RESUMO: O presente artigo busca analisar as características da nova sociedade global e a importância dos tratados internacionais, percebendo o seu disciplinamento no direito brasileiro e, sobretudo, as inovações na doutrina e na jurisprudência provocadas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, ao inserir o parágrafo 3° no art. 5° da Carta Magna, alterando a hierarquia normativa dos tratados no plano interno e fazendo gerar o chamado controle de convencionaldiade.
PALAVRAS-CHAVE: tratados internacionais; soberania metarial; supralegalidade; controle de convencionalidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O Direito Internacional no Plano Interno – 2.1. Evolução do Direito Internacional e Características da Atual Sociedade Internacional – 2.2. Relação entre Direito Internacional e Direito Interno – 2.3. Processo de Incorporação dos Tratados Internacionais – 3. Plano Normativo dos Tratados Internacionais do Direito Brasileiro – 3.1. Hierarquia e Força Normativa dos Tratados Internacionais – 3.2. Controle de Constitucionalidade de Tratados Internacionais – 3.3. Controle de Convencionalidade de Tratados Internacionais – 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
As relações jurídicas no plano internacional surgem da necessidade de relacionamento pacífico entre os Estados soberanos, os quais, em princípio, gozam de poder absoluto e incontrastável para se organizarem no plano político. A rigor, a própria organização política e jurídica de um Estado, dotado de soberania, lhe confere um sistema normativo próprio que lhe assegura uma regulação particular, fruto das conquistas e da história de cada nação. Ocorre que, a cada dia que passa, observamos gradativamente uma interferência maior da regulação do direito internacional no plano do direito interno. Mas como fica a soberania de um Estado e a sua regulação normativa interna face uma normatização no plano internacional? De que modo o direto interno é atingido? Nesse enfoque, temos a presença dos tratados e acordos internacionais incorporados no direito nacional.
De um lado, temos a cosmopolitanização do direito com a sociedade atual globalizada e ativos organismos internacoes, migrando-se para uma sistematização jurídica harmoniosa em todo globo. De outro lado, temos a regulação no plano interno e a própria soberania de um Estado, impedindo interferências externas indevidas. De fato, a soberania é elemento chave, sem a qual, inclusive, perde a razão de existir da própria regulação normativa internacional. Ou melhor, só há direito internacional porque, antes, há Estados soberanos. Com a emergência desses Estados soberanos e o interrelacionamento desenvolvido entre eles, surge, então, a necessidade de regulação no plano internacional, dando origem a uma chamada sociedade internacional, que é o conjunto dos Estados soberanos e suas emanações.
É nesse contexto que buscaremos analisar as relação entre o direito interno e o plano internacional, especificamente no Brasil e, sobretudo, no que tange à incorporação dos tratados internacionais no direito pátrio. Sabemos que a Emenda Constitucional n. 45/2004, ao inserir o parágrafo 3° no art. 5° da Carta Magna, alterou profundamente a hierarquia das normas no plano interno. A tradicional pirâmide kelsiana existente no direito brasileiro foi modificada para incluir dentre suas camadas, agora, as normas supralegais, além de certos tratados que ganham status de norma constitucional. Com isso, temos, então, dois níveis acima das leis: norma constitucional e norma supralegal. Para a defesa da primeira, temos o controle de constitucionalidade. Para a defesa da segunda, fala-se, hoje, em controle de convencionalidade. É sobre essa temática que nos propomos a analisar nesta breve apresentação.
2. O DIREITO INTERNACIONAL NO PLANO INTERNO
2.1. Evolução do Direito Internacional e Características da Atual Sociedade Internacional
Nos primórdios da civilização, o mundo vivia à base da força, os povos se relacionavam em atividades de comércio, mas a disputa ocorria de forma bélica, impérios tomavam o poder e o controle de outro por meio de guerras, espaços eram conquistados pelo uso da força. Com a queda do Império Romano, após a invasão pelos bárbaros, inicia-se a Idade Média, período que durou quase 1000 anos. No fim da Idade Média, há ainda o sistema de feudalismo, mas retoma-se o desenvolvmento das relações econômicas e da indústria, aliados ao comércio marítimo e incremento do crédito, tudo isso dentro de uma nova configuração política que fazia surgir as Cidades-Estado, reiniciando uma fase de interação comercial, política, social e, daí, surgindo as sementes do Direito Internacional. Algumas leis e tratados já começaram a surgir, principalmente as relativas ao comércio marítimo e a constituição de ligas de cidades comerciais.
