RESUMO: O poder regulamentar é a atribuição, conferida ao chefe do Poder Executivo, de expedir regulamentos, objetivando propiciar a fiel execução da lei. A doutrina reconhece a existência de duas formas de manifestação do poder regulamentar: os regulamentos de execução e os regulamentos autônomos. O regulamento de execução tem como objetivo explicar o modo, a operacionalização e os pormenores para a adequada execução de uma norma. Já o regulamento autônomo independe de norma prévia e pode inovar o ordenamento jurídico, criando direitos e obrigações. Entretanto, é controversa a extensão do conceito de regulamento autônomo, sendo que a posição majoritária admite a expedição de regulamentos autônomos, nas hipóteses previstas na Constituição, especialmente o art. 84, VI, a.
1 – Considerações iniciais.
Os poderes administrativos têm várias características peculiares e são divididos nas seguintes espécies: poder regulamentar, hierárquico, disciplinar e de polícia. Todos estão previstos no ordenamento jurídico e são instrumentos de sua atuação, sendo que o seu exercício é obrigatório, lícito e imposto pela legislação.
Dentre eles, o poder regulamentar é o que gera maiores discussões, porque o resultado do seu exercício é a criação de uma norma geral e abstrata, considerada lei no sentido material, que atinge um incontável número de particulares.
O conceito, as formas de expressão, os fundamentos normativos, o entendimento do STF e as diferentes posições doutrinárias sobre os limites do poder regulamentar é que veremos a seguir.
2 – Limites do Poder Regulamentar.
O poder regulamentar é um dos poderes administrativos e consiste na atribuição, conferida ao chefe do Poder Executivo da entidade federativa, de expedir regulamentos, objetivando propiciar a fiel execução da lei. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[1]:
É uma das formas pelas quais se expressa a função normativa do Poder Executivo. Pode ser definido como o que cabe ao chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas complementares à lei, para fiel execução.
Muitas vezes, é uma ideia que parece confusa porque se regulamenta o que está em lei. No entanto, trata-se de um esclarecimento, explicitação que a lei requer, prescinde. Em sentido material, o resultado do poder regulamentar é considerado lei.
O poder regulamentar, porém, não se confunde com a função legislativa. Sua semelhança está na produção de atos gerais e abstratos; diferem, todavia, porque o legislativo pode inovar a ordem jurídica, o que não pode acontecer, regra geral, no poder regulamentar, por respeito ao princípio da separação dos poderes.
A doutrina reconhece a existência de duas formas de manifestação do poder regulamentar: os regulamentos de execução e os regulamentos autônomos.
O regulamento de execução é considerado a expressão clássica do poder regulamentar. Tem como objetivo explicar o modo, a operacionalização e os pormenores para a adequada execução de uma norma. Assim, depende de lei prévia, não podendo ir além do que ela dispõe. É o mais usual e tratado pela doutrina como norma administrativa secundum legem.
No julgamento da ADIn 1.435-8, o STF apontou quatro requisitos para que o regulamento fosse assim tipificado: 1) lei prévia; 2) decreto que assegure a execução da lei; 3) agentes da administração pública como destinatários; 4) ausência de estipulação de direito ou obrigação. Eis a ementa do julgado:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. DECRETO 1.719/95. TELECOMUNICAÇÕES: CONCESSÃO OU PERMISSÃO PARA A EXPLORAÇÃO. DECRETO AUTÔNOMO: POSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO. OFENSA AO ARTIGO 84-IV DA CF/88. LIMINAR DEFERIDA. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 - que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do artigo 21 da CF - é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. Medida liminar deferida.
