RESUMO: A família do século XXI tem agora novos contornos no plano social e isto influencia e coloca em dúvida a realidade normativa. O casamento já não contém a exclusividade da forma única de constituição de família. A convivência com outras formas de família agora no patamar da legitimidade, ou seja, no contexto da proteção constitucional estendida a outras formas de constituição de família, assevera a necessidade deste exame. Assim, no presente artigo buscaremos, inicialmente, traçar um paralelo histórico sobre o conceito de família, em determinadas épocas, para então situar a família da contemporaneidade no contexto constitucional vigente.
PALAVRAS-CHAVE: Família; Constituição; Mudança de Paradigmas; Direito; Felicidade.
1 INTRODUÇÃO
Muitas foram as mudanças ocorridas no seio da família brasileira nos últimos séculos. A família, consagrada pela lei, tinha um modelo conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo após o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só eram deferidos quando decorridos determinados prazos ou mediante a identificação de um culpado. O Direito das Famílias ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de profunda transformação, que ocasionou verdadeira revolução ao banir discriminações no campo das relações familiares. “Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito” (VELOSO, 1999).
2 A família na cultura Greco-romana
As mais antigas crenças sobre a alma e a morte moveram os povos antigos a desenvolverem vários rituais fúnebres, por acreditarem que a pessoa falecida conservaria todas as sensações que possuía enquanto vivia e, portanto, o sepultamento (morada da alma)
era de extrema importância.
Nesse sentido, os mortos eram considerados como divindades, e os sacrifícios a eles oferecidos garantiam-lhes um repouso tranqüilo. Os mortos só poderiam ser cultuados por seus parentes consanguíneos e também os deuses só poderiam ser adorados por uma família, pois, a religião era puramente doméstica e constituía-se como a principal característica da família.
A família era muito mais uma associação religiosa do que natural na qual o casamento representava para a mulher, a abjuração da religião dos pais para seguir a religião do marido. Do casamento religioso dependia a perpetuação da religião através do nascimento dos filhos, uma vez que as famílias temiam não ter descendentes para cultuar seus manes e por isso condenavam a prática do celibato.
Ainda tentando garantir a continuação do culto aos mortos através da descendência, era permitido entre os antigos, o divórcio em caso de a mulher ser estéril, e no caso dos homens, este deveria ser substituído por um parente próximo.
A religião dizia que a família não deveria extinguir-se, e todo o afeto, e todo o direito natural eram impotentes diante dessa regra absoluta. Em casamento estéril por causa do marido, não era menos imperiosa, para a família, sua continuação. Então um irmão ou parente do marido devia substituí-lo, e a mulher era obrigada a entregar-se a esse homem. A criança nascida dessa ligação seria considerada como filha do marido e continuadora do seu culto (COULANGES, 2006; 56).
Surge também a adoção, cujo princípio desse direito baseava-se na necessidade de perpetuar o culto doméstico. Na religião doméstica os laços de parentesco não eram somente sanguíneos, mas, principalmente religiosos, laços estes chamados pelos romanos d“agnação”.
O casamento foi, de fato, a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica. Através do casamento, a mulher abandona a religião doméstica dos pais para seguir a religião do marido.
2.1 Origem e natureza do poder paterno entre os antigos
O pai era a maior autoridade na família, e sua autoridade advém das crenças religiosas. É ele quem dispõe sobre os destinos da esposa, dos filhos e filhas. As leis gregas e romanas conferiam ao pai de família o poder absoluto e ilimitado. Possuía o direito de reconhecimento dos filhos, de repudiar a mulher, de casar a filha e até mesmo de vender um filho ou matá-lo.
2.2 O direito de sucessão
O direito de sucessão se origina também a partir da religião doméstica, na qual o filho sendo o continuador do culto herda os bens. Entre o pai e o filho não existe nem doação, nem legado, nem mudança de propriedade. Se um homem morre sem filhos, o herdeiro será sempre pertencente à linhagem masculina do defunto, e nunca à linhagem feminina (sucessão colateral).
Assim, compreende-se que o culto aos mortos era o ponto central da tradição religiosa dos antigos e, o direito de família da época justificava-se em função da garantia da continuação deste culto, para o qual as leis vigentes legitimavam toda prática contrária àquilo que hodiernamente denominam-se direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
3 A família do século XIX, contexto social de O Cortiço
Para a maioria dos brasileiros a família, o estudo, o trabalho, a religião, o dinheiro e o lazer têm respectivamente nesta ordem, diferenciados níveis de importância, apesar de a maioria enfatizar a grande importância da família e quererem ter filhos algum dia, não demonstram a mesma simpatia pelo casamento que as gerações anteriores datadas do início do século XIX até o fim do século XX. Afinal, esta instituição representava poder, segurança e respeitabilidade.
