RESUMO: Trata-se de breve estudo acerca da possibilidade de a Anatel aplicar multa diária em face de descumprimento de determinação prevista em medida cautelar.
Ante o reconhecimento da importância das medidas cautelares para que, em determinadas situações, se atinja o interesse público e como forma de efetivação das ações regulatórias levadas a cabo pela Anatel, entende-se relevante se debruçar sobre o tema em referência.
Como se demonstrará, a conclusão é pela possibilidade de imposição de multa diária pela Agência em razão do descumprimento de medidas cautelares.
Insta ressaltar, primeiramente, que, apesar de ser muito comum a utilização da expressão “multa diária”, nem sempre a periodicidade de incidência da multa coercitiva há de ser diária, uma vez que também pode ser horária, semanal, mensal, anual ou até mesmo fixa. Caberá à autoridade competente decidir o que melhor atende às necessidades do interesse público, à luz do caso concreto.
Dessa forma, embora o presente estudo sempre faça referência à expressão “multa diária”, a argumentação expendida é aplicável à multa coercitiva em geral, seja horária, diária, semanal, etc.
PALAVRAS-CHAVE
Anatel. Multa Diária. Aplicação. Interesse Público. Descumprimento de Obrigações Regulatórias. Medida Cautelar. Poder Geral de Cautela. Poderes Implícitos. Medida Coercitiva. Efetividade. Proporcionalidade. Transparência.
1 Do respaldo legal para aplicação de multa diária em sede de cautelar pela ANATEL. Fundamento das medidas cautelares. Teoria dos poderes implícitos. Efetividade da multa diária.
De início, deve-se ter em mente que a multa diária é uma espécie de multa, uma vez que o seu efeito sobre o administrado é de cunho pecuniário. Deste modo, pode-se afirmar que ela se enquadra na previsão contida no art. 173, II, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), segundo o qual a infração a esta Lei ou às demais normas aplicáveis, bem como a inobservância dos deveres decorrentes dos contratos de concessão ou dos atos de permissão, autorização de serviço ou autorização de uso de radiofrequência, sujeitará os infratores, dentre outras, à sanção de multa, aplicável pela Agência, sem prejuízo das responsabilizações de natureza civil e penal.
De fato, como se demonstrará, o efeito prático da multa diária possui natureza pecuniária, tal qual uma multa ordinária. Ambas resultam, pois, no pagamento de uma quantia certa à Administração Pública em razão do descumprimento de obrigações regulatórias, sejam estas materializadas em contratos de concessão, termos de autorização, regulamentos ou em atos de efeitos concretos expedidos pela Agência, como é o caso da medida cautelar.
Dessa forma, tendo a mesma natureza pecuniária, é de se inferir que a multa diária já encontra respaldo legal na própria previsão de aplicação de multa contida no citado art. 173, II, da LGT.
De qualquer forma, no caso específico da Anatel, a possibilidade de aplicação de astreintes se daria especificamente no âmbito das medidas cautelares, servindo, portanto, de instrumento de coerção do administrado a cumprir determinada obrigação de fazer ou não fazer que se mostre necessária ao interesse público numa dada situação.
A possibilidade de aplicação de multa diária pela Agência, portanto, servirá para atribuir efetividade à medida cautelar imposta, ante o eventual descumprimento perpetrado pelo ente regulado. A previsão de multa diária por descumprimento da medida forçará o administrado a observar e a cumprir a medida cautelar, nos termos e prazos tais quais impostos pela Administração.
Pode-se afirmar, em suma, que a aplicação da multa diária é um meio para garantir efetividade às medidas cautelares, servindo como instrumento de coerção para que o administrado cumpra a obrigação imposta pela Agência naquele específico caso concreto.
Acerca das medidas cautelares, esclarece-se que são instrumentos expressamente previstos na legislação ordinária (art. 45 da Lei nº 9.784/99 e art. 175, parágrafo único, da LGT) e no art. 52 do Regimento Interno da Anatel, (Resolução nº 612, de 29 de abril de 2013), podendo ser adotados em casos de risco iminente, antes ou durante o curso de um processo administrativo, para evitar a lesão e sem prévia manifestação do interessado.
Outrossim, nesse mesmo sentido, há previsão na Lei nº 9.784/99 que regula o processo administrativo e no Código de Defesa do Consumidor. Veja-se, a esse respeito, o que dispõem os referidos dispositivos:
LPA
Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.
LGT
Art. 175. Nenhuma sanção será aplicada sem a oportunidade de prévia e ampla defesa.
Parágrafo único. Apenas medidas cautelares urgentes poderão ser tomadas antes da defesa.
CDC
Art. 56. As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:
omissis
Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento administrativo.
Regimento Interno da Anatel
Art. 52. A Agência poderá, motivadamente e observadas as competências estabelecidas neste Regimento, adotar medidas cautelares indispensáveis para evitar dano grave e irreparável ou de difícil reparação, sem a prévia manifestação do interessado
Com efeito, deve-se ter em mente que a adoção de cautelar garante uma maior efetividade da medida administrativa, devendo ser usada em caráter de urgência com o objetivo de assegurar o interesse público num dado caso concreto.
