SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais e mutabilidade conceitual. 2. Perspectiva histórica dos serviços públicos. 3. Os serviços públicos no pensamento francês. 4. Considerações finais e atualidade. 5. Bibliografia.
RESUMO: O presente trabalho busca traçar um panorama histórico sobre a acepção do serviço público, demonstrando sua mutabilidade conceitual. Busca-se a apontar a visão dos serviços públicos desde a antiguidade até a atualidade, passando pela Idade Média, à luz do feudalismo, e pela evolução do pensamento francês a partir de Léon Duguit. Por fim, será trazida a conceituação de serviço público adotada pela doutrina moderna do Brasil, na esteira dos ensinamentos de Alexandre Aragão dos Santos.
PALAVRAS-CHAVE: Direito administrativo – Serviços públicos – Mutabilidade histórica.
As necessidades e aquilo a que se dá importância variam ao longo do tempo e do espaço. No mesmo sentido, a visão de como e em qual medida tais necessidades devem ser satisfeitas também varia ao longo do tempo e do espaço.
Em primeiro lugar, sob o ponto de vista material, é preciso distinguir as utilidades das inutilidades, de modo a precisar quais as reais necessidades da população numa dada cultura. Assim é que, por exemplo, os banhos públicos eram considerados de grande utilidade pública na Grécia Antiga, o que não se aplica para o mundo hodierno. Diz-se que na Idade Média os serviços religiosos é que tinham apelo popular. Vê-se, portanto, que de cada cultura é possível extrair determinadas necessidades que lhe são peculiares. Por outro lado, pode-se até dizer que as estradas, a fim de viabilizar a locomoção, parecem um exemplo de serviço cuja utilidade se mostra de certa forma perene, obviamente variando em grau de prioridade.
Enquanto umas utilidades são mais pontuais, identificadas especificamente com uma dada cultura, outras se mostram mais perenes, constituindo espécie de necessidade geral da humanidade. De qualquer forma, o fato é que as utilidades crescem e se aperfeiçoam com o tempo. Crescem porque o desenvolvimento humano produz novas tecnologias, novas alternativas e novas facilidades sem as quais as pessoas não mais conseguem viver, não sem progredir. E aperfeiçoam-se porque, uma vez que as utilidades se consolidam, o nível de exigência em sua prestação aumenta. Direitos são positivados e consumidores são protegidos, de modo que a busca pela perfeição na prestação dos serviços de utilidade pública se torna incessante.
Atualmente, portanto, há uma infinidade de utilidades demandadas pela população, umas identificadas mais a serviços e outras mais a infraestruturas. Na verdade, a maior aproximação da utilidade ao serviço ou à infraestrutura pode ser determinada por uma análise de meio e de fim, a depender do seu usufruidor. Assim é que há exigência de prestação de serviço de transporte público terrestre. Para o usuário desse serviço, as rodovias (infraestrutura) funcionam como um meio à sua adequada prestação. Por outro lado, para os que se transportam usando seus próprios veículos, as rodovias funcionam como um fim, de modo que a infraestrutura é a utilidade a ser perseguida.
No caso de telecomunicações ou de energia elétrica, é importante para seus usuários que o serviço seja prestado adequadamente, afigurando-se a infraestrutura respectiva (antenas, cabos, postes, hidrelétricas, etc.) apenas como um meio. O usuário não exige finalisticamente infraestrutura, mas serviço de qualidade. Sua relação com a infraestrutura, em outras palavras, é de meio, e não de fim, como ocorre no caso das rodovias para os que se transportam com veículos próprios.
Voltando ao raciocínio após essas breves considerações, o fato é que o avanço da tecnologia e da medicina trouxe inúmeras novas utilidades à disposição, ao menos hipoteticamente, da população, que quer efetivamente usufruí-as. Tem-se, aí, o desafio de aproximação do abstrato ao concreto, ou seja, da massificação dos serviços públicos. Assim, não basta ser atendido por um médico, é preciso ter à disposição do cidadão modernos aparelhos. E não basta a existência de um aparelho, é preciso ter vários, a fim de atender todos que eventualmente dele necessitem.
