INTRODUÇÃO
O presente trabalho intenta examinar o instigante problema dos tratados internacionais veiculadores de normas de direito fundamental. Para tanto, iniciaremos lançando luz ao instrumento condutor de tais normas traçando, de forma superficial, é certo, suas principais características, seu conceito e uma perspectiva geral dos demais pontos que entendermos conveniente para o bom entendimento do tema proposto.
Como observado, num primeiro momento avançaremos discorrendo acerca das características gerais dos pactos internacionais. Posteriormente nos inclinaremos sobre as teorias que explicam o relacionamento entre o direito interno e o direito internacional.
Situando-nos quanto ao instrumento e desvendando as teorias que sobre o mesmo pairam quanto ao relacionamento do(s) sistema(s) jurídico(s), passaremos a analisar o modo pelo qual o Brasil se obriga na seara internacional, bem como as teses que explicam a incorporação desses direitos no ordenamento jurídico pátrio.
Após uma análise rápida sobre a controvérsia que envolve tal espécie de acordo internacional e o porquê, verificaremos o posicionamento da doutrina e o patamar atual de eventuais divergências, especialmente frente a Emenda Constitucional n. 45 de 2004.
1. TRATADOS INTERNACIONAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES
A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados define em seu artigo 2, 1, a, os tratados como sendo “um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica.”
Por sua vez o Prof. Resek assinala que “Tratado é todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos.”[1]
Abstrai-se das definições, inicialmente, a característica inerente aos Tratados de se perfazerem em acordo de vontades, celebrados de forma espontânea pelos Estados que deles fazem parte, bem como a sua regência por normas advindas do direito internacional, o que equivale dizer, inoperatividade das normas internas das respectivas partes contratantes na regência dos tratados.
Ainda, pode-se visualizar que os tratados não passam de simples instrumentos, que são identificados por seu processo de produção e não pelo seu conteúdo, extremamente variável. Os tratados, como meio a veicular acordos internacionais, podem trazer em seu bojo as mais variadas disciplinas, logo, sendo inviável a sua identificação pelo conteúdo, bastando, para tanto, a observância à suas formalidades.
Entretanto, como poderemos notar no decorrer do presente estudo, o conteúdo do acordo entre Estados será de importância ímpar, em alguns casos, pois indicará a devida posição hierárquica do mesmo no ordenamento jurídico pátrio. Como dito, fica a referida observação a ser melhor explicada em momento apropriado.
Prosseguindo em nossa análise superficial acerca das principais características dos tratados internacionais passamos a identificar os atores, as partes que podem pactuar referidos instrumentos.
“As partes, em todo tratado, são necessariamente pessoas jurídicas de direito internacional público: tanto significa dizer os Estados soberanos – aos quais se equipara, como será visto mais tarde, a Santa Sé – e as organizações internacionais. Não têm personalidade jurídica de direito das gentes, e carecem, assim por inteiro, de capacidade para celebrar tratados, as empresas privadas, pouco importando sua dimensão econômica e sua eventual multinacionalidade.”[2]
Não é suficiente que as partes possam celebrar tratados para que o ajuste se encontre perfeito. Mais do que legitimidade, faz-se necessário que os atores estejam imbuídos do animus contrahendi, equivalendo dizer a vontade de instituir vínculos obrigacionais entre as partes.
Sendo comum, e.g., a troca de notas entre Estados soberanos, tanto como mero meio de comunicação diplomática não oral, bem como instrumento de aceitação (ratificação) de tratados internacionais, tem-se no animus contrahendi a forma de se dirimir eventuais dúvidas sobre a vontade do Estado.
Lançadas as principais características dos tratados internacionais, pelo menos as que interessam para o presente, passemos a verificar como se dá a relação do direito internacional com o direito interno.
2. DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO: TEORIAS.
Como pudemos observar no capítulo anterior, os Tratados internacionais são acordos de vontades efetuados no âmbito do direito internacional, envolvendo Estados soberanos[3] e organizações internacionais que, por meio daquele instrumento, se obrigam a cumprir o acordo celebrado.
