“A freqüência dos suplícios é sempre um sinal de fraqueza ou indolência no governo”[1].
O presente texto visa abordar a discrepância que existe entre os parâmetros do preceito constitucional da presunção de inocência e a realidade prática, que se mostra excludente e cuja sanha punitiva resvala sobre pessoas que não sofreram condenações com trânsito em julgado.
Deste modo, quando se responde a um processo, muitas vezes o acusado perde a sensação de pertencimento ao meio em que vive, pois é visto como a própria personificação do ilícito e já é punido pela exclusão da sociedade, que o considera um perigo, mesmo antes de uma condenação definitiva.
Nesta senda, é importante refletir sobre as condutas praticadas, pois quando se olvidam as garantias constitucionais, por consequência, se viola um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Em virtude de todo um processo evolutivo que passou o Brasil, suportando momentos difíceis com a fase ditatorial, resolveu-se descrever na Constituição Federal de 1988 o máximo de direitos e garantias possíveis, com o fito de que violações gritantes ao texto pátrio não fizessem mais parte da realidade cotidiana.
Nesta senda, em seu art. 5º, LVII, temos que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Desta maneira, o princípio da presunção de inocência quer dizer que, segundo a norma superior, não se deve rotular o indivíduo que seja indiciado ou acusado em um processo criminal, visto que sobre ele impera a máxime de que ninguém pode figurar como culpado se não houver sido finalizada a completa estrutura de formação de sua responsabilidade penal.
Conforme preconiza o Superior Tribunal de Justiça, no julgado abaixo, visualizamos o seguinte:
Não podem ser considerados, para caracterização de maus antecedentes, má personalidade ou má conduta social, inquérito policial, ação penal ainda em andamento e ação penal com extinção da punibilidade, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência (STJ, HC 122204 CE 2008/0264498-5, Rel. Ministro Jorge MUSSI, Dju 18/10/2010).
Neste julgado percebemos que situações cujo ciclo de formação judicial não se concretizaram, como inquéritos ou mesmo ações penais, não podem ser valoradas em desfavor da pessoa que está sentada no banco dos réus, contudo, o tratamento legal e jurisprudencial caminha por um viés, mas a sociedade caminha por um polo oposto a tudo o que foi descrito.
Isso porque o espaço social da realidade, que sofre grandes influências midiáticas, alardeia que, na verdade, não existe um cidadão sendo investigado e prefere tornar o suspeito em culpado em frações de segundos.
Deste modo, expectativas constitucionais são frustradas e no lugar de haver a consideração da existência de uma pessoa presumivelmente inocente, a vivência prática assevera que o ser humano se transmuda para ser enquadrado como um ser abjeto e rejeitado por seus pares.
2 A Sociedade Excludente
Quando se fala em inclusão social e ressocialização estamos diante de dois mecanismos que poderiam garantir a dignidade humana, se os mesmos não fossem, apenas, falácias de um corpo social que hodiernamente prefere punir a estabelecer apoio.
Young (2002, p. 103), aduz que:
O modo de exclusão é, consequentemente, diferente do passado e corresponde às realidades do presente. Ele não se apresenta como um botão de ligar/desligar de inclusão ou exclusão: ou você está dentro da sociedade ou você não está. Antes, o que há é um processo de deslocamento em curso através de toda a sociedade, pois a exclusão é um gradiente que se estende diretamente da capacidade de crédito dos prósperos até o grau de periculosidade dos encarcerados.
Neste bojo, é indispensável ter em mente que a sociedade exclui o encarcerado, o indiciado e o réu porque os enquadra como inimigos dos ideais de uma realidade que sequer chegou a existir, o visualiza como um sujeito que compromete o seu bem estar e o seu padrão de vida.
Sendo assim, pela configuração de um modelo individualista só enxergamos a nós mesmos e esquecemos que, do outro lado, também existe um ser humano com anseios e que está tendo seus direitos tolhidos sem qualquer contraditório, vez que quando a sociedade utiliza a espada de Dâmocles, ela não faz a separação de quem já respondeu a um processo com trânsito em julgado, daquele que simplesmente está sendo investigado.
Desta forma, observa-se uma espécie de segregação sem fundamentação jurídica e cujo resultado enseja a limitação de direitos e o desrespeito a premissas básicas de um Estado Democrático.
Quando são feitas pesquisas de opinião, costuma-se ouvir que haveria uma maior confiança na justiça se as leis fossem cumpridas.
Sob essa perspectiva, é interessante notar que a vontade social para o cumprimento das leis só existe no momento em que é necessária a punição de um crime, mas se apresenta de maneira diversa quando deve haver um respeito para quem está sendo investigado em um processo criminal.
Nesta senda, não deveriam ser empregados dois modos de enxergar a lei, pois como alardeia Ihering (2002, p.20):
"O direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso, a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a Justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança.”
Deste modo, o princípio da presunção da inocência por ser de uma importância incomensurável deveria estar no centro do interesse social, pois é premissa constitucional de garantia ao respeito do indivíduo e, por isso, deveria ter mais valor do que pretensões sancionatórias desmedidas.
O ser sempre deve ser mais importante do que a simples suspeita sem amparo legal.
Desta maneira, uma sociedade que não respeita a sua lei superior promove a “erosão da consciência constitucional”[2] e desconstrói as bases de um Estado Democrático de Direito que deveria ser fundamentado da dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO
Uma sociedade excludente é formada na medida em que o individualismo passa a ser a medida essencial e se olvidam as garantias constitucionais.
A presunção de inocência, como princípio presente na nossa norma superior, precisa ser respeitada pelo corpo social, visto que a culpa só advém do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Desta maneira, segregar alguém que não foi definitivamente condenado vai contra todos os valores constitucionais e contra os avanços alcançados com o advento da Constituição Federal de 1988.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel e REGO, Davi Uruçu. Funções dogmáticas e legitimidade dos tipos penais na sociedade de risco. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, jul-dez, p. 182-201, ano 9. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. 1 ªed, São Paulo: Martin Claret, 2002.
MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho Penal: Concepto y principios constitucionales. 3ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch. 1999.
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: parte geral. V. 1, 6ª Ed, rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2002.
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal, trad. de Muñoz Conde, Barcelona: Bosch, 1972.
. Problemas Fundamentais de Direito Penal, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2002.
. Tratado de Derecho Penal – Parte General, Tomo I. Barcelona: Editorial Civitas, 1997.
SANTOS, Juarez Cirino. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan-ICC, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2 ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
Assessora Jurídica do Núcleo de Tecnologias para Educação-UemaNet. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, Ex-assessora da 1ª Promotoria de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial, ex- bolsista do PIBIC pela UFMA, ex-integrante do Núcleo de Estudos em Direitos Humanos pela UFMA. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Quezia Jemima Custódio Neto da. A presunção de inocência e a sociedade excludente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37543/a-presuncao-de-inocencia-e-a-sociedade-excludente. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.