Além dessas utilidades básicas e concretas, o mundo hodierno demanda utilidades mais abstratas relacionadas, por exemplo, ao lazer, à felicidade, à cultura, ao equilíbrio do meio ambiente, etc. Não se está afirmando, registre-se, que o meio ambiente equilibrado não se traduz em necessidade de primeira ordem. Ocorre que o equilíbrio do meio ambiente traduz termo fluido que dá margem a várias interpretações. Difere, por exemplo, da demanda por banda larga numa velocidade de 50MB, bem mais objetiva e concreta.
O desafio, portanto, além de identificar as utilidades, é ordená-las em graus de prioridades ou grupos de prioridades e definir por quem e em qual medida elas devem ser fruídas, o que requer uma decisão essencialmente política. Nesse sentido Michael Walzer[1] afirma:
A natureza de uma necessidade não é evidente por si mesma (...). As pessoas não têm apenas necessidades, têm ideias, sobre as suas necessidades, têm prioridades, graus de necessidade, e tais graus e prioridades se referem não apenas à sua natureza humana, como também à sua história e cultura. Como os recursos são sempre escassos, é preciso tomar decisões difíceis, decisões estas que só podem ser de natureza política.
Embora atualmente possa ser relativamente fácil afirmar que o Estado, direta ou indiretamente, deve assegurar as utilidades a todos os cidadãos, tal percepção nem sempre foi assim. Como dito, além de distinguir as inutilidades das utilidades e ordenar estas últimas em níveis de prioridade (acepção material dos serviços públicos), é necessário saber como, para quem, por quem e em qual medida elas serão asseguradas (acepção instrumental dos serviços públicos).
No mundo antigo, embora se entendesse que o Estado deveria assegurar o fornecimento de serviços públicos, a família também possuía grandes responsabilidades na fruição de utilidades. Muitas vezes questões de saúde e acessibilidade eram tratadas no próprio seio familiar, o que, embora não afastasse o papel do Estado, representava uma característica prática da época.
Platão, na Antiguidade, já consagrava em sua filosofia a noção de prevalência do interesse geral sobre o interesse meramente individual, o que se traduz, até hoje, no que se denominou princípio da supremacia do interesse público. Aristóteles, apontando a possibilidade de pessoas diferentes, dadas suas individualidades e interesse próprios, não remarem em prol do interesse comum, defendia que a cidade dispusesse de um sistema coletivo de fornecimento de bens e serviços à comunidade, a ser democrática e politicamente organizado no seio do Estado.
No feudalismo, em que a sociedade estava organizada em feudos, a infraestrutura de interesse coletivo era disponibilizada pelos senhores feudais a seus vassalos. Os senhores feudais se apresentavam como os garantidores da fruição das utilidades públicas. Eram os responsáveis pela manutenção do feudo assim como o Estado é responsável pelas cidades.
A diferença é que os senhores feudais visavam ao lucro, constituindo-se em empresários, detendo o monopólio de todas ou quase todas as utilidades à disposição dos vassalos, o que fatalmente se desdobrava em exploração econômica. Para desenvolver suas atividades de agricultura, os vassalos tinham que alugar as chamadas banalidades feudais dos senhores feudais, que eram infraestruturas públicas à sua disposição, como moinhos, fornos, fundições. Enfim, tratava-se de um aluguel de equipamentos quase que compulsório que remunerava o senhor feudal conforme seu único interesse, o que, nos dias atuais, seria chamado de abuso de poder econômico.