(ADI 1435 MC, Relator (a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/1996, DJ 06-08-1999 PP-00005 EMENT VOL-01957-01 PP-00040)
Os decretos que visam explicitar conceitos legalmente previstos são considerados uma forma de regulamento de execução e são chamados de norma administrativa intra legem. Conforme Maffini, são admitidos, quando não invadirem o campo de matérias reservadas à lei pela Constituição Federal[2]:
(...) na hipótese ora analisada, a existência de regra em lei em sentido formal é imprescindível para que sejam fixados os parâmetros conceituais (ou standards), os quais serão tão-somente explicitados através de outras normas gerais e abstratas emitidas pela Administração Pública. Assim, as normas administrativas, mesmo que aparentemente autônomas, não o seriam, na medida em que estariam tão-somente explicitando um conceito legal, respeitados os elementos jurídicos contidos em sentido formal. (...) Uma advertência, contudo, há de ser feita: a técnica de atribuição de competência de explicitação direta de matérias absolutamente reservadas à lei em sentido formal, tais como a criação de obrigação de fazer ou de não fazer (art. 5º, II, da CF), a tipificação de crime (art. 5º, XXXIX, da CF), a criação de tributos (art. 150, I, da CF).
Esse espaço de atuação administrativa é aceito pelo STF:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS/SÃO PAULO. CORREÇÃO MONETÁRIA. lEI 6.374, DE 1989, ART. 109, parág. único, do Estado de São Paulo. Decreto nº 30.356, de 1989, do Estado de São Paulo. I. - Legitimidade da correção monetária do ICMS paulista a partir do décimo dia seguinte à apuração do débito fiscal. Delegação regulamentar legítima: regulamento delegado "intra legem", sem quebra do padrão jurídico posto na lei. II. - Improcedência da alegação no sentido de infringência ao princípio da não cumulatividade (C.F., ART 155, $ 2º, I). III. - Precedentes do STF: RREE 154.273-SP e 172.394-SP, Plenário, 21.06.95. IV. - Discussão em torno da legalidade de índices de indexação diz respeito ao contencioso infraconstitucional, incabível em sede de recurso extraordinário. V. - Agravo não provido.
(RE 158891 AgR, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 26/09/1995, DJ 01-12-1995 PP-41690 EMENT VOL-01811-03 PP-00563)
EMENTA: - CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO - SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I. I. - Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho - SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., art. 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT. II. - O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais. III. - As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II, definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de "atividade preponderante" e "grau de risco leve, médio e grave", não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I. IV. - Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional. V. - Recurso extraordinário não conhecido.
(RE 343446, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/2003, DJ 04-04-2003 PP-00040 EMENT VOL-02105-07 PP-01388)
A segunda espécie de regulamento apontada pela doutrina é o regulamento autônomo. Esse não depende de norma prévia e pode inovar o ordenamento jurídico, criando direitos e obrigações. Entretanto, é controversa a extensão do conceito de regulamento autônomo.
Há entendimentos extremos, como o de Eros Grau, que aceita a edição de regulamentos autônomos de maneira ampla, sempre que a matéria estiver dentro da competência constitucional do Executivo, por considerá-lo um poder implícito da Administração. De acordo com o jurista[3], “a sua emanação é indispensável à efetiva atuação do Executivo em relação a determinadas matérias, definidas como de sua competência”.
Hely Lopes concorda com a possibilidade de regulamentos autônomos, porém nas “situações não disciplinadas em lei” [4] (MEIRELLES, 2001, p. 120). Ou seja, caso não haja pronunciamento do legislativo, o Executivo estaria autorizado a regular a situação hipotética.
Em sentido oposto, Celso Antônio Bandeira de Mello refuta totalmente a possibilidade de regulamentos autônomos. Justifica no fato de a Constituição ser repleta de dispositivos que evidenciam a impossibilidade dos regulamentos autônomos, como o art. 5º, II, 37, caput, e o 84, IV.
Há uma quarta corrente, considerada majoritária, que admite a expedição de regulamentos autônomos, nas hipóteses previstas na Constituição, especialmente o art. 84, VI, a (alterado pela EC n.º 32/01)[5], qual seja, para organizar e disciplinar o funcionamento da administração pública federal. Defende que a regra geral é a impossibilidade de edição de regulamentos autônomos, porém excepcionada pelas hipóteses expressamente previstas na Constituição.