Chega-se, então, ao que a doutrina considera de marco inicial e primeiro ato do direito internacional, que ocorreu com o Tratado de Vestfália, assinado em 1648, com o objetivo principal de pôr fim à Guerra dos trinta anos na Europa. Daí se inicia a primeira fase do Direito Internacional, chamado de direito internacional clássico. Com a assinatura desse Tratado, estavam lançadas as bases do surgimento do Direito Internacional, possibilitando o reequilíbrio europeu a partir do respeito à integridade nacional. Vale notar, então, que o direito internacional nasce exatamente criando fronteiras, distinguindo nações, respeitando a integridade territorial. Ou seja, garantir a soberania de um Estado é, portanto, característica da regulação no plano externo. Em outros termos, o direito internacional não surge para retirar a soberania de uma nação, ao contrário, assegura a soberania e a integridade de cada Estado soberano.
Além disso, outra premissa que marcou também aquele primeiro Tratado foi a chamada igualdade soberana, isto é, se para todos os Estados será respeitada a integridade nacional, logo, todos os Estados serão soberanos e, portanto, não há hierarquia entre soberanias, cada Estado soberano é igual para fins internacionais. Estabeleceu-se, ainda, a premissa da não intervenção em assuntos domésticos, cada nação poderia se organizar internamente, não poderia o plano externo intervir na forma de organização do Estado. De fato, todos esses princípios definidos nesse primeiro acordo internacional (Paz Vestfália) aplicam-se nos dias de hoje. Contudo, tivemos com o passar dos anos uma certa mitigação da independência absoluta do Estado no plano internacional. Saímos de um extremo (ausência de direito externo que protegesse a soberania dos Estados), e fomos para outro pólo (repeito ao poder absoluto, incontrastável e soberano de um Estado no plano interno). Hoje, tendemos a um equilíbrio, garantindo-se a soberania e, ao mesmo tempo, sem que a utilização desta comprometa ao resto do globo.
É nesse sentido que, em 1919, com o Tratado de Versalles, celebrado pelas potências europeias para garantir a paz e encerrar oficialmente a Primeira Guerra Mundial, inaugura-se uma nova fase no direito internacional, prevendo uma sociedade organizada das nações, proteção nas relações sociais, além de prever tribunal para solução de controvérsias. O Tratado de Versalles lança as sementes que mais a frente seriam consolidadas com a Carta da ONU de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, inaugurando mais uma fase do direito internacional, que agregou a proibição geral do uso da força, salvo por legítima defesa ou autorização pelo conselho de segurança. Entramos, então, na atual fase do direito internacional contemporâneo. Na verdade, a doutrina se divide nesse ponto, alguns autores falam em até oito fases do direito internacional. Mas de uma maneira sintética, podemos dizer que o Tratado de Vestfália (1648), o Tratado de Versalles (1919) e a Carta da ONU (1945), seriam os marcos que dividem bem as fases do direito internacional. Há, ainda, que já falei em uma última fase, inaugurada no final do século passado, com foco nas preocupações acerca da ameaça de sobrevivência da vida humana.