Entretanto, como se deve proceder quando os acordos firmados na seara internacional entram em choque com o ordenamento interno do país? Ou então, quando não se verifica o conflito quando da ratificação do tratado? Como se portar quando norma interna posterior se coloca contrariamente ao estatuído no tratado internacional? O que se dizer então quando o conflito se dá entre dispositivo trazido pelo acordo internacional e um normativo constitucional?
As elucubrações supra formuladas são respondidas levando-se em consideração a teoria adotada pelo intérprete referente a forma como é acolhido o tratado internacional no ordenamento jurídico interno.
Atualmente existem duas teorias que se confrontam e explicam, cada uma ao seu modo, a relação entre os acordos firmados na seara do direito internacional e os ordenamentos internos dos respectivos pactuantes. São elas: a teoria monista e a teoria dualista, aquela defendida pelo ilustre jusfilósofo Hans Kelsen e esta pelos não menos insignes Triepel e Anzilotti.
2.1. TEORIA MONISTA X TEORIA DUALISTA
Para os defensores da teoria intitulada dualista simplesmente não existe conflito entre as chamadas normas advindas do direito interno frente às normas de direito internacional, isto porque, para estes referidas normas decorrem de sistemas jurídico distintos que não se sobrepõem ou concorrem, no máximo tangenciam.
Desta feita, perfazendo o direito internacional e o direito interno de cada país sistemas jurídicos distintos, regularão, cada um, as matérias pertinentes à respectiva seara, objeto de cada sistema, tornando inviável o confronto de normas antônimas, posto que inviável a regulamentação de uma matéria por um sistema em que a mesma não se encontra contida.
Na teoria dualista o direito internacional fica incumbido de reger relações jurídicas interestatais, enquanto o direito interno compete a relação de direito intra-estatais, podendo-se concluir, mais uma vez, a impossibilidade da existência de conflito entre as normas.
Já no que diz respeito a teoria monista, diferente é o enfoque. Para seu defensor, Hans Kelsen, não é possível se admitir a existência de dois sistemas jurídicos válidos, independentes um do outro. As relações de direito interno e internacional convergem e superpõem, devendo-se encontrar meios para evitar ou contornar eventuais conflitos, que não conferem fundamento suficiente a desalinhar a unicidade do ordenamento jurídico.
Salienta o Prof. Jacob Dolinger[4] que “com o tempo surgiram três escolas monistas: a que defende a primazia do direito interno sobre o direito internacional; a que defende a primazia do direito internacional sobre o direito interno e a que os equipara, dependendo a prevalência de uma fonte sobre a outra da ordem cronológica de sua criação (monismo moderado).
“Kelsen inclinou-se pela primazia do direito internacional sobre o direito interno, formulando a conhecida imagem da pirâmide das normas, em que uma norma tem sua origem e tira sua obrigatoriedade da norma que lhe é imediatamente superior. No vértice da pirâmide encontra-se a norma fundamental, que vem a ser a regra do Direito Internacional Público, pacta sunt servanda.”
Ressaltando as diferenças entre as teorias monista e dualista, assevera Rebecca M. M. Wallace[5]: “Os monistas concebem o Direito como uma unidade e, conseqüentemente, as normas internacionais e internas, como parte integrante do mesmo ordenamento. Na hipótese de conflito entre a norma internacional e a norma nacional, a maior parte dos monistas entende que o Direito Internacional deve, inquestionavelmente, prevalecer. Os dualistas concebem o Direito Interno e o Direito Internacional como ordens independentes entre si. Os dois sistemas, sob esta ótica, regulam diferentes matérias. O Direito Internacional disciplinaria as relações entre Estados soberanos, enquanto o Direito Interno disciplinaria os assuntos internos dos Estados, como, por exemplo, as relações entre o poder Executivo e os indivíduos e as relações entre os próprios cidadãos. Neste sentido, os dualistas argumentam que os dois sistemas são mutuamente excludentes e não apresentam qualquer contacto entre si e nem mesmo qualquer interferência um no outro. Se o Direito Internacional é, por sua vez, aplicado a um Estado, é porque este, expressamente, incorporou os enunciados internacionais no Direito Interno.”
Traçadas as devidas nuances a respeito das teorias monistas e dualistas, faz-se necessário salientar que nenhuma delas é adotada pelo Brasil, ou mais especificamente, por nossa Suprema Corte.
