Introdução
A utilização de imóveis funcionais, por parte de servidores do Poder Executivo Federal, constitui uma forma de beneficiar o servidor público que satisfaça os requisitos legais e seja deslocado por exigência do serviço.
Cumpridas tais exigências, lhe é concedida uma precária autorização para a ocupação de imóvel funcional, por determinado tempo, pertencente à Administração Pública.
Todavia, a má utilização do instituto, corroborada por uma postura conservadora do Poder Judiciário, vem dificultando a administração e utilização correta de tais bens, por parte da União Federal.
Desenvolvimento
O surgimento dos apartamentos funcionais remonta à criação de Brasília, onde o oferecimento de moradia era um atrativo para a mudança de domicílio de diversos servidores públicos que se mostravam necessários na nova Capital Federal. Atualmente, apesar de não possuírem este exato objetivo, o fato é que a União Federal ainda detém uma série de imóveis ocupados por seus funcionários.
O regramento da utilização dos imóveis funcionais pertencentes à União Federal resta positivado, atualmente, em parte na lei n. 8.025/90 e, com maior extensão, no Decreto n. 980/93.
Sendo o servidor público portador de um cargo que possibilite a ocupação de um imóvel funcional, e obedecendo este a uma série de outras limitações regulamentares (como não ser possuidor de outro imóvel na cidade, por exemplo), poderá ele fazer uso do imóvel, enquanto ocupar o cargo e permanecer dentro dos regramentos contidos no Decreto 980/93.
O problema ocorre quando o ocupante perde o direito à utilização do imóvel e, mesmo assim, permanece na residência, ou seja, não procede a devolução que restou pactuada com a administração pública.
Em relação aos motivos que geram a obrigação de devolução do imóvel, o Decreto 980/93 assim dispõe:
Art. 16. Cessa de pleno direito a permissão de uso de imóvel residencial, quando o seu ocupante:
I - for exonerado ou dispensado do cargo em comissão ou da função de confiança que o habilitou ao uso do imóvel, observado o disposto no § 1°;
II - for exonerado ou demitido do serviço público;
III - entrar em licença para tratar de interesses particulares;
IV - for movimentado ou transferido para outra Unidade da Federação;
V - aposentar-se;
VI - falecer;
VII - tornar-se proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel residencial no Distrito Federal, como também seu cônjuge, companheira ou companheiro amparados por lei;
VIII - não ocupar o imóvel no prazo de trinta dias, contados da concessão da permissão de uso;
IX - transferir total ou parcialmente os direitos de uso do imóvel a terceiros, a título oneroso ou gratuito;
X - atrasar por prazo superior a três meses o pagamento dos encargos relativos ao uso do imóvel.
Na ocorrência de uma dessas hipóteses, em não sendo devolvido o imóvel no prazo pactuado, surge a seguinte obrigação, descrita na Lei n. 8.025/90:
Art. 15. O permissionário, dentre outros compromissos se obriga a:
I - pagar:
(...)
e) multa equivalente a dez vezes o valor da taxa de uso, em cada período de trinta dias de retenção do imóvel, após a perda do direito à ocupação;
Dessa forma, a própria lei que rege o procedimento de destinação de imóveis funcionais prevê a incidência de uma cobrança de multa pela utilização irregular. Além disso, sabe-se que a ocupação de um imóvel funcional é direito de natureza precária, não gerando qualquer direito subjetivo a ocupação, especialmente na ocorrência de uma das hipóteses de extinção do direito.
Todavia, a ocupação irregular de imóveis funcionais tem se tornado um problema crônico para a Administração Federal, especialmente pelo entendimento jurisprudencial a seguir transcrito.
ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL FUNCIONAL. TÉRMINO DE MANDATO PARLAMENTAR. OCUPAÇÃO IRREGULAR. PERDAS E DANOS. INDENIZAÇÃO CORRESPONDENTE AO VALOR DE ALUGUEL. IMPOSSIBILIDADE. MULTA. TRÂNSITO EM JULGADO. RESSARCIMENTO DE DANOS CAUSADOS NO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE PROVAS. 1. A multa prevista no art. 15, I, e, da Lei 8.025, de 12/04/1990, é devida somente após o trânsito em julgado da sentença que reconhece a ocupação irregular do imóvel funcional. Caso em que, reintegrada a União na posse, em virtude de liminar deferida no processo, descabe a aplicação da referida sanção. 2. A cessão de imóvel funcional a servidor público é de cunho eminentemente administrativo, não sendo, no caso de retenção indevida, cabível a indenização por perdas e danos fundada em expectativa de recebimento de aluguéis, uma vez que não se aplicam na espécie institutos jurídicos próprios do Direito Civil, mesmo porque cuidou o legislador de prever expressamente a sanção aplicável ao ocupante renitente. 3. A indenização por danos causados ao imóvel depende de efetiva comprovação. Precedentes. 4. Apelação da União a que se nega provimento.
(TRF-1 - AC: 21347 DF 2000.34.00.021347-5, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FAGUNDES DE DEUS, Data de Julgamento: 31/10/2007, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 07/12/2007 DJ p.37)
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DAS COISAS. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL FUNCIONAL. ALUGUEL A TÍTULO DE COMPENSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. No caso em tela, não cabe indenização por perdas e danos fundada em expectativa de recebimento de aluguéis, uma vez que não se aplicam na espécie institutos jurídicos próprios do Direito Civil decorrentes de relação contratual, mesmo porque cuidou o legislador de prever expressamente a sanção aplicável ao ocupante renitente. Agravo Regimental improvido.
(STJ - AgRg no Ag: 1122362 DF 2008/0256218-0, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 26/05/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/06/2009)
Com base no entendimento acima transcrito, tem-se a seguinte situação.
O servidor público que recebe um imóvel funcional e anui a todas as obrigações dele decorrentes, inclusive ao pagamento da multa prevista na alínea “e”, inciso I, art. 15 da lei 8.025/90.
Porém, ocorrendo o término da hipótese regulamentar da ocupação, e não sendo devolvido o imóvel, por aplicação do entendimento jurisprudencial exposto, o ocupante fica isento do pagamento da mencionada multa, uma vez se entende que a mencionada multa somente é devida após o trânsito em julgado da decisão que julga irregular a ocupação.
O efeito prático de tal entendimento é que a não devolução do imóvel, quando requerido administrativamente, não gera qualquer efeito financeiro para o ocupante, vez que esse somente será compelido a pagar as taxas ordinárias de ocupação. Ou seja, no presente caso, o posicionamento do Poder Judiciário está a autorizar o ocupante irregular a beneficiar-se de sua própria torpeza.
A União Federal, levando em conta tal posicionamento jurisprudencial, vem buscando uma indenização referente ao valor locatício que o bem teria em condições normais de mercado, objetivando minorar seus prejuízos com a ocupação irregular.
Todavia, salvo honrosas exceções, tal pleito também não encontra guarida no âmbito judiciário, vez que, conforme já transcrito nas jurisprudências acima, entende-se que o instituto de direito administrativo da ocupação de imóveis funcionais não se coaduna com a indenização do valor locatício, instituto de direito civil.
Tal argumento não merece aceitação. A indenização pleiteada pela ocupação irregular dos imóveis advém de duas regras básicas de sobre-direito, ou seja, que não restam limitadas por diferentes ramos.
A primeira é a já mencionada vedação do proveito da própria torpeza. Ora, se o ocupante já tinha ciência do permissivo legal que amparava a sua ocupação, bem como a precariedade desse, uma vez notificado para a desocupação, não se pode ter como exigência o trânsito em julgado de decisão judicial para amparar a incidência da multa prevista em lei.
A segunda é a vedação ao enriquecimento ilícito, uma vez que o ocupante está a prejudicar a detentora do imóvel e, indiretamente, outro possível destinatário do imóvel, e o ordenamento está protegendo e, quiçá, encorajando, tal prática.
Mostra-se patente que tal entendimento não pode seguir vigorando em nosso ordenamento, assim como esposado na decisão a seguir transcrita.
