumo pessoal, drogas ilegais – art. 28;
2. Discussões sobre a Lei de Drogas
A partir das ideias apresentadas por Minayo (2007) com relação aos pressupostos básicos da Teoria da Análise do Discurso, e que, para a presente pesquisa, foi o instrumento metodológico orientado pelas descrições de Spink (2000), e, com as informações obtidas através das interpretações resultantes dos processos metodológicos de pesquisa qualitativa, algumas problematizações nos modos de fazer referência aos usuários de drogas na Lei 11.343/06 puderam ser contatadas. Não obstante, é imprescindível também destacar os fatores indicativos de que as algumas modificações trazidas com vigência da Lei 11.343/06 é exemplar para uma mudança de paradigmas com relação aos tratamentos jurídico e social voltados à população em geral, que muitas vezes se encontra em situação de risco. Tanto a implementação de uma Política Pública sobre Drogas, como a preocupação com a questão da saúde da coletividade nesse contexto, de certa forma, são inéditos nas legislações brasileiras.
2.1. Conceito de Drogas
A Lei 11.343/06 passa a adotar uma terminologia diversa da usada nas Leis 6.368/76 e 10.409/02, substituindo “substância entorpecente” por “droga”. Em relação ao conceito proposto no parágrafo único do primeiro artigo, drogas são “as substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. O art. 2° é um dos que delimitam as que são lícitas e as que são ilícitas:
Ficam proibidas, em todo território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre substâncias psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso (art.2°).
Sabendo disto, o termo droga, diferentemente de entorpecente, não traz em si o caráter de ilicitude, mas como substância que, assim como o álcool, o cigarro e diversos medicamentos psicotrópicos vendidos em farmácias, podem levar à dependência. É importante também salientar esses significados porque, em diversas ocasiões, são atribuídos conceitos diferentes para o álcool e para as outras substâncias psicotrópicas lícitas e ilícitas, como se não pertencessem a uma mesma categoria: o das drogas.
Já o termo droga psicotrópica, estabelecido pela Convenção de Viena referida no texto do art. 2°, e já comentado anteriormente, aponta tanto para a capacidade de uma determinada substância (droga) ocasionar um estado de dependência, como também pelas alterações perceptivas, sensoriais e motoras que elas podem provocar.
Os textos compreendidos entre o art. 1° e o art. 28, que constituem o objeto do presente estudo, direcionam-se tanto para os usuários como para os dependentes de drogas e, diferenciam os tipos de drogas tão-somente quanto às que têm autorização regulamentar para seu consumo (lícitas), e as que não têm a referida autorização (ilícitas), sendo, portanto, atribuído o ato de ilegalidade a sua posse para consumo próprio.
Com base nestas informações relevantes à definição de droga e nos textos pesquisados na Lei 11.343/06, que definem como drogas as substâncias capazes de causar dependência, o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas no Brasil (2005) nos leva a concluir que, entre os participantes da pesquisa, em torno 74.6 % já fez uso de droga por já ter consumido álcool pelo menos uma vez na vida, enquanto que a prevalência de dependentes ficou em 12.3%. Por ser uma pesquisa realizada em 108 cidades espalhadas pelo Brasil, esse dado pode levantar uma ideia da proporção de pessoas que poderiam ser enquadradas como usuárias de droga. O II Levantamento também mostra que, dentre os participantes, 22.8% já fizeram o uso de qualquer outra droga psicotrópica exceto álcool e cigarro. Desta forma pode-se concluir que uma grande parcela da população brasileira está envolvida diretamente com o contexto de uso, seja de drogas lícitas seja de ilícitas, e, portanto, relacionada aos artigos direcionados aos usuários e dependentes.
2.2. Objetivos Propostos com a Lei de Drogas
O objetivo primordial da implementação da Lei de Drogas é instituir um Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – o SISNAD, que “prescreve medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas” (art. 1°). Portanto, a lei ao instituir o SISNAD, define como medidas prioritárias a prevenção e a inclusão de usuários e dependentes na sociedade.
As atividades que apontam concepções de saúde na Lei são relacionadas com uma visão de melhoria geral na qualidade de vida da população, caracterizando uma política de prevenção do uso indevido de drogas, que, de fato, deveria ter certa prevalência sobre outros investimentos.
Não obstante, vale ressaltar outro importante ponto: a Lei de Drogas, pela primeira vez na legislação brasileira, volta-se para a questão da saúde tanto de usuários de drogas lícitas como de drogas ilícitas, objetivando sua reinserção social e de seus familiares, por meio de projetos de terapia individualizada e incentivos a instituições de atenção da sociedade civil voltados a essa área. Tais inovações poderiam ser caracterizadas como atividades de redução de danos, que muito já produziram efeitos positivos em outras nações. Ou seja, pode-se afirmar que, com a aprovação Lei 11.343, houve uma conscientização por parte dos legisladores em tratar o uso e a dependência de drogas ilícitas como caso de saúde pública, diferentemente da política que anteriormente vigorava, em que os mesmos eram tratados como criminosos.