Há divergência entre defensores dessa corrente quanto ao número de hipóteses de regulamentação autônoma. De qualquer forma, todos são unânimes em afirmar que o art. 84, VI, a, é uma exceção à regra. Nesse sentido[6]:
Assim, conclui-se que, como regra, não é possível a edição de normas administrativas praeter legem, embora exista no Direito Administrativo brasileiro ao menos uma exceção, como é o caso do disposto no art. 84, VI, a, da Constituição Federal.
Essa posição é defendida, dentre outros, por Di Pietro e foi confirmada pelo STF no julgamento da ADIn 2.564-3:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO N.º 4.010, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2001. PAGAMENTO DE SERVIDORES PÚBLICOS DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL. LIBERAÇÃO DE RECURSOS. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Os artigos 76 e 84, I, II e VI, a, todos da Constituição Federal, atribuem ao Presidente da República a posição de Chefe supremo da administração pública federal, ao qual estão subordinados os Ministros de Estado. Ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, diante da nova redação atribuída ao inciso VI do art. 84 pela Emenda Constitucional nº 32/01, que permite expressamente ao Presidente da República dispor, por decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando isso não implicar aumento de despesa ou criação de órgãos públicos, exceções que não se aplicam ao Decreto atacado. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. (ADI 2564, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2003, DJ 06-02-2004 PP-00021 EMENT VOL-02138-03 PP-00511)
Dessa forma, regra geral e em consonância com a doutrina majoritária, referendada pelo STF, o poder regulamentar contempla apenas a execução legislativa e a explicitação de conceitos legais, com exceção da edição de regulamentos autônomos nas hipóteses previstas na Constituição, especialmente se versarem sobre a organização e funcionamento da administração.
Finalmente, para registro, a doutrina e o STF[7]não admitem o chamado “regulamento delegado” (transferência do poder normativo do Legislativo para o Executivo a fim de disciplinar determinadas situações). Igualmente, não é aceita a delegação interna do regulamento de execução, apenas do regulamento autônomo, na forma do parágrafo único do art. 84 da Constituição Federal[8].
Além disso, apenas o regulamento autônomo pode ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade, já que violaria diretamente a Constituição (o regulamento de execução desconforme seria caso de ilegalidade, não de inconstitucionalidade). Por outro lado, o Congresso Nacional pode sustar, por Decreto Legislativo, qualquer ato normativo praticado pelo Executivo que exorbitar o seu Poder Regulamentar, com base no art. 49, V, da Constituição Federal[9].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília, DF, 5 julho de 1965.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgados citados disponíveis em <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 24 nov. 2013.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. Ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 253.
MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
[2] MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.
[3] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. Ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 253.
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[5] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) Organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.
[6] MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 81.
[7] EMENTAS: 1. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Condição. Objeto. Decreto que cria cargos públicos remunerados e estabelece as respectivas denominações, competências e remunerações. Execução de lei inconstitucional. Caráter residual de decreto autônomo. Possibilidade jurídica do pedido. Precedentes. É admissível controle concentrado de constitucionalidade de decreto que, dando execução a lei inconstitucional, crie cargos públicos remunerados e estabeleça as respectivas denominações, competências, atribuições e remunerações. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 5° da Lei n° 1.124/2000, do Estado do Tocantins. Administração pública. Criação de cargos e funções. Fixação de atribuições e remuneração dos servidores. Efeitos jurídicos delegados a decretos do Chefe do Executivo. Aumento de despesas. Inadmissibilidade. Necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. Ofensa aos arts. 61, § 1°, inc. II, "a", e 84, inc. VI, "a", da CF. Precedentes. Ações julgadas procedentes. São inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder Executivo a dispor, mediante decreto, sobre criação de cargos públicos remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução.
(ADI 3232, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 14/08/2008, DJe-187 DIVULG 02-10-2008 PUBLIC 03-10-2008 EMENT VOL-02335-01 PP-00044 RTJ VOL-00206-03 PP-00983)
[8] Art. 84. (...)
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
[9] Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
Procurador Federal. Subprocurador-Geral do INSS. Especialista em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em Direito Público pela UNIDERP. Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASSEPP, Alexandre Azambuja. Limites do Poder Regulamentar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37368/limites-do-poder-regulamentar. Acesso em: 23 dez 2024.
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