O foco do artigo está em saber se é possível a assinatura de contrato administrativo após considerável tempo do término do procedimento licitatório.
Pelo princípio da autotutela administrativa, a Administração, desde que obedecendo aos princípios da legalidade e da moralidade, tem autonomia para agir, tendo em vista a consecução do interesse público. Acerca do princípio da autotutela administrativa, confira-se ensinamento de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO[1]:
“Enquanto pela tutela a Administração exerce controle sobre outra pessoa jurídica por ela mesma instituída, pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.
É uma decorrência do princípio da legalidade; se a Administração Pública está sujeita à lei, cabe-lhe, evidentemente, o controle da legalidade.
Esse poder da Administração está consagrado em duas Súmulas do STF. Pela de n. 364, “a administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; e pela de n. 473, “a administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
A referida autonomia pauta-se pela análise da conveniência e da oportunidade, elementos típicos do mérito administrativo, isto é, com conteúdo inerente de gestão.
Consoante a Lei n. 8.666/93, a Administração pode revogar (por razões de interesse público) ou anular (por ilegalidade) a licitação já concluída, desde que assegurado o contraditório e a ampla defesa:
Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.
§ 1º A anulação do procedimento licitatório por motivo de ilegalidade não gera obrigação de indenizar, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 59 desta Lei.
§ 2º A nulidade do procedimento licitatório induz à do contrato, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 59 desta Lei.
§ 3º No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa.
Com efeito, se é permitido à Administração, tendo por fundo análise de conveniência e oportunidade, revogar a licitação concluída, não faria sentido obrigá-la a contratar de imediato, pois tal decisão também depende de juízo de conveniência e oportunidade, consoante o interesse público no momento.
Assim, não existe obrigatoriedade legal de que a contratação seja feita de imediato, logo após o término da licitação. Aliás, embora parte da doutrina seja reticente, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Contas da União têm entendimento segundo o qual não há direito subjetivo à adjudicação do objeto. Para a vencedora do certame, existe apenas expectativa de direito.
Tal entendimento é compartilhado pelo Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO.PREGÃO. REVOGAÇÃO. CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. ART. 49, DA LEI 8.666/93. CONSUMAÇÃO DO CERTAME. SUPERVENIENTE CARÊNCIA DO INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO.
1. A conclusão de procedimento licitatório no iter procedimental de Mandado de Segurança, por não lograr êxito a tentativa paralisá-lo via deferimento de pleito liminar, enseja a extinção do writ por falta de interesse de agir superveniente (art. 267, VI, do CPC). Precedentes do STJ: RMS 23.208/PA, DJ 01.10.2007 e AgRg no REsp 726031/MG, DJ 05.10.2006.
2. In casu, a Administração Pública do Estado do Rio Grande do Sul realizou Licitação, sob a forma de Pregão Presencial n.º 005732-24.06/06/8, para fins de contratação de serviços de telefonia de longa distância nacional e de longa distância internacional, no qual sagrou-se vencedora a empresa Brasil Telecom, por ter ofertado o melhor preço, tendo sido adjudicado o objeto do certame, consoante se infere dos autos da MC 11.055/RS.
3. Ad argumentandum tantum, a pretensão veiculada no Mandado de Segurança ab origine, qual seja, suspensão dos efeitos do Pregão 047/SEREG/2005, com a conseqüente restauração e manutenção do Termo de Registro de Preços 066/2005, firmado entre a EMBRATEL e a Administração Pública do Estado do Rio Grande do Sul, não revela liquidez e certeza amparáveis na via mandamental.
4. A exegese do art. 49, da Lei 8.666/93, denota que a adjudicação do objeto da licitação ao vencedor confere mera expectativa de direito de contratar, sendo certo, ainda, que eventual celebração do negócio jurídico subsume-se ao juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública. Precedentes: RMS 23.402/PR, SEGUNDA TURMA, DJ 02.04.2008; MS 12.047/DF, PRIMEIRA SEÇÃO, DJ 16.04.2007 e MC 11.055/RS, PRIMEIRA TURMA, DJ 08.06.2006.