Até então, a Lei revela, em geral, vários aspectos positivos na pretensão de se alcançar uma legislação equilibrada e que atenda melhor os problemas provenientes do contexto das drogas.
Entretanto, o art. 19 já determina que o uso de droga seja um fator de interferência tanto na qualidade de vida, como na relação do usuário com o meio social em que vive, independente do padrão de consumo que o indivíduo usuário possa vir a ter, do tipo de droga de que se trata e em que contexto que ela é consumida.
2.3. Usuários e Dependentes
Os achados e as discussões referentes às descrições do usuário e dependentes de drogas no corpo do texto da Lei é um primeiro ponto onde podem ser encontradas algumas incoerências e elementos que problematizam as questões relativas às suas concepções, levando em conta que o ideal seja desmistificar ideologias inerentes ao tema e estabelecer critérios claros que definam e que tratem de maneira diferenciada estes diferentes fenômenos: o uso e a dependência.
No decorrer de todo o texto da Lei 11.343/06, os termos usuário e dependente foram apresentados unidos pelas conjunções coordenativas e e ou. Ou seja, todas as ações direcionadas para um, são também adotadas para o outro, seja com relação às políticas de implementação do SISNAD, seja nas penalidades (medidas alternativas) aplicadas quando há a ocorrência de porte de drogas ilícitas.
Um dos pressupostos básicos da Política Nacional sobre Drogas de 2005 é o reconhecimento das “diferenças entre usuário, a pessoa em uso indevido, o dependente e o traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada” (p. 10).
No texto da Lei de Drogas, apesar de haver uma “descriminalização formal” (GOMES, 2007, p. 147) por não ser aplicada mais a penalidade de detenção pela posse de drogas ilícitas para consumo pessoal, ainda não pode ser claramente identificada alguma diferenciação pertinente entre o usuário e o dependente de droga, menos ainda quanto ao tratamento direcionado a ambos.
É importante destacar este fato, porque, o II Levantamento (2005) revela que a porcentagem de dependência de drogas lícitas e de algumas ilícitas é bem menor do que o uso esporádico das mesmas. E, como a dependência de drogas caracteriza-se por condutas compulsórias pela droga, em detrimento de fatores essenciais ao bem-estar de si e dos que estão a sua volta, é patologia que precisa de tratamento especial. Já os usuários, devem ser considerados como pessoas imersas em diferentes contextos, como o mais frequente: um simples cidadão que optou, dentro do seu suposto livre arbítrio, por fazer uso momentâneo de uma substância psicotrópica, tida como lícita ou ilícita, sem trazer prejuízos a outras pessoas.
Outras características encontradas na escrita da Lei, que dizem respeito tanto aos usuários como aos dependentes, revelam mais alguns sentidos implicados em suas concepções: são sujeitos que necessitam ser recuperados por estarem excluídos da sociedade, carentes de atenção e tratamento, e até mesmo desempregados. Levando em conta a definição de droga incorporada na própria Lei e os números divulgados no II Levantamento (2005) já destacados, até poderia ser considerado que uma pessoa que esteja envolvida em uma dependência de uma droga qualquer se encontre, de fato, em situação aversiva de exclusão social. Entretanto, um simples usuário de drogas muito provavelmente não estará, caso contrário poderíamos admitir que em torno de 75% da população brasileira (conforme II Levantamento de 2005) se enquadrariam em uma situação de risco pelo fato de já ter consumido álcool ao menos uma vez na vida, sendo que o álcool é substância que pode vir a provocar uma dependência.
Um dos principais problemas com essas definições, seja nos sentidos propostos na Lei 11.343/06, seja em outros documentos de domínio público, mídia etc, no que diz respeito à falta de diferenciação do estado de dependência com o simples uso de droga, poderia ser colocado assim: enquanto não houver uma clara separação entre estas duas situações, a preocupação excessiva com a dependência em si pode fazer com que outros prováveis problemas inerentes ao uso e ao uso abusivo passem despercebidos. E, quanto a considerar um usuário de drogas excluído da sociedade, carente de atenção e desempregado, além de ser em grande parte irreal, pelos argumentos anteriormente detalhados, pode acabar prejudicando planejamentos educativos mais condizentes com a realidade.