Aqui, como se vê, um aspecto importante é que a utilidade pública na verdade não era de interesse coletivo, mas de interesse eminentemente privado do senhor feudal e que, apenas indiretamente, também atendia, ainda que com abuso, as necessidades dos vassalos, já que, sem os equipamentos à disposição, a agricultura se tornaria na prática inviável. Alexandre Santos de Aragão[2] afirma que nesse época os vassalos possuíam dois direitos que posteriormente vieram a ser transformar em dois princípios dos serviços públicos: “o de continuidade do funcionamento das banalidades, pelo que, do contrário, estariam liberados para usar instalações de outros feudos, e o da igualdade no acesso aos equipamentos e na taxação, por mais espoliante que essa fosse”.
No Absolutismo, o Estado atua em várias frentes, tanto nas de interesse coletivo quanto nas de interesse estritamente econômico, ou seja, na atividade produtiva, mas sempre com uma característica comum ao feudalismo: os serviços são desenvolvidos sempre visando a interesse próprio, ou seja, em prol da própria monarquia.
A construção das infraestruturas, como as estradas, era feita para que o rei e os serviços reais pudessem desenvolver suas atividades. Em resumo, as obras e as utilidades não visavam ao bem comum. Não interessava se uma determinada comunidade estava em local inacessível sem estradas à sua disposição. Apenas se os serviços reais fossem prejudicados por tal inacessibilidade é que o Estado se dispunha a iniciar obras para superá-la. Nesse sentido é que muitas estradas eram construídas apenas a fim de viabilizar a cobrança de tributos pelo Estado.
Indiretamente, contudo, tais obras de interesse real também acabavam servindo aos interesses da coletividade. Tal fato, porém, não afasta a forte conotação de Administração Pública patrimonialista dessa época. O Estado deveria servir a si próprio, e não à coletividade. Os serviços públicos deveriam servir ao rei, que era o dono do Estado. Essa era a finalidade dos serviços públicos, expressão que mais correspondia a verdadeiros serviços reais, ao invés de públicos. O sentimento patrimonial do governante contaminava toda a concepção do Estado e seus desdobramentos.
Com a derrocada do Absolutismo e o fortalecimento da burguesia, surgiu o Estado Liberal, que era composto por uma sociedade de indivíduos com relativa indiferença em relação ao conteúdo das relações sociais. Aqui o Estado se preocupava em garantir o desenvolvimento da burguesia, colocando os serviços públicos em prol desse objetivo.
O Estado Liberal tinha uma postura eminentemente negativa, de apenas garantir a segurança dos cidadãos frente a outros cidadãos e ao próprio Estado, e garantir, sem interferências, o desenvolvimento das atividades econômicas conduzidas pela elite. O Estado era absenteísta, garantindo os direitos civis e políticos dos cidadãos, relacionados às liberdades individuais.
A igualdade era compreendida em sua acepção meramente formal, sem preocupações de massificação ou democratização do acesso às facilidades ou, ainda, de modificar a realidade social a fim de possibilitar as alterações de status no bojo da comunidade.
Nesse contexto é que surgiu a primeira crise que fez nascer o Estado Social ou produtor, qual seja, a percepção de que a garantia tão somente das liberdades e igualdades formais não se refletiam em igualdade na prática, o que se convencionou chamar de igualdade material. De fato, não se verificava a redução das desigualdades sociais. Via-se, ao contrário, poucos indivíduos usufruindo de vários serviços ou utilidades que não estavam à disposição de uma grande massa da sociedade. O clima era de desigualdade social na prática, com poucos serviços efetivamente disponíveis à população, o que provocou a reflexão sobre o papel do Estado para aquela época. A crise econômica, materializada pela queda da bolsa de valores de 1929, também reforçou a necessidade de ele prover os serviços necessários à sociedade.
