EMENTA: Direito Constitucional e Administrativo. Moralidade administrativa. Norma-princípio. Valoração legal. Segurança jurídica. Ética da legalidade
Palavras-chaves: Moralidade administrativa. Probidade. Legalidade. Segurança jurídica. Discricionariedade. Poder de escolha. Controle.
A Constituição Federal previu, no caput do art. 37 a moralidade, como um dos princípios regentes da Administração Pública brasileira. Previu também, em diversos outros dispositivos, como art. 5º, LXXIII, art. 37, art. 55, II e art. 85, V, referências à moralidade, em setores específicos. Da forma como foi enunciada no texto constitucional, a moralidade constitui uma norma-princípio, que, como tal, deve ser aplicada na melhor medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Esta aí a maior dificuldade em sua aplicação: como não há um suporte fático e uma sanção correspondente, como ocorre com as regras (por exemplo, art. 121 do Código Penal que diz que matar alguém implica pena de reclusão de 6 a 20 anos), há uma gama variedade de hipóteses em afirmar o que é moral do ponto de vista da Administração Pública, afinal a moralidade se aplica, como todo princípio, mediante ponderação, “na melhor medida possível”.
Alexandre Santos de Aragão[1] diz que a moralidade administrativa é “um dos princípios de mais complexa definição. A expressão verbal de uma noção tão abstrata como a ‘moralidade’ aplicada a uma área específica da atuação humana – a gestão pública – é um desafio”.
A moralidade foi inserida como princípio setorial em diversas leis, abrindo espaço para o controle da Administração Pública, mediante a valoração do que é, ou não, moral na sua gestão.
O art. 9º da Lei nº 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade, aponta o que entendeu como infrações contra a probidade administrativa; o art. 4º da Lei nº 8.429/92 tem a moralidade como regra de conduta do agente público, que pode ser sancionado, se não a observar, com as penas do ato de improbidade; o art. 3º da Lei nº 8.666/93 tem a moralidade como critério de julgamento de proposta nas licitações públicas; o art. 2º, IV, parágrafo único, da Lei nº 9.784/99 prevê a moralidade como parâmetro de atuação do Poder Público etc.
São muitas as leis que reproduzem, em nível infraconstitucional, o princípio da moralidade. Reside aí a importância de definir o conteúdo jurídico desse princípio e, por consequência, das formas como pode a Administração Pública ser controlada por ele.
Juarez Freitas[2] sustenta que, a partir da previsão da moralidade e da probidade no texto constitucional (art. 5º, LXXIII, art.37, art. 55, II e art. 85, V da CF) “resultam superadas antigas posturas que consideravam os juízes éticos como inteiramente desconectados ou estranhos à apreciação jurisdicional”.
Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello[3] defende que, de acordo com o princípio da moralidade, “a Administração e seus agentes tem de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição”.
É inegável, portanto, a aproximação entre Direito e Moral, que implica juízo de valor sobre os atos da Administração Pública. Mas, é importante definir quando e por quem é feita a valoração do que é moral sob o ponto de vista administrativo, sob pena de invadir o mérito da função administrativa.
A moral é variável no tempo, no espaço e nos diferentes grupos sociais. Definir seu conteúdo é uma experiência empírica. Mas, esse casuísmo, não é compatível com a segurança jurídica, lealdade e boa-fé que se espera dos atos do Poder Público, dos quais deve emanar uma previsibilidade sobre a qual as pessoas orientaram suas condutas. Eis o perigo da indefinição do conteúdo jurídico desse princípio.
Sob a Constituição de 1988, a aplicação do princípio da moralidade deve partir valorações axiológicas do que é ou não aceitável feitas pela lei, expressão da vontade geral, que faz suas próprias escolhas e ainda põe a salvo, numa legalidade qualificada, as decisões mais fundamentais da República, nos direitos e garantias fundamentais, que estão protegidos inclusive das vontades das maiorias episódicas que se formam, de tempos em tempos, no Parlamento.
Mesmo assim, muitas vezes, a lei consagra cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, que abrem novo espaço de valoração e decisão. Nesse cenário, compete, em primeiro lugar, à Administração Pública densificar os conceitos de prognose, que são aqueles “cujo preenchimento demanda uma avaliação de pessoas, coisas ou processos sociais, por intermédio de um juízo de aptidão”[4]. Em outras palavras, o administrador público, mediante critérios técnicos sustentáveis[5], apontará a solução que, a seu entender, melhor se ajuste à consecução do interesse público. E, embora possa existir possibilidade de decidir em mais de um sentido, cabe apenas ao órgão do Poder Executivo, órgão legitimado pelo voto popular, a escolha.
A aplicação do princípio da moralidade pauta-se, portanto, pela legalidade. Esse é o espaço por onde penetram e por quem são feitos os juízos valorativos dentro das escolhas possíveis. A propósito do tema, no julgamento da ADI nº 3026-4/DF, o Ministro Eros Grau, delimitou o conteúdo do princípio da moralidade administrativa. Segundo ele
“a sua consagração como princípio no plano constitucional [art. 37 da Constituição do Brasil] e no plano infraconstitucional [art. 3º da Lei nº 8.666/93, v. g] não significa uma abertura do sistema jurídico para a introdução, nele, de valores morais.
O que importa assinalar, ao considerarmos a função do direito positivo, o direito posto pelo Estado, é que esse põe de modo a construir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, a ela conferindo, concomitantemente, a forma que a constitui.
Nessa medida, o sistema jurídico tem que recusar a invasão de se próprio a regras estranhas a sua eticidade mesma, advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil, ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas.
Ocorre, no entanto, que a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade. E não pode ser outra, senão esta, de modo que a afirmação pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do princípio da moralidade, o situa, necessariamente, no âmbito desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema.
Assim, compreenderemos esteja confinado, o questionamento da moralidade da Administração, nos lindes do desvio de poder ou de finalidade. Qualquer questionamento para além desses limites estará sendo postulado no quadro da legalidade pura e simples. Essa circunstância é que explica e justifica a menção, a um e a outro, a ambos os princípios, na Constituição e na legislação infraconstitucional”.
Num dos melhores estudos sobre o assunto, Marcos Cammarosano[6], conclui que “[a] moralidade administrativa tem conteúdo jurídico, porque compreende valores juridicizados, e tem sentido a expressão ‘moralidade’ porque os valores juridicizados foram escolhidos de outra ordem normativa do comportamento humano: a ordem moral. Os aspectos jurídicos e morais se fundem, resultando na moralidade jurídica”.
Portanto, não é correto entender que é imoral o ato do Poder Público que ofende a moral comum, pois o conteúdo do que é essa moral é volátil, o que ensejaria submeter o cidadão, diante das estruturas de poder do Estado, ao sabor das interpretações de quem, no comando, entende ser moral ou imoral. Não há outra forma de preencher o conteúdo da moralidade administrativa senão entende-la dentro da própria ética da legalidade.
[1] ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 71.
[2] FREITAS, Juarez. “Do princípio da probidade administrativa e sua máxima efetivação”, RIL 129/63-64, Brasília, jan-mar/1996
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29ª ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 122
[4] MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 2004, p. 77
[5] KRELL, Andreas Joachim. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos juridicamente indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2004, p. 42
[6] CAMMAROSANO, Marcos. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Forum, 2006, p. 77
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Ricardo Marques de. Primeiras considerações sobre o conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37652/primeiras-consideracoes-sobre-o-conteudo-juridico-do-principio-da-moralidade-administrativa. Acesso em: 26 dez 2024.
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