2.4. Usuários e a Justiça
A partir do capítulo III da nova Lei de Drogas, são previstas as penalidades para quem portar substância ilícita para consumo próprio:
Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, portar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. (art. 28)
O usuário e o dependente de substâncias ilícitas são encaminhados para os juizados criminais, não sendo de modo algum imposta a pena de prisão, mas impostas as medidas alternativas previstas no art. 28 (GOMES, 2007). É, sem sombra de dúvida, uma medida muito mais coerente com uma perspectiva (ou pretensão) de recuperação de dependentes de drogas ilícitas do que a anteriormente imposta pelo art. 16 da Lei 6.368/76, que o penalizava com a privação de sua liberdade.
A partir dessas informações, vários nomes consagrados na área do Direito Penal (como, por. ex.: Luiz Flávio Gomes e Damásio de Jesus) discutem e sustentam a inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato relacionados ao porte de pequena quantidade de droga ilícita (CAPEZ, 2008). Como salienta Capez (2008), “houve quem tentasse construir o entendimento de que o porte de pequena quantidade de droga configuraria fato atípico, uma vez que não representaria nenhum perigo social” (p. 702). Lembrando que tal entendimento está intimamente relacionado ao Princípio da Insignificância, o qual prega a não admissão de tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar a um bem jurídico, e ao Princípio da Proporcionalidade, “que encontra assento na imperativa exigência de respeito à dignidade humana” (p.20) e baseia-se na ideia de que a “resposta punitiva estatal ao crime deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social” (p. 21).
A fala do Chefe-Adjunto da Unidade de Políticas da Holanda, durante o Seminário Internacional sobre Drogas realizado em Brasília em 2004, ilustra bem uma possível violação a esses princípios: “os riscos à saúde causados pela maconha são muito menores e substanciais do que os riscos sociais que estão ligados a ações criminais contra os usuários de maconha” (p. 28). Em outras palavras, Kort (2004) explica que “a instauração de um processo criminal contra um jovem usuário de maconha lhe causa muito mais danos do que a própria maconha que ele fuma”.
No que diz respeito ao Princípio da Alteridade, Capez (2008) afirma que a “Lei em estudo não tipifica a ação de usar a droga, mas apenas o porte, pois visa coibir o perigo social representado pela detenção (...)” (p. 701). Portanto, o bem jurídico tutelado pela norma do art. 28 é a saúde pública da coletividade. Esclarece ainda a circunstância de quem consume imediatamente a substância ilícita, sem portá-la por mais tempo, não configurando um perigo social, mas simplesmente o uso, e, por conseguinte, não constituindo a figura típica de detenção. Ora, não é preciso ser um usuário de droga ilícita para se saber que para usá-la é preciso portar ou estar portando, e que na maioria das vezes não se consome “imediatamente” um cigarro de maconha ou outra droga qualquer.
Arrisco ainda a levantar outro ponto de discussão, no sentido de que a Lei ainda pode ser interpretada da seguinte forma: ao usuário de drogas ilícitas são impostas medidas alternativas, partindo do pressuposto de que este não esteja ciente dos efeitos e dos riscos a que está submetido ao consumir tais substâncias. Para tanto, a autoridade judicial é a pessoa competente para informar sobre os efeitos das drogas, avaliar a situação de risco em que se encontra o usuário e impor as medidas educativas ou a prestação de serviços à comunidade mais adequadas para cada caso. Ou seja, além de possuir um inegável conhecimento da Lei, a autoridade deveria, em última análise, ter amplos conhecimentos sobre psicologia, sociologia e até mesmo antropologia para cumprir adequadamente o papel elencado a sua competência.
Destarte, o fato de não ser prevista a intervenção de profissionais de diferentes áreas para atuar em cada caso de aplicação das medidas do art. 28 pode levar a equívocos quanto ao julgamento por parte da autoridade judicial que, no uso de sua discricionariedade, interpreta de maneira subjetiva o contexto relacionado à infração de posse de substância ilícita para uso próprio, podendo levar a julgamentos de caráter moralista e não fundamentados em resultados cientificamente comprovados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do momento em que, no trabalho de pesquisa, durante as várias leituras do texto que compõe a Lei 11.343/06, foram encontradas as problematizações discutidas com relação aos usuários de drogas e aos dependentes, esses foram relacionados de forma interpretativa, sempre tendo como principal foco os contextos envolvidos no uso de drogas, e não na dependência. E, como já foi demonstrado anteriormente, não houve uma clara diferenciação entre ambos, sendo empregadas as mesmas medidas, tanto sociais quanto jurídicas para ambos.