Distanciando-se de ambas as doutrinas e, ao mesmo tempo, também se aproximando de ambas, adotou o Supremo Tribunal Federal a Teoria denominada “Monismo moderado” (ou, atualmente, “Dualismo moderado), qual passaremos a desenvolver no próximo tópico.
2.2. MONISMO (DUALISMO) MODERADO.
O monismo moderado, como pode-se facilmente perceber, é espécie do monismo absoluto, descrito no tópico acima. Portanto ele também tem como fundamento a unicidade do ordenamento jurídico, é dizer o sistema de direito internacional e de direito interno se superpõem.
Muito embora tal constatação, o monismo moderado tem a peculiaridade concernente a necessidade de aprovação de uma norma interna para viabilizar a sua eficácia no respectivo país. Melhor explicando, no monismo moderado, diferentemente do monismo dito absoluto, não é suficiente a aprovação do tratado internacional para que as normas nele contidas iniciem a irradiar efeitos sobre o ordenamento jurídico do país pactuante. É exigido ainda um ato interno, este sim desencadeador da validade do acordo internacional no direito interno, conferindo-lhe o status de lei ordinária, segundo orientação jurisprudencial do Pretório Excelso.
Tal entendimento importa dizer que os Tratados internacionais, devidamente incorporados ao ordenamento jurídico pátrio (e com status de lei ordinária), observarão as normas comuns de solução de antinomias entre normas de mesma hierarquia, ou seja: a) norma posterior prevalece sobre a anterior; b) norma específica prevalece sobre a genérica, ainda que esta última seja posterior.
Entretanto vale consignar, de forma sucinta de modo a não nos desviarmos do objeto do presente trabalho, que o Supremo Tribunal Federal com relação à necessidade de ato advindo do direito interno a viabilizar o ingresso do tratado internacional no ordenamento jurídico alterou recentemente seu entendimento, como pode-se constatar na interessante jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça colacionada abaixo:
“Lei – Tratado.
O tratado não se revoga com a edição de lei que contrarie norma nele contida. Perderá, entretanto, eficácia, quanto ao ponto em que exista antinomia, prevalecendo a norma legal.
Aplicação dos princípios, pertinentes a sucessão temporal das normas, previstas na Lei de Introdução ao Código Civil.
A lei superveniente, de caráter geral, não afeta as disposições especiais contidas em tratado. Subsistência das normas constantes da Convenção de Varsóvia, sobre transporte aéreo, ainda que disponham diversamente do contido no Código de Defesa do Consumidor.”
Pois bem. A posição dominante nos tribunais, acima delineada, acabou sendo denominada pela doutrina como monista moderada. Isto porque o direito brasileiro admite, em tese, o conflito entre o tratado e a norma interna (o que configuraria uma posição monista), mas equipara aquele às leis ordinárias (daí o adjetivo “moderado”).
Não atentou a doutrina para o fato de que, segundo o direito brasileiro, o tratado só opera efeitos no território nacional após percorridas as etapas do iter procedimental de sua incorporação. E tal circunstância, sem dúvida alguma, consoante as premissas teóricas expendidas no capítulo II, supra, configura um sistema dualista.
Tal circunstância foi captada pelo Ministro Celso de Mello, no exercício da Presidência do STF, em decisões proferidas na ADIN n° 1.480-3-DF e na Carta Rogatória nº 8.279, com idêntica fundamentação. Em tais precedentes, vê-se que o eminente Ministro classifica o sistema brasileiro como dualista moderado. Confira-se importante trecho da decisão proferida na ADIN n° 1.480-3-DF, verbis:
“Não obstante a controvérsia doutrinária em torno do monismo e do dualismo tenha sido qualificada por Charles Rousseau (Droit International Public Approfondi, Dalloz, Paris, 1958, pp. 3-16), no plano do direito internacional público, como mera “discussion d’école”, torna-se necessário reconhecer que o mecanismo de recepção, tal como disciplinado pela Carta Política brasileira, constitui a mais eloqüente atestação de que a norma internacional não dispõe, por autoridade própria, de exeqüibilidade e de operatividade imediatas no âmbito interno, pois, para tornar-se eficaz e aplicável na esfera doméstica do Estado brasileiro, depende, essencialmente, de um processo de integração normativa que se acha delineado, em seus aspectos básicos, na própria Constituição da República. (...)
