SUMÁRIO: 1. Introdução. Evolução do GATT/47 ao GATT/OMC; 2. Conceito Legal de Dumping; 3. Dumping nas Associações Regionais – O caso MERCOSUL; 4. Processo de Integração e o GATT 1994 - Interpretação do Artigo XXIV; 5. Eliminação das Normas Antidumping no Comércio Intrabloco; 6. Legislação Brasileira sobre Dumping; 7. Situação Atual da Defesa Comercial no MERCOSUL; 8. Considerações Finais; 9. Bibliografia.
RESUMO: A nova ordem internacional revelada após a segunda guerra mundial trouxe mudanças nas relações internacionais, transformando o cenário econômico mundial. Os países têm se agrupado economicamente sob a forma de blocos econômicos. A regulamentação deste “jogo” de mercado por meio do direito da concorrência é fundamental. O dumping ocorre com a exportação para outro país de produto a preço inferior àquele praticado no mercado interno do país de exportação visando à dominação do mercado. O dumping só é considerado nocivo quando capaz de causar prejuízos à indústria doméstica do país importador. Tal prática também é obervada no âmbito do MERCOSUL, revelando-se um óbice ao desenvolvimento das relações comerciais intra-bloco.
Palavras-chave: Dumping, Antidumping, MERCOSUL, GATT/OMC, concorrência, integração regional.
1. INTRODUÇÃO. EVOLUÇÃO DO GATT/47 AO GATT/OMC
A liberalização do comércio exterior é tema em voga a bastante tempo, pois desde 1947, com a conclusão do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), o referido preceito, já constitui um dos principais objetivos da comunidade internacional, sobretudo dos países desenvolvidos. A discussão em torno do tema se acentuou após a 2ª Guerra Mundial com o quadro de profundo protecionismo dos países ricos, com vistas à proteção de suas indústrias e à garantia de emprego aos seus cidadãos.
Mais precisamente, antes do final da guerra, em 1944, um acordo firmado em Bretton Woods pretendeu reestruturar a economia mundial pós-guerra. Previa-se a criação de três organismos internacionais que exerceriam papel fundamental na nova ordem. O FMI (Fundo Monetário Internacional) que seria responsável pela estabilidade cambial e pela assistência aos países que atravessassem crises financeiras; o BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento) ou Banco Mundial, cujo objetivo inicial era prover financiamentos para os países devastados pela guerra e, por fim, a OIC (Organização Internacional do Comércio), com escopo de promover acordos comerciais multilaterais para a liberalização do comércio mundial. Depois do fim da guerra, as duas primeiras instituições foram criadas de acordo com o estabelecido em Bretton Woods (no caso do Bando Mundial, posteriormente, estendeu sua atuação aos países em desenvolvimento). A Organização Internacional do Comércio, no entanto, nunca chegou a existir.
De fato, o GATT/47 surgiu do insucesso da OIC que, inicialmente, seria apenas parte das regras sobre comércio internacional, criado pela Carta de Havana, como primeiro passo viabilizador da OIC. Entretanto, devido ao malogro, o GATT pendurou no tempo para suprir-lhe as atribuições, entrando em vigor por meio do “Protocolo de Aplicação Provisória”, em meados de 1948, com vinte e três países subscritores[1].
O Artigo VI do GATT 1947 definiu a prática de dumping como a introdução no mercado importador, de mercadoria abaixo do preço normal, no país exportador, sendo reprimível quando causasse dano a indústria doméstica do país importador.
Com o passar do tempo, alguns dispositivos do GATT sofreram alterações ou foram completados durante os ciclos de negociações (inclusive o Artigo VI, que tratou de dumping), conhecidos por “rounds”. Contudo, a verdadeira preocupação dessas negociações era a de obter melhores ofertas tarifárias dos países contratantes e, se possível a eliminação das barreiras não-tarifárias.
Os ciclos de negociações ocorridos desde a criação do GATT foram em número de oito: Genebra Round (1947), Annecy Round (1949), Torquay Round ( 1950-1951), Genebra Round (1955-1956), Dillon Round ( 1959-1962), Kennedy Round (1964-1967), Tóquio Round (1973-1979) e Uruguai Round (1986-1993), ao fim dos quais o GATT já contava com cerca de 125 partes contratantes.
Dentre esses ciclos, destaca-se a Rodada Uruguai, por conta das modificações substanciais introduzidas na estrutura jurídica concebida pelo GATT. De fato, com a assinatura da Ata final de Marraqueche por 115 estados[2], em abril de 1994, cria-se, enfim, uma verdadeira organização internacional, a OMC (Organização Mundial do Comércio) que se torna a protetora dos acordos multilaterais de comércio, incluído o GATT. O GATT de 1947, renovado e ampliado, torna-se o GATT 1994, alargando os setores do comércio internacional que regula, incluindo-se a partir de então: o comércio de bens, o comércio de serviços e os aspectos de propriedade intelectual relacionados ao comércio.
Ao fim, depois de longas negociações, as delegações presentes aprovaram os textos da Rodada Uruguai, incluindo o AARU (Acordo Antidumping da Rodada Uruguai), que passaremos a comentar.
O Acordo Antidumping, adotado na Rodada Uruguai, em seu Art. 2º, define dumping como sendo a fixação arbitrária, pelo exportador, de um preço de venda à exportação para um determinado país, inferior ao seu valor normal[3]. Vejamos o texto do referido acordo:
Artigo 2
Determinação de Dumping
1. Para as finalidades do presente Acordo, considera-se haver prática de dumping, isto é, oferta de um produto no comércio de outro país a preço inferior ao seu valor normal, no caso de o preço de exportação do produto ser inferior àquele praticado, no curso normal das atividades comerciais, para o mesmo produto quando destinado ao consumo no país exportador.