O padrão da família brasileira da primeira metade do século XIX até a primeira metade do século XX era constituída por um pai, mãe e filhos. Os integrantes da família brasileira deste período eram comandados por um pai e esposo contido no choro e na demonstração de sentimentos, eram duros e jamais demonstravam fragilidade, nem receios. Antes o homem era formado para ser mais racional, e menos emocional o que dificultava o relacionamento afetivo. Este ensinamento sobre a firmeza masculina para dirigir o lar era ensinado de pai para filho, sempre reafirmando os ideais de filhas casando-se cedo para seguir os passos da mãe, uma mulher frágil, submissa, contida e respeitável. Os casamentos celebrados durante o século XIX eram uma opção da elite branca que tentava manter o prestígio e a estabilidade social limitando os casamentos a mitos quanto à cor, honra, riquezas e religião, mas este quadro não era tão rigoroso quando se tratavam da classe baixa da população. Muitas vezes os casamentos eram arranjados, mas a legalização da união para a formação de uma nova família dependia do consentimento paterno, cuja autoridade era legítima e incontestável, era de sua competência decidir e até determinar o futuro dos filhos sem lhes consultar as preferências, sendo que em alguns casos os noivos jamais haviam se visto, comunicado ou tocado. Os filhos que se rebelavam e não aceitavam a dominação paterna eram sempre castigados, deserdados e até expulsos de casa.
Devido às poucas opções de escolha, restava à mulher o casamento onde a mesma representava a proteção na família e tinha a obrigação de ensinar a decência e educar os filhos. Ao marido era de competência zelar pela segurança e conforto material da família, sendo isto válido para todas as classes sociais. O amor, a estima, a dedicação e gratidão eram relevantes nos casamentos principalmente dos mais pobres, o que ocasionava muitas vezes em maus tratos contra a mulher e os filhos. A única preocupação do pai era em alimentar e quando estes eram de classes mais abastadas fornecer um bom estudo aos filhos homens, às mulheres apenas lhes eram ensinados as atividades domésticas, uma língua estrangeira e como uma dama deveria se comportar e vestir-se, sempre de maneira austera e honrosa. Todo o século XIX foi marcado pela repressão do pai ao resto da família que não desfrutava do direito de opinar em situação alguma sobre o próprio futuro ou expor sua opinião sobre seus gostos, desejos e anseios.
Com a Revolução industrial e com a revolução feminista, o posicionamento das mulheres mudou radicalmente em menos de meio século, e mesmo que com passos incertos e vacilantes provocou uma reorganização da sociedade e levou aos homens a necessidade de repensar seu papel. A exemplo das mulheres estrangeiras, que com a segunda guerra mundial foram obrigadas a saírem de casa e trabalhar em fábricas, pois com os homens na guerra em frente de batalha, as mulheres tomaram conta da produção industrial de armamentos, munições, roupas e alimentos, influenciando assim a mulher brasileira que sofreu os impactos da guerra também aqui no Brasil. Essa mudança radical afetou o comportamento da mulher na família e o homem por sua vez foi presenteado com espaços afetivos mais amplos. A partir de meados do século XX foi permitido ao homem desfrutar de uma relação conjugal e de pai harmoniosa e permissiva. A vida econômica passou a ser compartilhada e o ambiente organizacional suavizou-se. O homem perdeu o domínio absoluto sobre a chefia da família e todo o autoritarismo decorrente disso.
3.1 Relação entre a Obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e o Direito de Família
Aluísio Azevedo adota uma análise materialista da vida e das relações sociais. Os componentes de “O Cortiço” formam um vasto painel da sociedade do Rio de Janeiro, nos meados do século XIX. A obra é precursora dos problemas sociais que enfrentamos hoje na sociedade, como o crescimento desordenado nas favelas onde moram legiões de excluídos cheios de vícios, e que apresenta toda a sorte de patologias sociais, um mundo doentio de traições sórdidas, violências sexuais, relacionamento lésbico e homossexual.
Pois bem, todos esses fenômenos sociais descritos na obra de Aluísio Azevedo, há dois séculos, especialmente, àqueles relacionados ao direito de família, encontram particular similaridade com os institutos vigentes atualmente, amparados na Constituição Federal e Código Civil de 2002, porém, como vimos no tópico anterior, o perfil da família brasileira era outro e de lá para cá muitas mudanças ocorreram neste conceito.
Nesse sentido, podemos identificar na obra, por exemplo, a relação que João Romão detinha com a escrava Bertoleza, o qual nos dias atuais caracteriza-se como União estável (art. 1521, CC, 2002) e que daria a escrava maior segurança na relação, inclusive no que se refere ao patrimônio trazido para a relação, ou seja, observação do regime de bens.
O casamento também é bastante evidenciado no livro e, conforme rezava a sociedade da época, continha a exclusividade da forma única de constituição legítima de família para o qual deveria durar para sempre se evitando ao máximo uma possível separação ou divórcio, haja vista que estes caracterizavam uma vergonha perante a sociedade, especialmente, a sociedade burguesa. Exemplo disto, era a relação matrimonial de Miranda e Estela, onde mesmo ciente do adultério da esposa, o marido não se separa para não perder a fortuna conseguida em função do dote da esposa. Atrelada a esta questão do casamento está a situação de Zulmira, que traz à tona a discussão sobre a legitimidade dos filhos havidos dentro ou fora do casamento.