Não obstante tais considerações, impende destacar que o tema concernente à definição do momento a partir do qual as normas internacionais tornam-se vinculantes no plano interno excede, em nosso sistema jurídico, à mera discussão acadêmica em torno dos princípios que regem o monismo e o dualismo, pois cabe à Constituição da República – e a esta, somente – disciplinar a questão pertinente à vigência doméstica dos tratados internacionais.
Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro – que não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional ao direito interno (visão dualista extremada) – satisfaz-se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção de iter procedimental que compreende a aprovação congressional e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada).”
É relevante sublinhar que esta “mudança de posição” do STF em nada alterou, em termos práticos, os critérios para a solução dos conflitos entre fontes internas e internacionais. Confira-se, neste sentido, a afirmação de Nadia de Araujo e Inês da Matta Andreiuolo, verbis:
“(...) acreditamos que a opinião dominante de que o Brasil é filiado à corrente do monismo moderado deve ser sepultada em face do pronunciamento recente do STF. Este, em verdade, em nada modificou o sistema já existente, apenas interpretando a jurisprudência anterior sob novas luzes.
A incorporação dos tratados ao sistema interno brasileiro, equiparando-o à lei interna, transforma-os em uma lei nacional e, por conseguinte, extingue o conflito próprio da teoria monista, pois a regra vigente de revogação de lei anterior pela lei posterior é princípio assente no nosso sistema jurídico e aplicável ao ordenamento como um todo. Com isso também fica claro que os dois sistemas – o interno e o internacional— são separados, pois ocorre, muitas vezes, do Brasil continuar obrigado internacionalmente por dispositivo de tratado (posto que seu “parceiro” não foi comunicado da modificação) enquanto a legislação interna já o modificou.”
Como visto, o Egrégio Supremo Tribunal Federal passa a adotar a teoria do dualismo moderado para a necessidade de norma interna como ato viabilizador da vigência, no ordenamento pátrio, de dispositivos advindos de tratado internacional.
Entretanto vale consignar, citando André Lupi, “que a jurisprudência brasileira adotou diferentes padrões de hierarquia entre tratados e normas internas, prevalecendo um ou outro conforme a matéria em jogo. Trata-se de uma hierarquia variável ratione materiae, pela qual as garantias inseridas nos tratados sobre direitos humanos estão integrados à Constituição Federal, tratados em matéria tributária estão acima de leis ordinárias e os demais tratados a elas se equiparam. Esta é a sistemática vigente, em relação à qual inova a EC 45/2004 ao elevar os próprios tratados sobre direitos humanos ao nível de Emenda Constitucional”.[6]
Para melhor visualizarmos o problema, estabelecendo uma ligação mais nítida com o tema ora proposto, façamos uma rápida análise do procedimento de ratificação de tratados internacionais utilizado pelo Brasil, bem como o trâmite para sua incorporação no ordenamento jurídico interno, quando então poderemos melhor observar a atuação do dualismo e monismo moderados.
3. RATIFICAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS E INCORPORAÇÃO NO DIREITO INTERNO
O ordenamento jurídico brasileiro, devidamente interpretado pelo Pretório Excelso, divide em duas fases o processo de incorporação dos tratados internacionais ao direto pátrio: a fase externa e a fase interna.
Tem início o processo com a fase externa, compreendendo a assinatura do Brasil a um acordo internacional. Esclarece-se desde já que tal ato não implica qualquer obrigação do Brasil com os termos estipulados no pacto, ao contrário, expressa apenas a concordância formal com seus termos e a intenção de obrigar-se com os mesmos.
Entretanto, para obrigar-se com os termos constantes do tratado faz-se necessário o chamado ato de ratificação do tratado (segundo ato da fase externa), que analisaremos em momento apropriado.
Assinado o tratado internacional pelo Brasil tem início a fase interna. Tal fase compõe-se, num primeiro momento, da análise do pacto pelo legislativo pátrio. Em havendo concordância do parlamento é editado um decreto legislativo que viabiliza a passagem para o segundo ato da fase interna.