Dada à definição legal do que venha a ser o dumping, é pertinente, neste momento, passarmos a descrever algumas das características deste conceito, o que fazemos no próximo tópico.
2.1. CARACTERÍSTICAS DO CONCEITO
É de fundamental importância para a melhor compreensão do conceito de dumping (de início, bastante ambíguo) adentrarmos o terreno de outros conceitos, tais como “valor normal”, “preço de exportação” e “margem de dumping”. Vejamos.
O valor normal do produto é aquele efetivamente praticado para o produto similar nas operações mercantis normais que o destinem a consumo interno no país exportador, isto é, o preço praticado no país de origem da mercadoria. Todavia, se este país não possuir uma economia de mercado, ou se neste país as vendas do produto em causa corresponderem a menos de 5% (cinco por cento) das vendas ao país de exportação, o preço de exportação será comparado ao praticado em terceiro país (é o conhecido método de terceiro país); na falta deste, será construído um preço com base no custo de produção do produto no país de origem, acrescido de quantia razoável que englobe os custos administrativos e de comercialização, além do lucro.
Para que a investigação siga as normas estabelecidas no âmbito da OMC e seja realizada de maneira suficiente, é necessária a análise de outros conceitos do caso em questão. Logo, o valor normal, o preço de exportação e a margem de dumping devem ser prontamente estabelecidos, pois dão as informações básicas para o início da investigação.
Depois de estabelecer o conceito de valor normal, mister a definição do preço de exportação que é aquele efetivamente pago ao vendedor pelo produto por ele exportado. Tal preço é, em princípio, ex fabrica (sem impostos) e à vista.
Depois de comparado o preço normal do produto no mercado interno e o preço de exportação, chegar-se-á à margem de dumping, que é exatamente a diferença encontrada na comparação desses valores. Na determinação da margem de dumping o AARU oferece aos seus Membros a possibilidade de escolha de dois métodos: (a) a comparação entre médias ponderadas (inclui quantidades vendidas), que leva em conta os preços médios ponderados do mercado interno e do mercado exportador (esse é o método adotado pela legislação brasileira) e; (b) a comparação entre as transações, que considera as vendas no mercado interno imediatamente anteriores às vendas praticadas para o mercado de exportação.
No entanto, quando essa diferença decorrer de diferenças entre os elementos que naturalmente afetam os preços (como condições de venda, tributação, quantidades, características físicas do produto, etc) deverá haver tolerância do Membro importador.
Não obstante se apresentar mais completo do que o Código Antidumping anterior de 1979 (adotado na Tóquio Round), autores como Ana Cristina Paulo Pereira criticam o AARU, por ter deixado de fora o tratamento de outras formas de dumping, notadamente o dumping social, o dumping monetário e o dumping sobre os serviços, limitando-se, portanto, ao dumping ocasionado pela fixação artificial de preço sobre mercadorias exportadas[4].
2.1.1. O DANO À INDÚSTRIA DOMÉSTICA
As medidas antidumping têm por escopo a eliminação dos nefastos efeitos que a prática desleal do dumping causam à indústria nacional. No entanto, nos termos do Artigo VI do GATT 1947, a mera exportação de produtos a preços mais baixos do que aqueles praticados no mercado do país importador não é, de per se, causa que justifique a aplicação de tais medidas.
No AARU estabeleceu-se que é imprescindível que exista dano material (material injury) ou ameaça de dano matéria a uma indústria nacional já estabelecida em território de uma das partes contratantes, ou atraso real na implantação de uma nova indústria nacional para que as aludidas medidas sejam aplicadas.
Exige-se, ainda, que exista o nexo de causalidade entre o preço de exportação e o prejuízo causado a indústria doméstica. Se as razões do prejuízo forem outras que não a eventual importação de produtos contaminados por preço de dumping, o nexo causal não se confirma e os mecanismos antidumping não podem ser utilizados.
Percebe-se, a propósito, que o AARU especifica as condições em que ocorre o dano material e a ameaça de dano, mas não esclarece em que condições se reconhecerá o atraso na implantação da indústria nacional.
2.2. TIPOS DE DUMPING
Neste século, foi o economista Jacob Viner quem, em sua obra Dumping, a Problem in Internacional Trade, especificou os traços marcantes do comportamento comercial que passou a ser conhecido por dumping. Segundo o autor, o dumping é identificado essencialmente pela discriminação de preços entre compradores em diferentes mercados nacionais. Por isso, pode ser considerado o fundador da concepção contemporânea do fenômeno.
De acordo com Viner, o dumping poderia ser: (I) esporádico, que ocorreria em situações excepcionais, como da necessidade de vender excesso de estoques, e não traria implicações negativas; (II) permanente, que seria aquele mantido por longo tempo, e poderia ocorrer quando o mercado exportador fosse protegido e o mercado importador fosse competitivo. Nesse caso, ele acreditava que a vantagem para o consumidor do mercado importador seria, a longo prazo, superior aos danos provocados à indústria nacional do mercado importador e, por fim; (III) de curto prazo (short run). Esse, sim, teria um caráter negativo, uma vez que haveria um argumento econômico contra dumping quando a indústria local sofresse prejuízos maiores do que os benefícios trazidos aos consumidores.