O Estado, então, diante da crescente demanda da população por serviços ou utilidades e da sua incapacidade de se reerguer sozinha no período de crise socioeconômica de grandes proporções, passou a prover, ele próprio, tais serviços ou utilidades, atuando de forma positiva, diretamente na economia. A urbanização, o aumento da cultura de higiene, a diminuição da assistência da família, enfim, tudo isso contribuiu para o aumento de demanda perante o Estado, que passou a ser o principal responsável pelo atendimento dos anseios sociais
Nesse momento houve a necessidade de retirar atividades privadas das mãos dos particulares e passá-las à titularidade do Estado, dando ensejo ao fenômeno da publicatio, que, além de permitir a prestação de atividades diretamente pelo Estado, ainda parecia melhor justificar a regulação e a organização dos serviços, sobretudo no caso dos que foram objeto de delegação por meio de concessão.
A passagem do Estado Liberal para o Estado Social, em suma, pode ser resumida pela passagem da igualdade formal para a igualdade material. E uma das principais razões dessa passagem diz respeito à ampliação da democracia política na sociedade. O advento do sufrágio universal, permitindo que todos os cidadãos votassem – ainda que, por exemplo, esse direito tenha demorado para ser estendido às mulheres –, é apontado como o gatilho para a noção de igualdade em sua acepção material. É a necessidade de o Estado agir em prol de todos os representados.
De fato, a partir do momento em que se permitiu que os menos favorecidos participassem do processo democrático, votando em seus representantes, eles foram formalmente inseridos na política estatal, passando não só a ter o direito de influenciar na tomada da decisão política acerca dos serviços públicos, mas a ter cada vez mais desenvoltura nesse processo de influência.
Esse ciclo virtuoso, portanto, jogou luz sobre as desigualdades sociais, fazendo com que o Estado direcionasse suas ações para esse problema dos, agora, seus representados. O governo passa a ser conduzido para o povo. Os serviços públicos se tornam efetivamente públicos, direcionados às necessidades coletivas em primeiro lugar, e não a uma classe determinada, como ocorria com a realeza ou com a burguesia. A Administração Pública patrimonialista dá lugar à Administração Pública burocrática, substituindo o princípio da pessoalidade pelo princípio da impessoalidade.
O avanço ainda maior da tecnologia e da medicina, a certa época, já estava provocando um aumento tanto na variedade de necessidades quanto na quantidade de pessoas. De fato, a complexidade da modernidade implicou uma maior quantidade de serviços a ser oferecido a cada vez mais pessoas, num contexto de acelerado crescimento populacional. A demanda por serviços cresceu a ponto de o Estado não mais conseguir provê-los. Tal situação se agravou em decorrência da crise fiscal das décadas de 1970 e 1980, ocasião em que se não havia mais recursos públicos para o provimento dos serviços.
Aponta-se a crise do petróleo de 1973/1974 e de 1978/1979 e o fim do sistema de paridade internacional lastreado no ouro como principais eventos que culminaram na crise fiscal. A poupança pública do Brasil, por exemplo, se tornara negativa, fulminando o resto do fôlego estatal para o provimento dos serviços, sobretudo num contexto de grande inflação. Com isso, surgiu a concepção do Estado Regulador, que se valeria de recursos privados para prover serviços públicos que deveriam ser prestados de acordo com os parâmetros ditados pelo Estado, por meio de órgãos reguladores.
Na verdade, tanto no Estado Social quanto no Estado Regulador os serviços públicos são prestados concomitantemente pelas vias direta e da delegação. Ocorre que no Estado Social a maioria é prestada diretamente pelo Estado ao passo que no Estado Regulador a maioria é prestada no regime de delegação. Valendo-se mais uma vez das lições de Alexandre Santos de Aragão[3], ele aponta que as diferenças entre um e outro não repousam nos fins, já que ambos são constituídos num Estado Democrático de Direito que busca a igualdade material, mas nas estratégias de atuação para alcançar tais objetivos comuns:
O que se deve frisar é que a diferença entre ambos, dada à própria estrutura pluralista do poder político (sufrágio universal), não concerne aos fins (proteção da dignidade da pessoa humana, redução das desigualdades sociais, proteção dos hipossuficientes frente ao poder econômico), mas sim às estratégias para se tentar alcança-los.