Referido segundo ato equivale a uma promulgação do poder executivo, vale dizer, aquiescência do Presidente da República aos termos do pacto internacional. Em havendo a concordância do Chefe do Executivo, o mesmo edita o decreto presidencial que tem o condão de incorporar as disposições trazidas pelo tratado internacional ao ordenamento jurídico interno.
Posteriormente é chegado o momento do comprometimento do Brasil na seara internacional, o que se dá por meio da ratificação, segundo ato da fase externa.
Segundo o Prof. Rezek[7] “não se pode entender a ratificação senão como ato internacional, e como ato de governo. Este, o poder Executivo, titular que costuma ser da dinâmica das relações exteriores de todo Estado, aparece como idôneo para ratificar – o que no léxico significa confirmar –, perante outras pessoas jurídicas de diredito das gentes, aquilo que ele próprio, ao término da fase negocial, deixara pendente de confirmação, ou seja, o seu consentimento em obrigar-se pelo pacto. Parlamentos nacionais não ratificam tratados, primeiro porque não têm voz exterior, e segundo porque, justamente à conta de sua inabilidade para a comunicação direta com Estados estrangeiros, nada lhes terão prenunciado, antes, por assinatura ou ato equivalente, que possam mais tarde confirmar pela ratificação.”
Ainda segundo o mesmo ilustre professor o entendimento acertado de ratificação deve ser tido como “o ato unilateral com que o sujeito de direito internacional, signatário de um tratado, exprime definitivamente, no plano internacional, sua vontade de obrigar-se.”[8]
Traçadas as principais nuances a respeito do processo de ratificação/incorporação dos tratados internacionais, algumas considerações entendemos necessário destacar.
Inicialmente as fases, na ordem que foram aqui elencadas, não refletem, necessariamente, a prática diplomática brasileira. Isto porque a referida prática diplomática não é unívoca. Tratados há em que, após a assinatura e o decreto legislativo, primeiro ocorre a ratificação para somente após advir o decreto do executivo. Entretanto, salientamos, que em outros acordos internacionais ocorre o contrário, vindo a ratificação somente após o decreto presidencial.
O que se pode asseverar é que tem havido uma preferência pela prática ressaltada na primeira hipótese, desta forma teríamos o seguinte procedimento: a) assinatura; b) decreto legislativo; c) ratificação; d) decreto executivo.
Em nossa modesta opinião referido procedimento não é o mais acertado, isto porque o Brasil estará se obrigando internacionalmente sem que haja qualquer norma interna indicativa do cumprimento das disposições veiculadas no acordo, pois, não se pode olvidar, o Supremo Tribunal Federal entende que somente com o decreto presidencial referidas disposições passam a ter vigência/aplicabilidade no ordenamento jurídico interno.
4. TRATADOS INTERNACIONAIS VEICULADORES DE DIRIETOS FUNDAMENTAIS
Grande é a controvérsia doutrinária a respeito dessa espécie de acordos internacionais. A gênese do referido embate era o artigo 5º, §2º da Magna Carta, antes da reforma constitucional empreendida pela Emeda Constitucional n. 45 de 2004. O normativo assim dispunha: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Havia no Brasil uma forte corrente doutrinária que entendia, à luz do art. 5º, §2º da Constituição Federal, serem detentores de status constitucional os tratados de direitos humanos.
Segundo essa corrente se “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais”, contrario sensu, os direitos fundamentais veiculados em pactos internacionais de que o Brasil seja parte assumem indubitável hierarquia constitucional.
A respeito, vale transcrever interessante entendimento do constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho: “As constituições, embora constituem a ser pontos de legitimação, legitimidade e consenso autocentrados numa comunidade estadualmente organizada, devem abrir-se progressivamente a uma rede cooperativa de metanormas (“estratégias internacionais”, “pressões concertadas”) e de normas oriundas de outros “centros” transnacionais e infranacionais (regionais e locais) ou de ordens institucionais intermediárias (“associações internacionais”, “programas internacionais”). A globalização internacional dos problemas (“direitos humanos”, “proteção de recursos”, “ambiente”) aí está a demonstrar que, se a “constituição jurídica do centro estadual”, territorialmente delimitado, continua a ser uma carta de identidade política e cultural e uma mediação normativa necessária de estrutura básicas de justiça de um Estado-Nação, cada vez mais ela se deve articular com outros direitos, mais ou menos vinculantes e preceptivos (hard law), ou mais ou menos flexíveis (soft law), progressivamente forjados por novas “unidades políticas” (“cidade mundo”, “Europa comunitária”, “casa européia”, “unidade africana”)”.