Apesar dessa distinção, a legislação antidumping não distingue o tipo de dumping que está sendo praticado, para efeitos de aplicação das medidas correspondentes.
Nessa linha, os tipos de dumping adotados a partir da observação do art. VI, do GATT, seriam dois: o dumping não condenável, quando não redundam em efeitos negativos para indústria estabelecida no território de um país; e o dumping condenável, quando implicar dano à indústria doméstica e o nexo causal entre o dano e a prática de dumping.
Por outro lado, é tema corrente do comércio internacional a ampliação do conceito de dumping para caracterizar a concorrência internacional que se utiliza das diferenças estruturais entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Nesse sentido, fala-se em dumping social, dumping cambial e dumping ambiental. Este último aconteceria quando da transferência de uma indústria, relacionada à produção de poluentes, de um país desenvolvido para país com exigências menores de proteção ambiental, com consequente redução de custos e incremento ilegítimo da competitividade.
O dumping cambial se realizaria com a manutenção artificial pelos governos nacionais, de baixas taxas de câmbio, reforçando a competitividade dos preços de exportação e obstruindo as importações.
Por fim, o mais polêmico dos conceitos se refere ao dumping social, que se efetuaria por meio de vantagem comparativa obtida da superexploração de mão-de-obra nos países em desenvolvimento. O eixo dessa discussão é o de que o fenômeno da “globalização” não trouxera as garantias sociais proporcionadas pelo Estado do Bem-Estar aos trabalhadores dos países em desenvolvimento, mas antes insegurança e redução de garantias aos trabalhadores dos países desenvolvidos, ameaçados pela onda de desemprego e pela transferência geográfica da produção industrial.
Ressalta-se que apesar de ser o tema da mais profunda atualidade na agenda do comércio internacional, a conceituação do dumping estendida aos aspectos socioeconômicos diferenciados dos países ricos e pobres não tem respaldo, atualmente, em base normativa qualquer, diferentemente do dumping propriamente dito, relacionado à imposição artificial de preços pelo país exportador. Essa omissão normativa tem despertado inúmeras e severas críticas de autores com respeitável envergadura intelectual, como acima observamos.
2.3. NATUREZA JURÍDICA DO DUMPING
Adentramos, nesse momento, em seara bastante delicada e controversa que diz respeito à natureza jurídica do instituto do dumping, porquanto, acentuadamente variadas as opiniões sobre a matéria.
Podemos aventar algumas hipóteses sobre natureza jurídica do dumping. A primeira dela seria considerá-lo como ato ilícito. Ato ilícito na definição de Orlando Gomes é a “[a]ção ou omissão culposa com a qual se infringe direta e imediatamente, um preceito jurídico de direito privado, causando-se dano a outrem”[5]. Aqueles que defendem essa hipótese argumentam que a legislação antidumping sanciona a conduta da discriminação de preços entre o mercado exportador e o importador, isto é, sanciona a prática de dumping.
A dificuldade em se estabelecer o dumping na condição de ato lícito, se explica pelo simples fato de que não é proibido de per se, isto é, somente se torna prática condenável na medida em que afeta a indústria nacional, conforme se depreende no exposto do artigo VI do GATT. E, mesmo que a prática de dumping afete a indústria nacional, as autoridades não serão obrigadas a aplicar as medidas correspondentes (como aconteceria em qualquer outro ato ilícito no direito interno), fazendo-o de acordo com o juízo discricionário de que dispõem. Mais ainda pode haver transação quanto ao montante das contramedidas a serem aplicadas através do compromisso de preço, previsto no AARU. Por tudo isso, exclui-se a possibilidade de categorizar o dumping como ato ilícito.
Poderíamos, por outro lado, considerar o dumping como abuso de poder econômico. Essa possibilidade encontra boa aceitação na doutrina porque apresenta muitas aparentes semelhanças entre o dumping e outras práticas anticoncorrenciais. Esta alternativa não seria possível porque o abuso de poder econômico se explica pela conduta concentradas das empresas concorrentes, ou pela atuação unilateral da empresa com poder de mercado. Em nenhuma dessas situações o dumping ocorre necessariamente, mas ao revés, torna-se mais nítido em mercados demasiadamente concorrenciais.
Além disso, a nossa Lei Antitruste (Lei nº 12.529/2011) exclui expressamente de sua aplicação os casos referentes à prática de dumping e de subsídios, diferentemente das condutas que constituem abuso de poder econômico, todas sancionadas pela Lei mencionada.
Por fim, remanesce a alternativa de categorizá-lo como sendo instituto de Direito Econômico, como fato que legitima a intervenção do Estado na economia. Com isso devem obediência aos princípios do Direito Econômico insertos em nossa Carta Magna. Segundo Welber Barral[6], duas particularidades devem ser destacadas dentro do universo do Direito Econômico:
a) A primeira delas é que o dumping encontra fonte em norma de Direito Internacional Econômico, e não apenas em norma interna de Direito Econômico. Com isso as autoridades terão de cumprir as normas internas em consonância com as normas do Direito Internacional Econômico e, essas mesmas convenções internacionais afetarão a aplicabilidade e interpretação da norma antidumping sob pena de gerar disputa no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.
b) A segunda característica é que a aplicação das matérias antidumping correspondentes se fará com fundamento na eficiência produtiva da indústria nacional. Isto porque a intervenção do Estado na economia deve encontrar fundamento jurídico nos valores sociais expressos nas normas respectivas (que, no dumping, é a eficiência da indústria nacional).