A forma como o usuário e o dependente de drogas são representados na Lei de Drogas, por meio das análises interpretativas relatadas, apontam para sentidos estereotipados a este específico grupo social. Como a Lei é resultado de um trabalho que traz em seu bojo um suposto atendimento ao bem coletivo e, no caso brasileiro, isso se ampara nos documentos que positivam os chamados direitos humanos fundamentais, é necessário um trabalho minucioso ao projetá-la para que não haja interpretações que reforcem os preconceitos que muito já influenciam os processos sociais existentes, seja na forma de pensar, seja na forma de agir.
Foi proposto com essa pesquisa levantar os aspectos que poderiam ser considerados como elementos problematizadores, sem pretender questionar as várias propostas pertinentes a esse contexto que são devidamente encontradas no texto da Lei. Tanto os objetivos relacionados à implementação da Lei, quanto os aspectos sociais envolvidos no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas são louváveis em uma perspectiva de mudança de paradigmas que acompanham o dinamismo das relações sociais e dos sentidos produzidos sobre a questão das drogas.
No entanto, em artigos correspondentes à Lei 11.343/06, foram encontrados significados que ainda podem ser vistos como indicativos de estereotipias de cunho discriminatório em seus regimentos, levando o usuário à imagem de uma pessoa carente, desempregada, sem família, ou seja, “pessoa caída na sarjeta”. E, como conseqüência, foi levantada a possibilidade deste fato ser um dos vários elementos que ainda poderiam influenciar negativamente planejamentos de estratégias de controle do uso de drogas, principalmente em se tratando de medidas preventivas e de redução de danos.
Para concluir, foi também enfatizada a necessária incorporação de profissionais de saúde e de assistência social nos procedimentos que antecedem a aplicação do art. 28. Até então, tais procedimentos, conforme previstos pela Lei, são de competência exclusiva de autoridade judicial, enquanto que os serviços médicos, assistenciais e psicológicos são efetivados somente como ações educativas e de tratamento a posteriori, e não como medidas de caráter diagnosticais, de forma a estabelecer a tão necessária distinção entre usuários, usuários abusivos e dependentes de drogas.
Ser cidadão, perdoem-me os que cultuam o direito, é ser como o Estado, é ser um indivíduo dotado de direitos que lhe permitem não só se defrontar com o Estado, mas afrontar o Estado. O cidadão seria tão forte quanto o Estado. O indivíduo completo é aquele que tem a capacidade de entender o mundo, a sua situação no mundo e que, se ainda não é cidadão, sabe o que poderiam ser os seus direitos.
Milton Santos. (1987).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
B. H., NAPPO, S. et al. O Adolescente e as Drogas no Contexto da Escola. Curso de Formação em Prevenção do Uso de drogas para Educadores de Escolas Públicas, volume I. Brasília, DF: Secretaria Nacional Antidrogas. (2006).
BRASIL. LEI N° 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências
CAPEZ, FERNANDO. Curso de Direito Penal, volume 4: legislação penal especial. 3ª Ed. – São Paulo: Saraiva. (2008)
CARNEIRO, S. H. Entre o Delírio e o Perigo. Revista Nossa História, 6, 13-31.(2006)
GALDURÓZ, F. J. (Org.) II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: envolvendo as 108 maiores cidades do país. Brasília, DF: Secretaria Nacional Antidrogas. (2005).
GOMES F. L. (org), BIANCHINI, A., CUNHA, S. R. & OLIVEIRA T. W. Lei de Drogas Comentada (2ª rev.) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. (2007).
KORT, M. Seminário Internacional de Políticas Públicas sobre Drogas, (pp. 27-32). Brasília, DF: Secretaria Nacional Antidrogas. (2004).
MINAYO, S. M. O Desafio do Conhecimento (10ª Ed.). São Paulo: Hucitec. (2007).
Política Nacional sobre Drogas. Brasília, DF: Secretaria Nacional Antidrogas. (2005).
OLIVEIRA, S. M., CONCEIÇÃO, G. M., ARAÚJO, M. C., NICASTRI, S., ALBERTANI,
SPINK, M. J. Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. 2ª Ed. São Paulo: Cortez. (2000)
SOUZA, FONTENELLE & RAMOS. Uma Análise da Lei N° 6.368/76 e sua Eficácia na Inibição do uso Indevido e no Tráfico de Entorpecentes. Disponível em
<http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_3479.html> Acesso em: 09 abr. (2009). às 14hs
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário UDF. Especialização lato-sensu em Direito Público pelo Instituto Processus em 2009. Assistente -Técnica no Departamento de Operações de Comércio Exterior - DECEX, Secretaria de Comércio Exterior - SECEX, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARFAN, Andréa de Almeida. Preconceitos Implícitos na Lei de Drogas 11.343/06 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37299/preconceitos-implicitos-na-lei-de-drogas-11-343-06. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.