Prossegue o mesmo autor: “Se ontem a conquista territorial, a colonização e o interesse nacional surgiam como categorias referenciais, hoje os fins dos Estados podem e devem ser os da construção de “Estados de Direito Democráticos, Sociais e Ambientais”, no plano interno e Estados abertos e internacionalmente amigos e cooperantes no plano externo. Estes parâmetros fortalecem as imbricações do direito constitucional com o direito internacional. (...) Os direitos humanos articulados com o relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável para o constitucionalismo global. O constitucionalismo global compreende não apenas o clássico paradigma das relações horizontais entre Estados, mas no novo paradigma centrado: nas relações Estado/povo, na emergência de um Direito Internacional dos Direitos Humanos e na tendencial elevação da dignidade humana a pressuposto ineliminável de todos os constitucionalismos. Por isso, o Poder Constituinte dos Estados e, conseqüentemente, das respectivas Constituições nacionais, está hoje cada vez mais vinculado a princípios e regras de direito internacional. É como se o Direito Internacional fosse transformado em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais (cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das normas do jus cogens internacional) O Poder Constituinte soberano criador de Constituições está hoje longe de ser um sistema autônomo que gravita em torno da soberania do Estado. A abertura ao Direito Internacional tendencialmente informador do Direito interno”.[9]
Observa-se do aludido, não só a impropriedade dos ordenamentos jurídicos hermeticamente fechados, bem como a imprescindível necessidade de maior fluência entre os sistemas jurídicos interno e internacional, pois que buscam, em determinadas matérias, os mesmos objetivos.
Nessa “avalanche globalizante” é que vem à tona o artigo 5º, §2º (pré-reforma) da Constituição Federal, justamente a propiciar ao constitucionalismo moderno incorporar normas debatidas na seara internacional, mantendo-se em sintonia com as novas tendências e garantindo ao seu povo a introdução de direitos advindos da constante evolução do ser humano.
Ainda, militando a favor da natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, tem-se a sua natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. Acompanhemos o raciocínio explicitado com maestria pela Prof. Flávia Piovesan[10]: “Este reconhecimento se faz explícito na Carta de 1988, ao invocar a previsão do art. 5º, parágrafo 2º. Vale dizer, se não se tratasse de matéria constitucional ficaria sem sentido tal previsão. A Constituição assume expressamente o conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que estes direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional. Neste sentido, afirma Canotilho: “O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao “texto” da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios não escritos, mais ainda reconduzíveis ao programa normativo constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas”. Os direitos internacionais integrariam, assim, o chamado “bloco de constitucionalidade”, densificando a regra constitucional positivada no parágrafo 2º, do art. 5º, caracterizada como cláusula constitucional aberta”.
Salientava a prof. Piovesan:
“Essa conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. A este raciocínio se acrescentam o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, o que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais. Esta conclusão decorre ainda do processo de globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional – abertura que resulta na ampliação do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar preceitos asseguradores de direitos fundamentais”.
E conclui:
“Logo, por força do art. 5º, §§1º e 2º, da CF/1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais natureza de normas constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata[11].”
Ocorre que, após a reforma constitucional já mencionada (EC 45/2004) passou-se a exigir quórum diferenciado para que o tratado veiculador de direitos fundamentais ingresse no ordenamento jurídico pátrio com status constitucional, é dizer, a EC 45/2004 trouxe como requisitos para o status diferenciado do pacto internacional a aprovação na Câmara e no Senado Federal por maioria de três quintos dos votos dos membros, em dois turnos.
Vale conferir:
Art. 5º
(...)
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004
Ante referida inovação, lembra André Lupi que “o padrão de texto dos Decretos Legislativos não faz registro ao quórum de aprovação. Geralmente resume-se o Decreto Legislativo a dois artigos, um declarando a aprovação do tratado pelo Congresso e outro determinando sua vigência (do Decreto e não do tratado) a partir da sua publicação. Deste modo, somente uma consulta aos registros históricos das votações poderia apontar, eventualmente, o atendimento à exigência da maioria qualificada de três quintos[12]”.