2.4. NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS ANTIDUMPING
Matéria ainda mais controversa e que desperta opiniões tão díspares na doutrina que, por vezes, fica complicado até mesmo ao pesquisador menos parcial tomar um posicionamento pela ambiguidade e confusão dos conceitos. Procuraremos nos limitar, por isso, à exposição das possibilidades encontradas no estudo do assunto.
A natureza jurídica dos direitos antidumping já foi caracterizada como:
1) Sanção a ato ilícito: dentre dos defensores dessa possibilidade encontra-se Aquiles Varanda, que entende serem os direitos antidumping a efetivação da medida sancionatória contra ato ilícito praticado por exportador estrangeiro. Não deve prevalecer essa visão porque, inicialmente, como dissemos acima, o dumping, só por só, não corresponde a um ato ilícito, não sendo capaz de dar nascimento a uma sanção equivalente. Depois, porque somente são aplicados a juízo discricionário do Estado, excluindo-se um dos elementos essenciais da sanção que é a obrigação do Estado em aplicá-la.
2) Tributo: a natureza jurídica de obrigação tributária é a segunda opção de sua classificação. Cabe aqui a indagação se é adequada a sua categorização como tributo. O primeiro problema que surge diz respeito ao fato de não serem instituídos mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Também não existe compulsoriedade na exigência dos direitos antidumping, porque pode ser afastada pelos exportadores estrangeiros seja pelo aumento dos preços (eliminando a margem de dumping), seja pela realização do compromisso de preços com as autoridades administrativas. Por fim, note-se que os direitos antidumping não se submetem aos mesmos princípios aplicáveis aos tributos, quais sejam, a consideração da capacidade econômica do contribuinte e a necessidade de regulamentação por lei complementar.
3) Modalidade não-tributária (paratarifária) de intervenção no domínio econômico: tal classificação foi inicialmente apresentada por Ferraz et al, cuja preocupação imediata era a impossibilidade de aplicação retroativa de tais medidas, se fossem definidas como tributo. Resta saber qual o fundamento constitucional que poderia garantir essa categorização. Na ordem constitucional anterior, existia norma que previa instituição de contribuições para assegurar a intervenção no domínio econômico. A CF/88 não excluiu essa possibilidade, mas limitou-a, de acordo com certos ditames socioeconômicos e princípios jurídicos.
Seu embasamento constitucional se encontra na legitimidade regulatória do Estado, que envolve a função de incentivo econômico, nos termos do art. 174 da CF/88, “verbis”:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
A função de incentivo pode se apresentar como norma condicional (como no caso das normas antidumping), isto é, como condição para que concorrentes estrangeiros tenham acesso ao mercado nacional, para assegurar maiores condições de concorrência aos produtores nacionais. Trata-se, portanto, de norma de acesso, que pode ser encontrada também em outras normas de intervenção semelhante, a exemplo das condições impostas pelo CADE aos concorrentes por meio do compromisso de desempenho, com vistas à aprovação da concentração de empresas.
Quanto à remissão constitucional à forma da lei para regulação da atividade econômica, ressalte-se que as convenções internacionais (como a que instituiu as medidas antidumping) devem ser incorporadas a ordem jurídica interna. De fato, o AARU, foi devidamente incorporado à nossa ordem jurídica, tendo repetido, por meio da lei ordinária 9.019/95, a previsão das hipóteses e procedimentos para apuração da prática anticoncorrencial e aplicação dos direitos antidumping decorrentes.
Concluímos, portanto, reafirmando que, sob a ótica das leis brasileiras, os direitos antidumping não possuem natureza de tributos, sendo correto dizer que possuem natureza de normas de acesso, ou seja, representam imposição paratarifária de intervenção no domínio econômico, fundada na função de incentivo de Estado.
3. DUMPING NAS ASSOCIAÇÕES REGIONAIS – O CASO MERCOSUL
Não temos dúvida que os processos de integração se justificam economicamente num mundo “globalizado” pela melhor alocação de recursos, pela economia de escala proporcionada, pelo aumento de investimento, pela ampliação de mercado e divisão mais eficiente do trabalho, gerando maior concorrência e melhor qualidade na produção.
Igualmente, em seus fundamentos políticos, os blocos de integração aparecem como alternativas aos conflitos regionais e servem para reforçar o poder de negociação dos Estados envolvidos no processo, tanto no âmbito regional quanto em escala internacional,
Mas, não menos evidente é a necessidade cada vez mais premente que sentem os países de se agregarem a outros e constituírem associações econômicas regionais devido ao temor de que o aperfeiçoamento e a evolução dos processos de integração fechem cada vez mais os mercados a países terceiros não membros do bloco econômico. Outrossim, o receio de mecanismos de proteção comercial aplicados eventualmente e de acordo com a concorrência e interesse das associações econômicas (a exemplo das medidas antidumping) se tornou um grande estímulo para que terceiros Estados almejem o “status” de membro de processo de integração.
Nos tópicos seguintes, portanto, discorreremos sobre o tratamento jurídico que vem sendo dado às normas antidumping no âmbito do processo de integração que se desenvolve entre os países do Cone Sul – MERCOSUL – e se existe ou não compatibilidade com os acordos e as convenções internacionais de que são partes os países membros do mercado comum citado, notadamente o GATT/OMC.
4. PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO E O GATT 1994 – INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO XXIV
Iniciaremos este ponto expondo a maneira como são tratados os processos de integração no Acordo Geral de 1994. Esta análise interessa diretamente o MERCOSUL, na medida em que todos os países que o compõem são signatários do referido acordo.