5. In casu, a revogação do Pregão nº 001/SEREG/2005, no qual a empresa, ora Recorrente, se sagrara vencedora, decorreu da prevalência do interesse público, ante a constatação, após a realização do certame, de que o preço oferecido pela vencedora era superior ao praticado no mercado.
6. Recurso ordinário desprovido.”
(RMS 22447 / RS, relator Ministro LUIZ FUX, Julgamento: 18/12/2008, Publicação: DJe 18/02/2009)
E, também, pelo Tribunal de Contas da União:
“( ) o fato de o objeto de um dado certame ter sido adjudicado a uma empresa, não implica em direito subjetivo da mesma em obter a contratação. O direito do adjudicatário é o de ser convocado em primeiro lugar caso a Administração decida celebrá-lo, conforme vastamente pacificado pela jurisprudência e pela doutrina” (Acórdão 868/2006 - Segunda Câmara, Processo 019.755/2005-2, Ministro Relator LINCOLN MAGALHÃES DA ROCHA, Aprovação 17/04/2006)
Como foi mencionado, embora o STJ e TCU adotem essa posição, doutrinadores divergem. Confira-se posicionamento de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO[2]:
“149. Concluído o procedimento com sucesso, a Administração, em princípio, estará obrigada a contratar. Foi dito “com sucesso” porque todas as propostas podem ter sido desconformes com o edital ou insatisfatórias, caso em que deverão ser desclassificadas (art. 48), assim como pode ter ocorrido alguma invalidade em seu transcurso, hipótese na qual a licitação terá de ser anulada (art. 49).
150. Foi dito “em princípio” porque, se ocorrer motivo superveniente, em razão do qual a Administração tenha justificativas de interesse público bastantes para não contratar, poderá, mediante ato fundamentado, “revogar” a licitação, assegurados, previamente, o contraditório e ampla defesa do vencedor do certame, interessado em firmar solução contrária.
O entendimento exposto está arrimado no art. 49, dispositivo de extrema importância que, rompendo a tradição normativa anterior e a tendência doutrinária dantes prevalente, fixou orientação clara na matéria, ao estabelecer: “A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provacação de terceiros, mediante parecer escrito e fundamentado”. De seu turno, o § 3º implantou a exigência de ouvida do interessado, ao dispor: “No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa.”
No mesmo sentido, veja-se entendimento de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO[3]:
“Consequência jurídica da homologação é a adjudicação, que espelha o ato pelo qual a Administração, através da autoridade competente, atribui ao vencedor do certame a atividade (obra, serviço ou compra) que constitui o objeto da futura contratação. Anteriormente, considerava-se adjudicação o ato de resultado final emanado da Comissão de Licitação, antecedendo, portanto, à homologação. A lei vigente, no entanto, deixou claro que a adjudicação não integra o procedimento licitatório e é posterior ao ato de homologação. Em dois momentos transparece tal situação: 1º) o art. 6º, XVI, do Estatuto, não incluiu a adjudicação na competência da Comissão de Licitação; 2º) o art. 43, VI, estatui que é função da autoridade competente deliberar quanto à homologação e à adjudicação do objeto da licitação.
Uma vez homologado o resultado e a própria licitação, presume-se que a Administração tem interesse na atividade a ser contratada. Desse modo, é correto considerar-se que o vencedor tem inafastável direito à adjudicação e, consequentemente, ao próprio contrato. Há quem resista em admitir que o vencedor tenha direito ao contrato. Não pensamos assim, contudo. Se toda licitação e o resultado final foram homologados, a Administração está vinculada à prática da adjudicação e a celebração do negócio contratual.”
Todavia, mesmo adotando-se a tese da mera expectativa de direito à contratação, isso não significa deixar a vencedora subjugada aos caprichos da Administração. Não se pode licitar novamente o objeto enquanto existente e válido o procedimento anterior. Não se pode adjudicar o objeto da licitação a outro candidato que não o vencedor do certame. Sobre o assunto, veja-se o que dispõe o art. 50 da Lei n. 8.666/93:
Art. 50. A Administração não poderá celebrar o contrato com preterição da ordem de classificação das propostas ou com terceiros estranhos ao procedimento licitatório, sob pena de nulidade.