Portanto, afora as considerações sobre o direito intertemporal e a interpretação a ser conferida aos tratados internacionais veiculadores de direitos humanos acolhidos pelo Brasil antes da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, tem-se que atualmente há necessidade de observância do procedimento destinado às emendas constitucionais para conferir status constitucional a estas normas de direito internacional.
5. CONCLUSÃO
Tendo perscrutado as principais características dos instrumentos internacionais e ultrapassando a discussão sobre as teorias que gravitam em torno do assunto, no que tange à relação existente entre o sistema jurídico interno e o internacional, pudemos descrever o entendimento acerca de como as normas contidas nos pactos são incorporadas no direito interno e acordadas definitivamente na seara internacional.
Relacionando os tratados que excepcionam a regra geral, adentramos na controvérsia sobre os pactos de direitos humanos, descrevendo as várias correntes existentes a respeito do tema, bem como o impacto causado pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004.
Assim, observamos que o artigo 5º, §2º da Constituição Federal propiciava a construção de um caminho permanentemente aberto à entrada de normas que digam respeito a direitos da pessoa humana e que eram introduzidas diretamente para o núcleo da Carta de Princípios.
Abstraia-se tal conclusão, além do próprio conteúdo do normativo constitucional, da globalização dos direitos fundamentais, do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e da interpretação ótima dos dispositivos que veiculam direitos fundamentais.
Com a reforma constitucional imprimida pela EC n. 45/2004 observamos que os tratados veiculadores de direitos humanos, atualmente, demandam atendimento do procedimento exigido para a aprovação das emendas constitucionais para poderem alçar à condição equivalente à de norma constitucional.
Portanto, os tratados internacionais de direitos humanos continuam a ter tratamento diferenciado na legislação pátria, podendo ser galgado à condição de norma constitucional, muito embora, atualmente, por meio do dificultoso, desnecessário e infeliz procedimento instaurado com a EC 45/2004.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DOLINGER, JACOB. Direito Internacional Privado (parte geral). 5ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
LUPI, ANDRÉ LIPP PINTO BASTOS. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais “100 anos” – doutrinas essenciais – Direitos Humanos. Coords. Flávia Piovesan e Maria Garcia. Editora Revista dos Tribunais, 2011.
PIOVESAN, FLÁVIA. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ª edição. São Paulo: Max Limonad, 2000.
PIOVESAN, FLÁVIA. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais “100 anos” – doutrinas essenciais – Direitos Humanos. Coords. Flávia Piovesan e Maria Garcia. Editora Revista dos Tribunais, 2011.
REZEK, JOSÉ FRANCISCO. Direito Internacional Público – curso elementar. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1995.
8. BIBLIOGRAFIA
CANOTILHO, J.J.GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição. Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 2000.
SILVA, JOSÉ AFONSO. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª edição, revista e atualizada nos termos da Reforma Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
TEIXEIRA, JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES. Curso de Direito Constitucional, texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
[1] Rezek, José Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar, pág. 14;
[2] Ibidem, pág. 18.
[3] A “Santa Sé” também tem legitimidade para firmar tratados internacionais.
[4] Direito Internacional Privado (parte geral), pág. 85.
[5]International Law. 2º ed. London, Sweet & Maxwell, 1992 Apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional; pág. 99;
[6] Lupi, André Lipp Pinto Bastos. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais “100 anos” – doutrinas essenciais – Direitos Humanos. Coords. Flávia Piovesan e Maria Garcia. Editora Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 34.
[7] Direito Internacional Público – curso elementar; pág. 52,53.
[8] Ibidem, pág. 54;
[9]Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Livraria Almedina, 1998 Apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, pág. 74, 75;
[10] Direitos Humanos ..., pág. 76,77;
[11] Piovesan, Flávia. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil. Revista dos Tribunais “100 anos” – doutrinas essenciais – Direitos Humanos. Coords. Flávia Piovesan e Maria Garcia. Editora Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 218/219.
[12] Lupi, op. cit., pág. 35.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALLO, Ronaldo Guimarães. Tratados internacionais: sinopses de um instrumento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jan 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37923/tratados-internacionais-sinopses-de-um-instrumento. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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