Na estrutura jurídica do GATT 94 os processos de integração regional são tidos como uma exceção autorizada à Cláusula da Nação Mais Favorecida (Artigo I do GATT 94), ou seja, os Estados membros de associação regional não estão obrigados a estender as suas preferências regionais aos demais países da OMC. O Artigo XXIV do GATT estabelece, no entanto, determinadas condições para que esses processos de integração sejam permitidos. Essas condições dependerão da etapa vigente no processo, seja uma área de livre comércio ou uma união aduaneira, de acordo com as definições do Artigo XXIV[7].
Como dissemos, algumas condições devem ser observadas para a realização da integração, tais como ter o escopo de facilitar o comércio entre os territórios constitutivos e não aumentar barreiras contra terceiros Estados. Mais ainda, as barreiras tarifárias não devem ser em média superiores às praticadas antes da integração. Ademais, as restrições ao comércio intrabloco devem ser eliminadas num prazo razoável de tempo. Com efeito, dispõe o Artigo XXIV.8.a(i), do GATT 1994, “verbis”:
Artigo XXIV
Aplicação Territorial – Tráfego Fronteiriço. Uniões Aduaneiras e Zonas Livre Comércio
(...)
8. Para os efeitos de aplicação do presente acordo:
(a) se entenderá por uma união aduaneira, a substituição de um único território aduaneiro por dois ou mais territórios aduaneiros, de maneira que:
(i) direitos aduaneiros e outras regulamentações comerciais restritivas (exceto, quando necessário, as restrições autorizadas nos artigos XI, XII, XIII, XIV, XV, e XX) sejam eliminados sobre substancialmente todo o comércio entre os territórios constitutivos da união ou, pelo menos, no que concerne a substancialmente todo o comércio de produtos originários desses territórios; e, (...) (original sem grifos).
A questão que se coloca agora é a de saber se, de acordo com o dispositivo acima, os Estados membros de uma união aduaneira (tal como o MERCOSUL) estariam obrigados a eliminar as medidas antidumping intrabloco. Afinal de contas, as medidas de defesa comercial constituem claramente regulamentação restritiva do comércio.
Para nós, a questão se apresenta de maneira bastante cristalina e textual. Os Estados membros de uma união aduaneira como o MERCOSUL devem, sim, suprir tais regulamentações restritivas do comércio intrazona, como as medidas antidumping, sob pena de ofensa do dispositivo mencionado do GATT 1994, do qual, frise-se, todos os países do MERCOSUL são subscritores. Nesse sentido, constituiu grande retrocesso o conteúdo da Decisão 13/2002 do CMC, que incorporou à normativa do MERCOSUL o AARU da OMC, para aplicação das medidas antidumping no comércio intrabloco.
Outra questão que se coloca diz respeito à aplicação dessas medidas antidumping ao comércio extrabloco, i.e., contra produtos originários de territórios não membros da associação econômica de integração regional. No mesmo caminho, o Artigo XXIV. 8.a(ii) requer a aplicação “idêntica em substância” dos direitos aduaneiros e outras regulamentações restritivas pelos países membros contra produtos de países não-membros. A exigência de aplicação uniforme dos direitos antidumping se refere apenas às uniões aduaneiras e não abrange as áreas de livre comércio.
Na prática, contudo, essa discussão nunca produziu efeitos concretos, tendo ocorrido a eliminação das medidas antidumping apenas como exceção (v.g., na União Europeia e no Acordo Austrália – Nova Zelândia). Essa tolerância ocorre porque uma imensa gama dos países signatários do GATT/OMC utilizam tais medidas usual e veladamente como importante instrumento de defesa de suas indústrias nacionais ou mesmo do comércio regional.
5. ELIMINAÇÃO DAS NORMAS ANTIDUMPING NO COMÉRCIO INTRABLOCO
5.1. ARGUMENTO ECONÔMICO
Sob o ponto de vista econômico, existe um forte argumento que autoriza a eliminação das medidas antidumping do comércio intrabloco: a redução das barreiras à entrada no mercado. As barreiras comerciais, como sabemos, constituem o fundamento de sustentação do poder de mercado da empresa, o que lhe permite obter lucros monopolistas no mercado exportador, possibilitando a imposição de práticas de dumping no mercado importador.
Por consequência, com a eliminação das medidas antidumping, reduzindo-se, assim, as barreiras comerciais, as condições para as práticas do dumping tornam-se pouco prováveis. Concorrentemente, as práticas desleais de comércio, no mercado integrado, poderão ser sancionadas pela legislação antitrust comum.
Não obstante, encontramos na literatura específica autores como Stewart e Brightbill[8] que dizem que as medidas antidumping, mesmo em processo de integração, continuam “a desempenhar papel crítico”, sobretudo, quando o processo envolve economias muito distintas. Alegam, ainda, outros fatores para a manutenção de tais medidas referentes à exportação, como custo do transporte, o grau de poder de mercado da empresa, as garantias trabalhistas que o país exportador oferece, etc.
Ocorre que essas hipóteses não sugerem um argumento geral, tratando-se de casos práticos, pontuais e excepcionais, que têm maior aplicabilidade, especialmente em função da Regra da Razão.
Por fim, parece-nos que, em verdade, não há maior razão ou fundamento econômico que justifique a eliminação das medidas antidumping do mercado intrabloco se não a vontade política dos países desenvolvidos. É claro que tudo isso deve ser fruto de um momento político favorável e de um processo de negociação que pode se prolongar por um bom tempo.