É inconteste a existência de previsão legal que autoriza a Anatel a adotar medidas cautelares, conforme demonstrado na LGT e na LPA. A possibilidade de aplicação da multa diária, por sua vez, além de contida no art. 173, II, da LGT, ainda que implicitamente, decorre do poder geral de cautela da Agência e fundamenta-se também na teoria dos poderes implícitos.
Acerca dessa teoria, citamos a clássica obra[1] de Carlos Maximiliano, que afirma, ipsis litteris:
Bem antiga é a obra de Thibaut, de 1799, e já prescrevia o hermeneuta ao considerar o fim colimado pelas expressões de Direito, como elemento fundamental para descobrir o sentido e o alcance das mesmas.
Não se compreenderia preceito algum sem ascender à respectiva série causal; mas não haveria necessidade de compreendê-lo, se o seu destino não for atuar sobre a vida e correr uma linha fecunda de efeitos.
Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma, isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o objetivo ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele propósito; quando assim se não procedia, construíram a obra do hermeneuta sobre a areia movediça do processo gramatical.
Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei; o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida. (grifou-se)
Desta forma, percebe-se que ao exercício de qualquer função pública são consignados os correlatos poderes instrumentais imprescindíveis para a consecução dos fins almejados pela norma que atribuiu ditas funções, devendo a interpretação do sistema jurídico ser feita de forma a não frustrar a satisfação da função pública atribuída pelas aludidas normas[2] .
Dentro do raciocínio da teoria dos poderes implícitos, se à Anatel foi conferida, inclusive pela Constituição Federal, poderes para regular e fiscalizar o setor de telecomunicações, bem como para adotar medidas cautelares, não pode ela ser privada dos poderes instrumentais necessários para o desempenho de tais funções, sob pena de contradição da própria Constituição Federal e colapso do sistema vigente, em prejuízo do consumidor do serviço.
Ora, se a Anatel tem, como demonstrado, o poder para adotar medida cautelar, tem também o poder referente às medidas instrumentais e acessórias necessárias à sua aplicação. Em outras palavras, ter o poder de impor medida cautelar significa que a Agência, implicitamente, também está autorizada a adotar providências que garantam a sua efetividade, tais como a imposição de medida coercitiva ao ente regulado.
Na verdade, fica ainda mais claro que as medidas cautelares devem ser acompanhadas de multa diária, quando se observa que elas consubstanciam instrumentos expressamente previstos na legislação e que se coadunam perfeitamente com o próprio art. 19 da LGT, que aduz competir à Agência adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras.
Além disso, deve-se registrar que a medida cautelar é adotada diante de situações urgentes, de risco iminente, de modo que a tempestividade do seu cumprimento é de fundamental importância para a efetividade da medida. Com efeito, a aplicação de multa diária pelo descumprimento da cautelar representa um instrumento lícito a compelir o administrado a cumprir a determinação da Agência, conferindo eficácia à sua decisão.
Frise-se que o descumprimento de uma medida cautelar imposta pela Agência enseja, sem dúvida, a aplicação de uma sanção, já que se trata de ato administrativo de efeito concreto expedido pela Agência, conforme consta, inclusive, no art. 1º do Regulamento de Sanções da Anatel, aprovado pela Resolução nº 589/2012[3].
De fato, a multa diária garante a efetividade que se espera de uma medida cautelar, assegurando que se lhe dê pronto cumprimento. Assim, considerando sua importância para garantir o cumprimento de obrigações de fazer e não fazer, verifica-se que se trata de instrumento amplamente utilizado, tanto pela Administração quanto pelo Poder Judiciário, e previsto no ordenamento jurídico brasileiro em diversas situações, como, por exemplo, no caso do Código de Processo Civil, art. 461, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, art. 84, §§ 3º e 4º, e também da Lei nº 11.934/2009, que, inclusive, se refere ao próprio setor de telecomunicações:
CPC:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
[...]
§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
CDC:
Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
[...]
§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.
§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. [grifei].
[...]
Lei nº 11.934/2009:
Art. 18. O descumprimento das obrigações estabelecidas por esta Lei sujeita as prestadoras de serviços de telecomunicações e as prestadoras de serviços de radiodifusão à aplicação das sanções estabelecidas no art. 173 da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997.
Parágrafo único. Para os fins do disposto no caput deste artigo, será ainda aplicada a sanção de multa diária.
Acerca do conceito e da função da multa diária, é de bom alvitre destacar as lições de Fredie Didier Jr., no seguinte sentido:
A multa é uma medida coercitiva que pode ser imposta no intuito de compelir alguém ao cumprimento de uma prestação. Trata-se de técnica de coerção indireta em tudo semelhante às astreintes do direito francês. Por ser uma medida coercitiva indireta, a multa está relacionada com as decisões mandamentais. Ela é, talvez, a principal, porque mais difundida, medida de coerção indireta, mas não é a única.