Dessa forma, na linha de Calixto Salomão Filho[4], pode-se dizer que a regulação se situa entre a decisão do Estado de “retirar-se da intervenção econômica direta” (Estado Social) e o reconhecimento de que é “insuficiente o mero e passivo exercício de um poder de polícia sobre os mercados” (Estado Liberal).
À regulação, então, por meio do seus poderes normativo, cautelar e de polícia, cabe orientar, dirigir, induzir e fomentar a atividade econômica, atuando preventiva e repressivamente em prol da competição dos mercados e visando à disponibilização de utilidades públicas adequadas às reais necessidades da população.
De certa forma, o Estado Regulador representa uma adequação à conjuntura econômica mundial numa época em que a globalização derruba as fronteiras dos Estados soberanos e que a política é influenciada cada vez mais pelo que Juan Ramón Capella Hernandez[5] chama de soberano privado supraestatal de caráter difuso.
Tecidas essas considerações sobre a forma como cada período histórico encara o fornecimento de utilidades públicas, não é possível seguir adiante sem, antes, registrar o pensamento francês de serviço público que tanto influenciou o Brasil e demais países de tradição jurídica civil law.
Pois bem.
Léon Duguit, capitaneando a chamada Escola do Serviço Público, possui uma visão sociológica do direito administrativo, defendendo que as normas jurídicas representam apenas a materialização ou positivação das regras que se encontram latentes no seio da sociedade, sendo praticadas e aceitas. Ele coloca o serviço público no centro não só do direito público como do próprio direito administrativo, aduzindo que o Estado deveria se conduzir segundo os serviços públicos que ele deve prestar. Essa visão é justificada muito em função da amplitude que atribui ao conceito de serviço público.
Como dito, Duguit tem uma visão sociológica do serviço público, preocupando-se mais com o seu elemento material do que com a roupagem jurídica. O serviço público seria aquele que, independentemente da roupagem jurídico-formal ou da atitude do Estado em relação a ele, consubstancia uma necessidade coletiva assim percebida pela sociedade, atendendo o interesse público. Ou seja, é a sociedade que define o que é o serviço público, e não a chancela estatal atribuindo-lhe esse rótulo. O serviço público não é criado pelo Estado, mas pela própria sociedade, segundo suas necessidades. E o Estado, por conseguinte, serve para a prestação desses serviços, que, em sua visão, incluem até mesmo a prestação jurisdicional.
É, pois, baseado na identificação da interdependência social, segundo a qual todos os membros da sociedade dependem uns dos outros e devem remar juntos para garantir um mínimo comum satisfatório, cumulada com necessidade de o Estado assegurar a prestação de determinadas atividades para manter esse liame social, que o autor desenvolve sua teoria.
Já para Gaston Gèze a amplitude dada pela visão sociológica do serviço público deve ser substituída pela definição de contornos jurídicos práticos que delimitem essas utilidades. Dessa forma, se para Duguit, a fim de precisar o serviço público, não importa nem a titularidade (elemento subjetivo) nem o regime de direito aplicável (elemento formal), o mesmo não se pode dizer quanto aos ensinamentos de Gèze.
O serviço público, segundo Gèze, seria caracterizado pelas atividades prestadas, direta ou indiretamente pelo Estado, e sob o regime jurídico de direito público, derrogatório do direito comum. Do contrário, afirma, até o fornecimento de alimentos integraria o conceito de serviço público, já que, numa visão sociológica, atende ao interesse público.
Maurice Hauriou, por sua vez, foca na presença ou não do poder de império do Estado. Para ele, o serviço público não poderia ter um caráter meramente formal a ponto de o Estado poder atribuir um regime de direito público a qualquer atividade da economia. Os serviços públicos serviriam para satisfazer a população e garantir a paz, e não diretamente para atender a necessidades coletivas. Na verdade, ele procura resguardar algumas atividades desse suposto risco de se tornarem serviços públicos. Tenta, pois, traçar uma distinção entre o público e o privado, delimitando atuação do Estado e dos particulares.
