I – INTRODUÇÃO
A desconsideração inversa da personalidade jurídica tem sido vista em recentes julgados em direito de família que envolvam partilha de bens, dívida de alimentos, inclusive os compensatórios ou sociais, de natureza indenizatória, como forma de reprimir consortes que desviam o seu patrimônio e os bens do casal para pessoa jurídica, controlada de forma pessoal ou por interposta pessoa, com a finalidade de prejudicar o cônjuge ou o companheiro quando da ruptura da união.
II – A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A desconsideração inversa da personalidade jurídica não se confunde com a desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil de 2002, aplicada nos casos de abuso de personalidade, “caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial” em que “pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Tanto a desconsideração inversa da personalidade jurídica como a desconsideração da personalidade jurídica têm como escopo combater o abuso de direito, entretanto, a primeira técnica visa adentrar no patrimônio da pessoa jurídica, não para pagamento de dívida da sociedade empresária, e sim das relações jurídicas enquanto pessoa natural de seus sócios, como aquelas oriundas do casamento ou da união estável.
Em outras palavras, na desconsideração inversa da personalidade jurídica, ao invés de responsabilizar o controlador por dívidas da sociedade, o juiz desconsidera a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação particular do sócio, devedor de alimentos e ou de bens para entrega a ex-consorte por direito à partilha.
A alegação comum de que o artigo 50 do Código Civil somente permitiria responsabilizar o sócio da pessoa jurídica, e não o inverso, não sido acolhida pelos tribunais. É o que se vê do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, recurso especial 1.236.916/RS, julgado em 22/10/2013, onde a relatora, a ministra Nancy Andrighi, entendeu que a desconsideração inversa tem largo campo de aplicação no direito de família, em que a intenção de fraudar a meação leva à indevida utilização da pessoa jurídica.
É do aresto acima mencionado, verbis:
01. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio.
02. Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal.
03. Na seara doutrinária, quem primeiramente tratou do tema, foi o Prof. Fábio Konder Comparato, em sua obra "O Poder de Controle na Sociedade Anônima" (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008), da qual se extrai o seguinte ensinamento:
Aliás, a desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte do negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto. (p. 464)
04. Na mesma senda, o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho:
Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio (Bastid-David-Luchaire, 1960:47). (Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa , 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 65) (g.n.)
Com o mesmo objetivo da conhecida disregard doctrine, a desconsideração inversa da personalidade jurídica pretende desencobrir o manto fictício, o véu que separa os patrimônios do sócio e da sociedade empresária, para buscar o patrimônio que pertence ao cônjuge ou ao companheiro que se pretendia lesar.
E pouco importa se o consorte que aponta a existência da máscara societária empresarial por parte do seu cônjuge ou companheiro seja também sócio da pessoa jurídica, pois a análise dos fatos e dos dados deverá apontar se, de fato, há intuito de fraudar a lei, de lesar a outra parte, de lhe furtar patrimônio devido.
No caso do recurso especial 1.236.916/RS, a parte considerada lesada pelos atos do seu ex-consorte detinha apenas 0,18% das cotas sociais, parcela mínima que evidenciou intuito fraudatório em amplo sentido, tendo em vista que inclusive o ex-cônjuge geria a empresa.
A teoria da aparência do direito consiste em permitir que certas situações meramente aparentes e que não correspondam a realidade passem a ter validade jurídica como se fossem verdadeiras, com a finalidade de proteger terceiro de boa-fé, no caso, o cônjuge ou o companheiro lesado, de modo a não prestigiar a fraude à lei e também evitar o descrédito no poder judiciário.
Colhe-se do egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina em caso que versou sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica, verbis:
Agravo de Instrumento n. 2010.073954-2, da Capital
Relator: Des. Carlos Prudêncio
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. DECISÃO QUE DESCONSIDEROU INVERSAMENTE A PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE FRAUDE E QUE OS SÓCIOS NÃO AGIRAM DE FORMA ILEGAL. TODAS AS PROPRIEDADES MÓVEIS E IMÓVEIS UTILIZADAS PELO AGRAVANTE ESTÃO EM NOME DAS EMPRESAS. INEXISTÊNCIA DE BENS EM SEU NOME.
"Para a desconsideração inversa da personalidade jurídica de uma empresa é necessário que reste demonstrado nos autos o desvio de bens da pessoa física do sócio para a pessoa jurídica da qual possua controle absoluto, continuando ainda a usufruir de tais bens" (AI n. 2010.081795-6, Des. Saul Steil, fl. 72).