No mais, encontramos também na obra exemplos de relacionamentos homossexuais representados através das personagens Pombinha, Léonie e Albino. Tais relacionamentos suscitam diversas discussões no âmbito jurídico contemporâneo acerca da legitimidade dessas uniões entre pessoas do mesmo sexo, a sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da homossexualidade. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma social, sendo renegada à marginalidade, por se afastar dos padrões de comportamento convencional.
4 Família e Constituição Federal de 1988
A família contemporânea é, pois, sob a perspectiva constitucional, uma família plural, e não singular. Segundo o professor Luiz Edson Fachin, a família saiu “da estrutura unitária, hierarquizada e transpessoal, houve migração para uma família plural, igualitária e eudemonista, um novo paradigma da conjugalidade”. Significando dizer que a família do novo milênio sob o aspecto estritamente jurídico continua a ser a base da sociedade, recebendo proteção especial do Estado, como elemento essencial de formação da sociedade.
Nesses aspectos, outras estruturas e arranjos, segundo o legislador constitucional, recebem também a proteção especial do Estado. Aí se encontram os arranjos da chamada união estável de um homem e de uma mulher, que a legislação referencia como sendo aquela formada pela convivência, estável, duradoura, pública e contínua, com a intenção de constituição familiar; ou mesmo aqueles arranjos formados por qualquer um dos pais e seus descendentes, e por isto mesmo chamados pela doutrina de núcleos monoparentais, acham-se todos eles reconhecidos como arranjos as serem protegidos pelo Estado, nos termos do art. 226,§§ 3º e 4º, da Constituição Federal.
Mas não é só neste aspecto que a família contemporânea sofre mudanças. O princípio da dignidade humana, constante da Constituição Federal, em seu art. 1º, inciso III, leva também à compreensão da mudança interna da família, na qual, a igualdade de seus membros se manifesta. Com isto fica derrubada a hierarquia que predominava no passado, quando o homem exercia papel preponderante com “chefe de família”, cabendo à mulher o papel de colaboradora e, no início do século passado, até mesmo de submissão; seja ainda nas relações dos filhos, que agora têm direitos igualitários, conforme se vê do § 6º, do art. 227, da CF/88, não se admitindo mais qualquer forma discriminatória entre os mesmos, além de deixarem de ser “propriedades” dos pais, por eles a tudo se sujeitando, em face do pátrio poder que admitia até o castigo, desde que moderado.
Nessa nova família, impera a preocupação com a felicidade individual de seus membros, sobrepondo-se, assim, àquela ideia do passado, de que a instituição deveria prevalecer sobre todos os interesses individuais. Agora, a família não é mais transpessoal, ao contrário, ela é eudemonística, termo este que segundo o professor João Baptista Villela, significa que cada pessoa procura na família a sua própria realização, isto é, seu próprio bem-estar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, apesar de todas as garantias constitucionais aqui relatas, o que se observa hoje na família do novo milênio é um verdadeiro descompasso entre os movimentos de busca do respeito à liberdade individual – liberdade esta que o próprio Estado assegura – para efetivação do sonho da felicidade e a incessante interferência do estado nesta individualidade, procurando cercar todas as formas, situações e conseqüências possíveis da busca deste sonho um paradoxo. Neste ponto, observamos, então, que o Código Civil de 2002, cujo projeto teve início na década de 1970, desconhece, em grande parte, estas mudanças sociais e até constitucionais, e insiste na estrutura familiar pautada pelo casamento, como quase único meio de constituição da família. Basta verificar que grande parte de sua estrutura no contexto do livro da família desenvolve-se em torno da família matrimonializada, desconhecendo os demais modelos de família, apenas de forma breve regulamentando alguns aspectos da união estável.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Jaraguá do Sul – SC: Editora Avenida, 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988
Código Civil (2002).— Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
COULANGES, Fustel de. Trad. Jean Melville. A Cidade Antiga. São Paulo: Martim Claret, 2006.
FACHIN, Luiz Edson, O outro ninho: mudança de paradigmas; do tradicional ao contemporâneo. Revista Jurídica Del Rey. Belo Horizonte, n. 7 jul./dez. 1999, p. 12.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado, RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Manual de direito das famílias e das sucessões. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2010.
VELOSO, Zeno. Homossexualidade e direito. Jornal O Liberal. Belém do Pará, 22 maio 1999.
VILLELA, João Baptista. Família hoje. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.71-72.
Acadêmico em Direito pela Faculdade AGES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Arquimedes Geam Oliveira. Família contemporânea: a profunda transformação do direito das famílias ocasionado pela Constituição Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37533/familia-contemporanea-a-profunda-transformacao-do-direito-das-familias-ocasionado-pela-constituicao-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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