[...]
A multa tem caráter acessório: ela existe para coagir, para convencer o devedor a cumprir a prestação. Justamente por isso, não pode ser irrisória, devendo ser fixada num valor tal que possa gerar no íntimo do devedor o temor do descumprimento. [4] [grifei].
Depreende-se dos trechos em destaque acima que a multa diária realmente revela-se como um meio, um instrumento de viabilização do adimplemento da conduta do devedor/infrator. Como nos ensina ainda Fredie Didier Jr., trata-se de “uma técnica de coerção psicológica do devedor”.
Com efeito, cumpre esclarecer que as multas diárias previstas nos citados arts. 461 do CPC e 84 do CDC referem-se, especificamente, aos processos judiciais. No entanto, como demonstrado, encontrando respaldo próprio no ordenamento jurídico, também são aplicáveis no âmbito da Anatel, por meio de sistemática semelhante que cumpre exatamente a mesma função, qual seja, a de forçar o cumprimento de determinadas obrigações necessárias ao interesse público num dado caso concreto.
2 Da observância dos princípios da transparência, publicidade e proporcionalidade na aplicação da multa diária.
A aplicação de multa diária por descumprimento de cautelar está alinhada ao entendimento de que é perfeitamente possível que a Anatel leve em consideração o período de descumprimento da medida cautelar por ela estabelecida, como um dos parâmetros para aplicação da respectiva sanção. É dizer, tendo em vista a periodicidade inerente à multa diária, quanto maior for o tempo que o infrator levar descumprindo a cautelar, maior será a multa a ele aplicada no final.
Pode-se afirmar ainda que a multa diária reforça os princípios da publicidade e da transparência, pois possibilita o prévio conhecimento pelo administrado, de forma objetiva, das consequências de eventuais descumprimentos às determinações da Agência. Isso porque, o valor total a ser pago a título de multa diária é resultado de um cálculo simples e objetivo: multa final = dias multa x valor da multa.
Tendo em vista toda a fundamentação jurídica exposta, pode-se afirmar que a aplicação de multa diária em sede de cautelar pela Anatel é juridicamente possível, ainda que inexista previsão legal expressa, salvo no caso da Lei nº 11.934/2009, em seu art. 18, que dispõe expressamente sobre a utilização de multa diária por parte da Anatel para os casos nela previstos (limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos).
3 CONCLUSÃO
Em vista do exposto neste trabalho, pode-se concluir pela possibilidade de a Anatel impor multa diária em razão de descumprimento de suas medidas cautelares.
Como visto, a multa diária é uma espécie de sanção pecuniária e fundamenta-se no art. 173, inciso II, da LGT.
Ademais, parte-se da premissa de que a possibilidade de adoção de medidas cautelares, prevista na legislação ordinária (art. 45 da Lei nº 9.784/99 e art. 175, parágrafo único, da LGT), inclui também os mecanismos necessários à sua eficácia. É dizer, a possibilidade de aplicação da multa diária é decorrência da teoria dos poderes implícitos e do poder geral de cautela da Anatel.
Outrossim, a fixação da multa diária na medida cautelar apenas representa uma antecipação dos critérios que serão utilizados para aplicação de sanção pelo eventual descumprimento da obrigação imposta, em perfeita harmonia aos princípios da transparência e da publicidade.
Além disso, a cominação de multa em função do tempo de descumprimento da obrigação imposta prestigia o princípio da proporcionalidade.
REFERÊNCIAS
DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2012, v. 5, p. 451.
Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, ed. Forense, 19ª edição, págs. 124/125.
[1] Hermenêutica e Aplicação do Direito, ed. Forense, 19ª edição, págs. 124/125.
[2] A teoria dos poderes implícitos é de longa data reconhecida pelo STF. Como exemplo, podemos citar o emblemático RE de nº 76.629/RS em que o Ministro Aliomar Baleeiro afirmou que “se o legislador quer os fins, concede os meios (...) se a L. 4.862 expressamente autorizasse o regulamento a estabelecer condições outras, além das que ela estatuir, aí não seria delegação proibida de atribuições, mas flexibilidade na fixação de standards jurídicos de caráter técnico, a que se refere Stati”.
[3] Este Regulamento estabelece parâmetros e critérios para aplicação de sanções administrativas por infrações à Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, e demais normas aplicáveis, bem como por inobservância dos deveres decorrentes dos contratos de concessão, dos atos de designação ou dos atos e termos de permissão, de autorização de serviço, de autorização de uso de radiofrequência, de direito de exploração de satélite, ou ainda dos demais atos administrativos de efeitos concretos expedidos pela Agência.
[4] DIDIER Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2012, v. 5, p. 451.
Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal Especializada da Anatel. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Júlia de Carvalho. A possibilidade de aplicação de multa diária pela ANATEL em sede de medida cautelar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37436/a-possibilidade-de-aplicacao-de-multa-diaria-pela-anatel-em-sede-de-medida-cautelar. Acesso em: 23 dez 2024.
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