5.2. ARGUMETO LÓGICO-CONCEITUAL
Se não por questões fáticas e de ordem econômica, do ponto de vista lógico e conceitual, também perde o sentido, num contexto de um mercado comum em formação, falarmos em dumping entre os países-membros (intrabloco), pois não há mais, teoricamente, diferenças entre o preço de exportação e o preço no mercado interno, na medida em que há uma única zona econômica – o mercado comunitário.
No entanto, pode haver no mercado integrado uma prática similar ao dumping: o underselling ou preço predatório (conforme doutrina nacional), isto é, a prática de preço abaixo do custo que prejudica a livre concorrência. Se por um lado torna-se inviável a discriminação de preços entre o mercado interno e o de exportação por se tratar de um só mercado unificado, por outro lado, torna-se possível que a empresa de um Estado-parte, ao praticar o preço predatório, introduza efeitos anticoncorrenciais em outro Estado-parte. Com isso, essa conduta fugiria ao intento da legislação multilateral de regulação antidumping e passaria ao abrigo da legislação de defesa da concorrência do mercado comum.
Por isso, seria interessante que as autoridades responsáveis pela aplicação da legislação comum (seja autoridade nacional, intergovernamental ou supranacional) façam um levantamento preliminar dos casos de dumping aberto entre os países-membros.
Nesse sentido, vale assinalar que “los hermanos” argentinos são os que mais utilizam, atualmente, das medidas antidumping contra os produtos brasileiros no âmbito do Mercado Comum do Sul.
De fato entre 1996 e 2002, a Argentina iniciou 16 (dezesseis) investigações antidumping contra exportações brasileiras, empatando em quantidade com o Canadá e ficando atrás somente dos EUA, com 37 processos de investigações, dois países que historicamente já são usuários frequentes dessas medidas e que, aliás, não compõem conosco um processo de integração com vistas à formação de um mercado comum[9].
Observa-se, portanto, que as medidas antidumping têm se tornado, cada vez mais, eficientes barreiras comerciais não-tarifárias, inclusive entre países que compõem uma associação regional de integração econômica.
5.3. COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS ANTIDUMPING NO COMÉRCIO EXTRABLOCO
No que diz respeito à aplicação das medidas antidumping ao comércio extrabloco, as autoridades, que não mais deverão aplicá-las no comércio intrabloco, terão de levar em conta mais variáveis ao aplicar a legislação antidumping a países terceiros.
Ao se integrarem, os países-membros do MERCOSUL se comprometeram a harmonizar suas políticas comerciais. E um dos pontos centrais dessa harmonização é a existência de legislação comum sobre as práticas desleais do comércio. Deve-se ter em mente que uma prática de dumping contra o mercado de um dos países membros, atingirá todos os demais países integrantes da comunidade, exigindo atuação articulada das autoridades envolvidas.
Isso aumenta a complexidade da aplicação das medidas antidumping que deverá levar em consideração o impacto da prática no mercado comum como um todo, além de analisar a sua repercussão em cada um dos países-membros.
6. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE DUMPING
Firmada em 1º de abril de 1994, a ata final de Marraqueche, contendo acordo constitutivo da OMC e demais acordos sobre temas especifico (como dumping) foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 30 (DOU, 19 dez. 1994) e promulgada através do Decreto nº 1.355 de 30.12.1994 (DOU, 31 de dez.1994).
Em seguida, o Brasil promulgou a Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, regulamentada pelo Decreto 1.602, de 23 de agosto de 1995.
Pode-se afirmar que a legislação brasileira seguiu fielmente as orientações da OMC, de modo que nenhum outro membro questionou sobre sua legalidade no Órgão de Solução de Controvérsias da citada entidade.
Salientamos, por último, que atualmente a legislação brasileira é aplicada tanto para as importações procedentes de Estados-Partes do MERCOSUL, como dos demais membros da OMC, embora existam, na área de integração, alguns instrumentos normativos de base que regulam a matéria de um modo geral. Isso porque a legislação brasileira coincide com a que é aplicada no comércio internacional para os membros da OMC, bem como o MERCOSUL adotou recentemente o AARU da mesma OMC.
7. SITUAÇÃO ATUAL DA DEFESA COMERCIAL NO MERCOSUL
Ab inicio, devemos destacar que as norma gerais do MERCOSUL contidas no Tratado de Assunção estão permeadas por referencias à livre concorrência, como no art. 1º, que prevê “a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados-Partes”; no art. 4º, que determina que os Estados aplicarão suas legislações para inibir importações influenciadas por “subsídios, dumping ou qualquer outra prática desleal”.
Entrementes, a efetivação dessas normas não se consolidou. Depois de algumas decisões do Conselho do Mercado Comum (CMC) – órgão deliberativo do MERCOSUL – que não foram efetivamente aplicadas, um encontro realizado em novembro de 1997 entre os presidentes dos Estados-Partes, firmou-se acordo sobre aplicação de medidas antidumping contra importações extrabloco[10]. Esse acordo, um marco normativo, não produziu normas comuns para aplicação de direitos antidumping, embora constitua fundamento legal com o qual a legislação nacional dos Estados-Partes deve se ajustar. As legislações nacionais continuarão a ser aplicadas até a adoção do Regulamento Comum Antidumping[11], que até agora não existe. A partir de então se espera que a competência para processar e aplicar as medidas antidumping contra importações de terceiros países seja exercida por um órgão comum a todos os Estados-partes do bloco com a colaboração das autoridades nacionais de cada um deles. É o que se espera de um mercado integrado.