No contexto de segregação entre público e privado, convém registrar a diferença entre os sistemas jurídicos de tradição common law, desenvolvido no Reino Unido e Estados Unidos (anglo-saxão) e civil law, desenvolvido no restante da Europa e abraçado na América Latina.
Na tradição de civil law, as utilidades são organizadas por meio de serviços públicos de titularidade estatal prestados direta ou indiretamente, ao passo que na tradição de common law, a organização é feita em torno das chamadas public utilities, sem titularidade estatal. Assim, enquanto nesta última a regulação estatal é externa, naquela a regulação é interna, uma vez que o próprio Estado é o titular do serviço.
Na civil law, com as delegações estatais, tenta-se dar um caráter privado àquilo que é público. Na common law, tenta-se dar um caráter público aquilo que é privado. De qualquer forma, o que se percebe é uma aproximação entre common law e civil law, entre o público e o privado. Odete Medauar[6], destacando os movimentos de publicização do privado e de privatização do público, afirma que “a distinção entre as esfera pública e a privada perde sensivelmente em nitidez, o que traz consequências de relevo em muitos institutos jurídicos delineados no século XIX, quando a ideia de separação predominava”. Elisenda Marlaret I. Garcia[7], no mesmo sentido, afirma que a crise de aproximação dicotômica entre o público e o privado conduz a fronteiras vaporosas e contornos incertos.
De fato, o que se vê, atualmente, é o enorme desafio de compatibilizar os interesses públicos e privados em prol da coletividade, mas sem inviabilizar o interesse econômico necessário ao desenvolvimento de várias atividades socialmente relevantes. O privado não é inimigo do público nem este é inimigo daquele. Ilustrando um lado dessa vertente, cita-se trecho em que o Barão de Mauá[8] reclamava: “Desgraçadamente entre nós entende-se que empresários devem perder, para que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário”. Obviamente, os empresários não devem perder, mas sua atuação deve ser condicionada e direcionada em favor do interesse coletivo, por meio de uma regulação forte, técnica e independente, em grau de intensidade variável conforme a relevância social da atividade prestada.
Vê-se, pois, o serviço público, tanto em sua acepção material ou sociológica, como ensina Duguit, como em sua acepção jurídico-formal, como ensina Gèze, variam conforme o tempo, o que deve implicar necessariamente na forma como se interpreta e regula as atividades econômicas.
Diante de todo esse contexto histórico, pode-se dizer que atualmente a doutrina brasileira, para fins de caracterização do serviço público, exige a chamada titularidade estatal, sob pena de perder-se a utilidade classificatória do instituto, inclusive para fins didáticos. De fato, a visão sociológica de Duguit acerca dos serviços públicos, sem contornos jurídico-formais, beira à inutilidade acadêmica e prática.
Assim, considerando as disposições da Constituição Federal de 1988, boa parte da doutrina identifica os serviços públicos como aqueles de titularidade do Estado, prestados por ele próprio ou por particulares mediante delegação. O fato é que tais atividades econômicas são retiradas da esfera da livre iniciativa destinada aos particulares.
Há que defenda, ainda, como Alexandre Santos de Aragão, que também se enquadrariam na conceituação de serviços públicos os chamados serviços sociais, ou seja, aqueles cuja prestação é de responsabilidade do Estado, mas que também encontra-se livre à iniciativa privada, como ocorre com saúde e educação, por exemplo. Assim, seriam caracterizadas como serviços públicos as atividades prestacionais dos serviços sociais quando prestadas diretamente pelo próprio Estado. As escolas públicas seriam serviços públicos, ao passo que as escolas privadas não receberiam esse rótulo. De fato, o art. 198 da Carta Magna se refere a serviços públicos de saúde, de modo que parece ter razão esse corrente.