O direito internacional, portanto, nasce como um conjunto de normas jurídicas que buscam reger a relação entre Estados soberanos, bem como as inúmeras organizações internacionais que hoje se apresentam e, até mesmo, subsidiariamente, aos indivíduos nas suas relações internacionais, a fim de estabelecer uma relação harmoniosa e pacífica entre os povos. Atualmente, diante de todo esse contexto histórico e não se distanciando das raízes do direito internacional, que sempre foi garantir a soberania e igualdade entre os Estados, observamos uma nítida evolução no sentido da constitucionalização do direito internacional (incorporação de normas internacionais no plano doméstico), bem como da presença de órgãos internacionais, de certa forma, limitando a atuação dos Estados. Hoje, a sociedade global possui instituições parecidas com as existentes no plano interno, a se observar pelos inúmeros tribunais internacionais, como a corte internacional de justiça, corte permanente de justiça internacional, corte interamericana de direitos humanos, corte européia de direitos humanos, tribunais de integração econômica, além dos vários tribunais internacionais penais (TPI's), dentre outros, inclusive havendo tribunais com composição mista contendo juízes nacionais e internacionais. Além disso, as organizações mundiais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Esse fenômeno da globalização, inclusive, tem mudado o enfoque das relações internacionais. Antes, a aplicação dos tratados internacionais era feita com base em interpretação à luz dos juízos nacionais, mas, agora, passam a ser analisados pelos tribunais e cortes internacionais. Tudo isso demonstra que, nos tempos atuais, o direito internacional reveste-se de importância extrema, porque se antes eram características marcantes da sociedade internacional ser paritária e descentralizada (sem hierarquia e poder central), hoje, percebemos que tais características estão em franca mutação, cada vez mais surgindo organizações centralizando o poder e tribunais hierarquizando interpretações nos tratados. Com o passar do tempo, tem se observado que não importa mais apenas a interpretação nacional que um Estado confere a um tratado, mas sim a interpretação que o tribunal internacional respectivo o confere. Há uma nítida hierarquia se estabelecendo no plano internacional.
Na verdade, a soberania de cada Estado permanece, mas a regulação no plano externo ganha força. Há uma tendência de mutação nas características da sociedade internacional, antes totalmente paritária e descentralizada e, agora, com certa dose de hierarquia e centralização de poder em organizações e tribunais internacionais. Isso é exatamente o que se chama de constitucionalização do direito internacional, uma expressão doutrinária que retrata um fenômeno através do qual o direito internacional interfere na organização do direito interno a partir da própria internalização do direito internacional, movimento pelo qual a Constituição de um Estado soberano absorve internamente atos realizados externamente, dialogando com as normas internacionais a ponto, até mesmo, destas ganharem destaque de norma supra legal e, mais ainda, natureza de norma constitucional, como ocorreu com o Brasil a partir da EC 45/2004, inovando com o art. 5°, §3°, da Constituição Federal.
No direito brasileiro, os tratados de direitos humnaos incorporados já são considerados normas supralegais, havendo, inclusive, hipóteses em que são recepcionados até mesmo com força e estatura de norma constitucional. De toda forma, permanece a soberania dos Estados, porque esta é origem e razão de ser do direito internacional, contudo, agora, face às necessidades do mundo contemporâneo, sobretudo diante dessa visão moderna de direito internacional com a preocupação na preservação da vida humana, necessariamente temos a necessidade de se prever uma regulação mais forte e de organismos globais, os quais, em certas circunstâncias, atuam de forma hierárquica e com centralização de poder em relação aos Estados soberanos, vinculando a atuação destes. De toda forma, frise-se, novamente, que permanecem as bases do direito internacional, que é justamente a garantia da soberania dos Estados, pressuposto de sua existêcia.
Aliás, vale ressaltar que a soberania de um Estado é classificada por parcela da doutrina em soberania interna e externa, embora sem consenso. A soberania interna tratar-se-ia do poder interno regrado. É denominada soberania interna tão somente porque é uma emanação do poder, mas não haveria mais poder arbitrário, soberano internamente, absoluto e incontrastável. Essa concepção está absolutamente superada, hoje temos princípios explícitos e implícitos decorrentes do valor central da dignidade da pessoa humana que acabam por vincular o plano interno. Já a soberania externa, ou simplesmente soberania, seria o poder absoluto e incontrastável de um Estado, enquanto sua existência no plano internacional. Aqui há um paradoxo no direito internacional, pois um Estado soberano, por sua livre vontade, aceita compromissos internacionais que restringem a sua atuação livre. Ou seja, a própria soberania pode levar ao Estado assumir compromissos internacionais que irão reduzir a sua liberdade de atuação. Todavia, o Estado continua soberano, apenas se submete em certo ponto, por livre vontade, a uma vontade maior, conjunta, internacional.