Na verdade, o Marco Normativo para a adoção do futuro Regulamento Comum Antidumping do MERCOSUL visa à harmonização das legislações nacionais referentes ao procedimento para investigação e aplicação das medidas antidumping contra importações de terceiros Estados. De um modo geral, o instrumento repete, os dispositivos contidos nos acordos constituídos da OMC, sem acrescentar nenhuma novidade, o que mantém inalterada a legislação brasileira sobre a matéria.
Importante acrescentar que a sobredita Decisão 11/97 (Marco Normativa) do Conselho do Mercado Comum não foi ainda sequer ratificada pelos países do MERCOSUL[12].
Quanto ao dumping intrabloco, a situação se encontra um pouco mais complicada, inclusive em termos políticos.
Já vimos que o Protocolo de Defesa da Concorrência (PDC) do MERCOSUL, aprovado pela Decisão 18/96 do CMC, estabelece em seu artigo 2º que “as investigações de dumping serão efetuadas de acordo com as legislações nacionais até 31 de dezembro de 2000[13]”, prazo em que as autoridades nacionais deveriam ter se pronunciado sobre as condições de regulação da matéria do MERCOSUL, até então, tudo levava a crer que a futura regulamentação antidumping seria absolvida, no âmbito no mercado intrabloco, pelo direito antitruste de que trata o PDC, conforme posição que defendemos, apesar de que, até o presente momento, ainda não foi ratificado pelos países que integram o MERCOSUL.
Contudo, desde então, sucessivas Decisões do CMC prorrogaram[14] esse prazo que impelia as autoridades nacionais a analisarem “os instrumentos aplicáveis com vista à eliminação gradual da aplicação das medidas antidumping e direitos compensatórios no comércio intrazona”, de acordo com texto literal da Decisão.
Eis que “de repente” em 5 de julho de 2002, o CMC decidiu adotar, no âmbito do MERCOSUL, o AARU da OMC, para a aplicação de medidas antidumping do comércio intrazona[15].
Antes de qualquer outro comentário, gostaríamos de registrar a inaceitável contradição das Decisões do Conselho do Mercado Comum. De fato, antes da decisão CMC 13/2002 que incorporou o AARU ao MERCOSUL, todos os instrumentos normativos desse órgão deliberativo relativos ao dumping mencionavam expressamente a intenção de “eliminação gradual da aplicação de medidas antidumping e direitos compensatórios no comércio intrazona” – o que estaria, inclusive, em sintonia das normas do OMC, e, sobretudo, com a finalidade integrativa do MERCOSUL. Contudo, o que aconteceu num relativo curto espaço de tempo foi exatamente o contrário: a incorporação à Normativa do MERCOSUL do AARU da OMC, para aplicação de medida antidumping ao comércio intrabloco.
Diante disso, só podemos encontrar algumas poucas explicações plausíveis para a enorme contradição acima apontada. A primeira explicação possível é a de que a CMC adotou essa decisão como uma espécie de legitimação da prática que já vinha acontecendo no âmbito do comércio intrabloco do MERCOSUL, qual seja, a aplicação das medidas antidumping mesmo contra produtos originários de países membros da união aduaneira e de acordo com suas respectivas legislações internas.
Uma segunda aplicação possível - e a mais provável - resulta do momento político vivido principalmente pelas duas maiores economias do Mercado Comum do Sul – o Brasil e a Argentina – até o final de 2002. Os dois países possuem aresta política expressiva no diz respeito ao intercâmbio de mercadorias entre eles, com alegações de dumping e a aplicação da respectiva contramedida dos dois lados, e mais acentuadamente pela Argentina, que vem se utilizando com frequência da imposição de direitos antidumping como verdadeira barreira comercial não-tarifária, na ausência de outras tarifas (já que vivenciamos uma união aduaneira) que possam “proteger” a sua indústria nacional. Uma constatação prática desse uso indiscriminado da Argentina foi reconhecida pela própria OMC, quando do julgamento do caso “Argentina – Direitos Antidumping Definitivos sobre os Frangos Procedentes do Brasil” pelo grupo especial que determinou que a Argentina atuou de maneira incompatível com o AARU e que tais infrações tiveram caráter fundamental e alcance geral, pelo que recomendou a revogação da Resolução 574/2000, por meio da qual a Argentina impôs a medida antidumping sobre os frangos brasileiros[16].
Desse modo, pensamos que a incorporação do AARU à Normativa do MERCOSUL constitui um retrocesso no processo de integração regional que se desenvolve entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Por fim, esperamos que as negociações sobre a eliminação da aplicação de medidas antidumping no âmbito do MERCOSUL (comércio intrabloco) não sejam esquecidas, sobretudo porque afetam e restringem sobremaneira o comércio no mercado comum em desenvolvimento.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente nos interessamos pelo tema levando em consideração os interesses do Brasil no comércio regional do MERCOSUL. Isso porque a economia e as indústrias exportadoras brasileiras, como revelamos, vêm sendo prejudicadas pela aplicação das medidas antidumping contra seus produtos no comércio internacional (com destaque negativo para os EUA, Canadá e Austrália). Assim também o são, por incrível que pareça, as práticas dos parceiros comerciais do Brasil no conhecido MERCOSUL – associação regional de integração econômica que envolve o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Já nesse âmbito, a Argentina se destaca como principal nação que impõe tais medidas contra produtos brasileiros (e, pasmem, é a terceira nação do mundo em termos de quantidade de medidas antidumping contra produtos brasileiros, ficando atrás somente dos EUA e do Canadá).