In casu, verifica-se claramente nos autos que o agravante utiliza-se de suas empresas para encobrir seus bens, não possuindo qualquer imóvel ou móvel em seu nome, colocando todos em propriedade da empresa (...).
Assim, há a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica pois "o requerido se vale da empresa para mascarar a própria vida patrimonial, dado que, injustificadamente, não possui bens em seu nome, nem numerário o bastante ao pagamento do débito considerável. Impedir a desconsideração inversa da personalidade, neste caso particular, implica em prestigiar a fraude à lei, e ao descrédito à Justiça" (Juiz de Direito Flavio Andre Paz de Brum, na Ação Cautelar de Sequestro n. 023.10.049446-6, fl. 149).
INTIMAÇÃO DA EMPRESA QUE TEVE SUA PERSONALIDADE DESCONSIDERADA. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE. EXECUTADO É SÓCIO MAJORITÁRIO E ADMINISTRADOR DA REFERIDA EMPRESA. PRINCÍPIO DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAL. FALTA DE INTIMAÇÃO DA EMPRESA RÉ. INTIMAÇÃO DO SÓCIO-PROPRIETÁRIO. ATO CONVALIDADO. TEORIA DA APARÊNCIA.
Visando a celeridade e economia processual tendo em vista que se trata de execução de alimentos, e a demora no julgamento castigará ainda mais a alimentante que tem, atualmente, seu direito obstruído, a medida mais acertada é a supressão deste ato processual, intimação da empresa, uma vez que o agravante é seu sócio majoritário, além de ser o administrador isolado, podendo intervir caso entenda existir qualquer prejuízo à empresa.
Aplica-se ainda, a Teoria da Aparência de Direito, a qual consiste em permitir que certas situações meramente aparentes e que não correspondem a realidade passem a ter validade jurídica como se fossem verdadeiras, objetivando a proteção do terceiro de boa-fé, no caso, a alimentante, na busca de um processo célere, justo e, por via indireta, preservando a credibilidade do ordenamento jurídico como um todo.
NECESSIDADE DO CHAMAMENTO DA ESPOSA AOS AUTOS. NÃO CONFIGURADA. RESGUARDADA A QUANTIA REFERENTE AO QUINHÃO QUE A ESPOSA TEM POR DIREITO DECORRENTE DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. RECURSO NÃO PROVIDO.
Resguardada a parte da esposa como meeira do agravante, não há qualquer prejuízo que justifique a necessidade de sua presença como parte no processo.
Distintamente do que dispõe o art. 47 do Código de Processo Civil, in casu, a decisão proferida pode muito bem ser executada sem que haja qualquer necessidade de citação ou intimação de terceiros, uma vez que todos os direitos e garantias estão assegurados, não havendo prejuízos.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento n. 2010.073954-2, da comarca da Capital (2ª Vara da Família) em que é agravante N. J. dos R., e agravada V. F. de J.:
A Primeira Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado no dia 4 de outubro de 2011, as Exmas. Desembargadora Denise Volpato e Desembargadora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt.
Florianópolis, 8 de novembro de 2011.
Des. CARLOS PRUDÊNCIO
Presidente e Relator
III – CONCLUSÃO
Nas hipóteses em que, por exemplo, o cônjuge ou o companheiro esvazia seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integraliza na pessoa jurídica ou repassa-o para outros sócios, por meio de contrato fictício de retirada da sociedade ou outros meios, com objetivo de frustrar a partilha ou eventual execução de alimentos, inclusive os compensatórios, aplica-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, tendo como núcleo normativo o artigo 50 do Código Civil, em interpretação extensiva em consonância com a propugnada teoria da aparência do direito.
IV – REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no recurso especial n. 1236916, do Rio Grande do Sul. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Julgamento em 22/10/2013. Publicação em 28/11/2013. Disponível em: http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=201100311609&pv=010000000000&tp=51. Acesso em: 12/12/2013.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Acórdão no agravo de instrumento n. 2010.073954-2, da Capital. Relator: Des. Carlos Prudêncio. Julgamento em 4/10/2011. Publicação em 24/11/2011.
Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal no Estado do Paraná. Membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduanda em Gestão Pública MBA pela FGV. Especialista em direito e processo do trabalho. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1687483075552641
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GASTALDI, Suzana. O judiciário contra as máscaras societárias no direito de família: a desconsideração inversa da personalidade jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2014, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37948/o-judiciario-contra-as-mascaras-societarias-no-direito-de-familia-a-desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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