Após 60 dias da data da entrega das propostas, o licitante está liberado do compromisso assumido, e a contratação passa a depender da vontade do licitante em manter sua proposta. Novamente, confira-se o que dispõe a Lei de Licitações e Contratos:
Art. 64. A Administração convocará regularmente o interessado para assinar o termo de contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo e condições estabelecidos, sob pena de decair o direito à contratação, sem prejuízo das sanções previstas no art. 81 desta Lei.
(...)
§ 3º Decorridos 60 (sessenta) dias da data da entrega das propostas, sem convocação para a contratação, ficam os licitantes liberados dos compromissos assumidos.
Portanto, em tese, é possível a contratação após decorrido prazo considerável do término da licitação. Entretanto, para isso é necessário que o vencedor ratifique os termos da proposta.
Cabe transcrição de LUCAS FURTADO ROCHA[4]:
“A fim de evitar que os licitantes fiquem indefinidamente vinculados às suas propostas, o §3º do art. 64 fixou-lhes o prazo de 60 dias de validade. Decorrido esse prazo, que é contado da “data da entrega das propostas, sem convocação para a contratação, ficam os licitantes liberados dos compromissos assumidos.”
Não se deve entender que a Administração não possa convocar licitante após esse prazo. Decorrido o prazo de 60 dias não pode a Administração obrigar o licitante a assumir sua proposta ou puni-lo, caso haja recusa.
Prática não prevista em lei, mas que se tornou comum no serviço público, diz respeito à possibilidade de a comissão de licitação solicitar dos licitantes a prorrogação da validade de suas propostas. Evidentemente que os licitantes não estão obrigados a fazê-lo. Caso concordem, no entanto, o que requer a devida formalização, tornam-se vinculados e se obrigam a honrar com seus compromissos assumidos em suas propostas sob pena de serem punidos nos termos do art. 81 da Lei n. 8.666/93.”
Um aspecto que precisa ser verificado, tendo em vista o considerável lapso temporal, é a adequação financeira e orçamentária da contratação. Caso se tenha ultrapassado o exercício financeiro e a vigência do Plano Plurianual, é preciso adequar a fonte da despesa e o cronograma de desembolso.
Por outro lado, a conveniência em se assinar o contrato muito tempo depois da licitação não é assunto jurídico, mas de mérito administrativo: compete apenas à Administração aferir se a referida contratação se dará consoante o interesse público.
Outro tópico importante no estudo é a vedação de se contratar simultaneamente duas vezes o mesmo objeto.
A Lei n. 8.666/93 permite o parcelamento do objeto, tendo em vista o aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e a ampliação da competividade:
Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação:
§ 1º As obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala.
§ 2º Na execução de obras e serviços e nas compras de bens, parceladas nos termos do parágrafo anterior, a cada etapa ou conjunto de etapas da obra, serviço ou compra, há de corresponder licitação distinta, preservada a modalidade pertinente para a execução do objeto em licitação.
(...)
Entretanto, é proibido parcelar o objeto visando-se exclusivamente a fraudar a modalidade de licitação adequada, por meio da redução do valor do contrato.
Diante do exposto, tem-se que, em hipótese, sob o ponto de vista jurídico, é possível a contratação após decorrido prazo considerável do término da licitação. Do ponto de vista técnico, a conveniência da contratação deve ser avaliada pela própria Administração.
Referências Bibliográficas:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010,
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 609.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 23ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 319.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 282/283.
Notas:
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 69.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 609.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 23ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 319.
[4] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 282/283.
Procuradora Federal. Chefe da Divisão de Precatórios e Dívida Ativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Patricia Cristina Lessa Franco. Licitação concluída e expectativa de direito à contratação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37814/licitacao-concluida-e-expectativa-de-direito-a-contratacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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