Pudemos observar, ao longo dos estudos, o aspecto negativo que as medidas antidumping possuem no comércio entre os países do MERCOSUL. Asseveramos, portanto, a enorme vantagem em eliminá-las da esfera do comércio regional tanto do ponto de vista socioeconômico quanto sob a ótica política.
A aludida vantagem decorre do fato de que as sobreditas medidas antidumping são frequentemente empregadas como barreiras não-tarifárias ao comércio, impedindo o desenvolvimento e evolução do Mercado Comum do Sul que se pretende formar em sua plenitude. São verdadeiros escudos protecionistas utilizados impropriamente para proteger a indústria nacional, empregados de forma indiscriminada e desvirtuada, especialmente quando se percebe que:
(a) é bastante difícil a verificação do dumping predatório, sempre alegado pelos países quando da imposição de medidas antidumping;
(b) a utilização dessas medidas é feita de maneira discricionária e varia de acordo com o grau de protecionismo adotado pelo país que aplica a medida.
A coordenação de políticas antidumping no comércio extrabloco também é um dos pontos centrais para o êxito das relações comerciais do MERCOSUL. De fato, os países signatários do Tratado de Assunção se comprometeram a uma harmonização de suas políticas comerciais e essa harmonização passa necessariamente pela unificação das legislações nacionais que tratam das práticas desleais do comércio.
Especialmente no que diz respeito à legislação antidumping no processo de integração do MERCOSUL, podemos concluir que:
1. O artigo XXIV do GATT 1994 impõe a eliminação das medidas antidumping em “substancialmente todo o comércio” no âmbito de uma união aduaneira como a que vive atualmente o MERCOSUL;
2. Nesse sentido, é um retrocesso a incorporação do AARU da OMC à Normativa do MERCOSUL, por meio da Decisão CMC 13/2002;
3. Como consequência direta e imediata da eliminação das medidas antidumping do comércio intrabloco, essas medidas devem ser absorvidas pelo direito antitruste do MERCOSUL;
4. Apesar de serem abundantes as disposições que versam sobre a livre concorrência no Tratado de Assunção, a mesma ainda não se consolidou na prática. Realmente, os principais instrumentos normativos do MERCOSUL para o comércio intrabloco (PDC – Protocolo de Defesa da Concorrência) e extrabloco (Marco Normativo do MERCOSUL) ainda não foram sequer ratificados pelos Estados-Partes. Com isso, acabam prevalecendo as legislações nacionais, muitas vezes aplicadas de maneira dissonante e incompatível com o escopo da integração. Outra consequência clara é que as controvérsias específicas do MERCOSUL acabam (se não forem resolvidas pelas partes), na maioria das vezes, sendo levadas ao julgamento por órgãos da OMC, alheios a nossa realidade peculiar.
Por todo exposto, esperamos ter contribuído para o estudo e a reflexão sobre o tema à luz não somente dos interesses nacionais, mas sobretudo dos interesses do MERCOSUL e da América Latina de uma maneira geral, até mesmo por uma questão de sobrevivência ou de início de crescimento econômico e social diante de uma economia e sociedade cada vez mais “internacionalizadas” e competitivas.
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[1] PINHEIRO, Tiago Jundi e RAMOS, Paloma Pestana. O dumping no mundo globalizado. In: Boletim latino americano de concorrência, nº 16, parte I, Fevereiro/2003, p. 80.
[2] Hoje 159 Estados são membros da OMC, de acordo com informações do sítio eletrônico da entidade http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm, acessado em 25/11/2013.
[3] PEREIRA, Ana Cristina Paulo. Instrumentos jurídicos contra práticas desleais no comércio internacional. In: Revista de Direito Renovar. Rio de Janeiro: Ed, Renovar, nº 18, 2000, p. 127.
[4] PEREIRA, Ana Cristina Paulo. op. cit, p.128.
[5] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.488.
[6] BARRAL, Welber. Dumping e Comércio Internacional: a regulamentação após a Rodada Uruguai, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p.49-50.
[7] Artigo XXIV.8. “a e b”.
[8] STEWART, Terence, BRIGHTBILl, Timothy. Trade Law and competition policy in regional trade agreements. In: Law and Policy in International Bussiness, vol. 27, nº 4, summer, 1996, p.937-944.
[9] Os dados foram obtidos junto ao DECOM (Departamento de Defesa Comercial), da SECEX (Secretaria de Comércio Exterior), órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
[10] Decisão CMC 11/97.
[11] Decisão CMC 11/97, art. 3º. A elaboração do projeto do Regulamento Comum foi atribuída ao Comitê Técnico nº 6 (“Práticas Desleais de Comércio e Salvaguarda”) da Comissão de Comércio do Mercosul.
[12] Informação obtida no site oficial do Mercosul (www.mercosur.int).
[13] Protocolo de Defesa da Concorrência (CMC18/96), art. 2º: “as investigações de dumping realizadas por um Estado-Parte relativa as importações originárias de outro Estado-Parte serão efetuadas de acordo com as legislações nacionais até 31 de dezembro de 2000, prazo em que os Estados abalizarão as normas e as condições nas quais o tema será regulado no MERCOSUL.”
[14] Decisões 66/2000, 07/2001 e 16/2001 do CMC, etc.
[15] Decisão CMC, 13/2002.
[16] Decisão WT/DS2241/R da OMC, de 22 de abril de 2003.
Advogado da União. Mestre em Direito Constitucional - UFPE. Especialista em Direito Administrativo - UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Marconi Arani Melo. Dumping no MERCOSUL Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37683/dumping-no-mercosul. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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