Especificamente sobre a educação, chama-se atenção para o fato realmente não seria possível simplesmente que o Estado monopolizasse essa atividades, pois esbarraria no próprio direito fundamental dos cidadãos de terem liberdade de aprendizagem, etc. É decorrência, inclusive da liberdade de religião que se permita a diversas entidades não estatais que promovam a educação. Eventual monopólio do Estado nessa atividade esvaziaria todos esses direitos fundamentais.
Além desse critério principal, os serviços públicos, segundo o direito positivo pátrio e à luz da doutrina, seriam aqueles prestados a indivíduo determinados, excluindo-as as chamadas atividades de polícia ou de fomento, bem como os serviços universais, como diplomacia, segurança, etc. Necessitam de amparo legal para serem assim caracterizados, uma vez que a livre iniciativa é um pilar do ordenamento, não podendo a própria Administração Pública simplesmente atribuir a si mesma a titularidade de determinada atividade. A instituição do serviço público depende de ato do Poder Legislativo, não afastando, é claro, a possibilidade de eventuais complementações por meio de Decreto.
Englobando os chamados serviços sociais, portanto, os serviços públicos passam a permitir, ainda, sua prestação de forma estritamente gratuita, e não apenas remunerada ou parcialmente subsidiada.
Por fim, traz-se o conceito utilizado por Alexandre Santos de Aragão[9] – com o qual se concorda –, para quem os serviços públicos “são as atividades de prestação de utilidades econômicas a indivíduos determinados, colocadas pela Constituição ou pela Lei a cargo do Estado, com ou sem reserva de titularidade, e por ele desempenhadas diretamente ou por seus delegatários, gratuita ou remuneradamente, com vistas ao bem-estar da coletividade”.
5. Bibliografia
ARAGÃO, Alexandre dos Santos de. Direito dos Serviços Públicos, Forense, 2ª ed.;
CALDEIRA, Jorge. Mauá: O Empresário do Império. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995;
GARCIA, Elisenda Marlaret I. Servicios Públicos, Funciones Públicas, Garantia de los Derechos de los Ciudadanos: perenidad de las necesidades, tranformaciones del contexto, in Revista de Administración Pública, vol. 145;
HERNANDEZ, Juan Ramón Capella. Estado y Derecho ante la Mundialización: aspectos y problemáticas generales, in Transformaciones del Derecho en la Mundialización (coord. Juan Ramón Capella Hernández), Escuela Judicial, Madrid, 1999;
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 2ª ed., São Paulo: RT, 2003;
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008;
WALZER, Michael. Las Esferas de la Justicia (trad. Heriberto Rubio), 2ª ed., Fondo de Cultura Económica, México, DF, 2001.
[1] WALZER, Michael. Las Esferas de la Justicia (trad. Heriberto Rubio), 2ª ed., Fondo de Cultura Económica, México, DF, 2001, p. 75-78.
[2] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 28.
[3] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 44.
[4] SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 20.
[5] HERNANDEZ, Juan Ramón Capella. Estado y Derecho ante la Mundialización: aspectos y problemáticas generales, in Transformaciones del Derecho en la Mundialización (coord. Juan Ramón Capella Hernández), Escuela Judicial, Madrid, 1999, pp. 105-111.
[6] MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 115-116.
[7] GARCIA, Elisenda Marlaret I. Servicios Públicos, Funciones Públicas, Garantia de los Derechos de los Ciudadanos: perenidad de las necesidades, tranformaciones del contexto, in Revista de Administración Pública, vol. 145, p. 52
[8] CALDEIRA, Jorge. Mauá: O Empresário do Império. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p. 31.
[9] Obra citada, p. 151.
Procurador Federal, pós-graduado em Regulação de Telecomunicações e pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Paulo Firmeza. Mutabilidade histórica na acepção do serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37449/mutabilidade-historica-na-acepcao-do-servico-publico. Acesso em: 23 dez 2024.
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