“ Noutra margem, procede o pedido de fixação de aluguéis pelo período de ocupação irregular a título de indenização. A prevalecer apenas o pagamento da taxa de ocupação, cujo valor é muitíssimo inferior ao valor de aluguel do imóvel porque visa a ofertar moradia aos permissionários regulares, haverá locupletamento ilícito da Ré, que deixou de pagar aluguel durante esse lapso quando é certo que deveria ter saído do imóvel e alugado outro. A entender em sentido contrário, o ato ilícito de ocupação irregular não implicaria qualquer sanção à Ré, o que incentivaria sua prática impune, visto que ela nem mesmo está sujeita à multa prevista no art. 15, I, ‘e’, da Lei nº 8.025/90, como reconhecido algures. Portanto, o pagamento de aluguel correspondente ao preço de mercado a ser apurado na fase de execução, desde 24.08.2011 até 10.02.2013 (data da desocupação), é idôneo para indenizar a Autora pelos prejuízos sofridos durante a ocupação irregular.”(grifamos)
(Juíza Federal Dra. Maria Cecília Marco da Rocha, nos autos da ação de reintegração de posse de imóvel funcional registrada sob o nº 9337-13.2012.4.01.3400, 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.)
Enquanto esse entendimento não se tornar prevalente em nosso país, continuaremos a vivenciar notícias como a apresentada pelo portal de notícias G1, na data de 18/08/2013, intitulada Ocupação é irregular em 12% dos imóveis funcionais, diz levantamento, como pode ser visualizado em g1.globo.com/politica/noticia/2013/08/ocupacao-e-irregular-em-12-dos-imoveis-funcionais-diz-levantamento.html
Além disso, a notória demanda por imóveis funcionais, a qual é insuficiente para atender a todos que fazem jus a usufruir da benesse administrativa, continuará a onerar os cofres públicos, pois quando a Administração Pública não disponibiliza imóvel funcional para aquele detém direito, paga um auxílio-moradia, na forma do art. 60-A e ss. da Lei nº 8.112/90:
Art. 60-B. Conceder-se-á auxílio-moradia ao servidor se atendidos os seguintes requisitos: (Incluído pela Lei nº 11.355, de 2006)
I - não exista imóvel funcional disponível para uso pelo servidor; (incluído pela Lei nº 11.355, de 2006)
Assim, a União é duplamente penalizada, porquanto, além de não satisfazer seu legítimo direito em reaver o imóvel, ainda paga auxílio-moradia para aqueles que possuem direito de ocupar imóvel funcional.
As forças militares, ao seu tempo, são especialmente prejudicadas pela falta de imóveis funcionais, uma vez que seu regramento não prevê a concessão de auxílio moradia, o que acaba por impedir a realização de movimentação de militares pelo território nacional.
Conclusão
Ante o exposto, vislumbra-se que o entendimento jurisprudencial sobre a cobrança de multa por ocupação irregular de imóvel funcional, considerando este somente devido após o trânsito em julgado, acaba por distorcer um pacto legitimamente realizado entre o servidor e a Administração, tornando o desrespeito à avença algo vantajoso, uma vez que somente serão cobradas as taxas ordinárias de ocupação até o trânsito em julgado da sentença de reintegração (muito inferiores aos valores de mercado, vez que o instituto não possui intuito lucrativo), prejudicando as pessoas que realmente fazem jus à benesse e onerando o erário.
Necessária, portanto, a imediata alteração do entendimento vigente, de maneira a não beneficiar o enriquecimento ilícito e o proveito advindo da própria torpeza do ocupante irregular.
Advogado da União. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Ex-Analista do Seguro Social. Atualmente lotado na Procuradoria-Regional da União na 1a Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRESSLER, Davi. Da necessidade de condenação em verba indenizatória à União pela utilização indevida de imóveis funcionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37855/da-necessidade-de-condenacao-em-verba-indenizatoria-a-uniao-pela-utilizacao-indevida-de-imoveis-funcionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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