Por isso é que um tratado internacional não diminui a soberania de um Estado, justamente porque é espelho da sobernia do Estado e a própria garantia desta, no plano material. De fato, a doutrina moderna fala que a igualdade soberana pode ser vista sob um ponto de vista formal ou material. A soberania formal todos os Estados a possuem. Nesse prisma, por exemplo, países assimétricos no globo, do mais rico ao mais pobre, possuem igual soberania. Já a soberania material (real) é a capacidade de um Estado, de fato, posicionar-se de forma soberana e autônoma. Aqui não há igualdade para todos. É aqui onde os tratados e acordos internacionais, bem como a existência de organismos e entidades internacionais, podem se inserir exatamente para equilibrar o sistema. Daí porque, longe de retirar a soberania, esta pode, até mesmo, ser reforçada.
Nesse ponto, observando a soberania no plano material, chega-se a conclusão de que em um sistema sofisticado de união de Estados, com a União Européia por exemplo, que chega até a possuir uma moeda própria, em um primeiro momento poderia até parecer que tal compromisso internacional, com hierarquia e regras próprias, reduziria a soberania dos Estados que dela participam. Mas ocorre justamente o contrário. Na realidade (soberania real) os Estados participantes ficam ainda mais fortalecidos, porque passam a ter soberania material ou real maior que aqueles outros que não estão aliançados (embora com igual soberania formal), considerando a possibilidade de abertura de mercado e livre comércio, fortalecendo a economia e, por consequência, as decisões políticas. Isso explica, de igual modo, porque para o Brasil é mais vantajoso vincular-se ao Mercosul.
É por isso que se diz que os compromissos internacionais, ao invés de mitigar a soberania, a reforça. Ademais, o mesmo se diga em relação à maior regulação e centralização de poder no plano internacional pelos organismos globais. O que seria, por exemplo, de um Estado soberano, mas sem nenhuma representatividade política e econômica no plano internacional? Certamente, se não tivesse o anteparo da sociedade global, que se apresenta exatamente por meio de seus organismos e tribunais internacionais, ficaria vulnerável a eventuais ações invasivas de outros Estados igualmente soberanos. Foi exatamente para garantir a paz mundial e, em última instância, preservar a vida humana, que tivemos o fortalecimento das relações no plano internacional. Desse modo, os tratados e os organismos internaconais não só respeitam a soberania formal dos Estados, como reforçam a sua soberania material ou real.
2.2. Relação entre Direito Internacional e Direito Interno
Toda essa percepção inicial é fundamental para se compreender a forma e a importância da atual regulação do direito internacional no plano interno. Contudo, sempre essa relação entre direito internacional e direito nacional foi alvo de intensos debates doutrinários. De que forma se dá essa relação? Não é simples distinguir quando as normas internas prevalecem (já que os Estados são soberanos) e quando as normas de direito internacional devem preponderar (porque a sociedade global assim exige). Nesse ponto, observando-se como o direito interno percebe e incorpora o direito internacional, costuma-se falar em duas correntes doutrinárias: (a) corrente monista (monismo); (b) corrente dualista (dualismo).
Para a doutrina monista, o direito interno e o direito internacional compõem um único ordenamento jurídico. Quer dizer, pelo monismo, se uma norma é válida internacionalmente será válida também nacionalmente. Nesse caso, teríamos um único ordenamento, composto por normas internas e normas internacionais. Aqui, não haveria qualquer processo de incorporação de normas internacionais pelo direito interno, eis que integram um mesmo sistema. O problema do monismo é a questão da hierarquia, pois se todas as normas, nacionais ou internacionais, fazem parte de um único ordenamento jurídico, em sendo o caso de haver conflito entre elas, qual norma prevaleceria, a norma interna ou a norma internacional? A partir daí surgiram subdivisões do monismo. A primeira, chamada de monismo internacionalista, afirmava a prevalência da norma internacional. Os tratados internacionais deveriam sempre ser cumpridos, porque a norma internacional representaria a vontade da comunidade global. A segunda, chamada de monismo nacionalista, afirmava que, embora o ordenamento jurídico fosse único, contemplando as normas internas e as normas internacionais, em caso de conflito entre estas, prevaleceria o direito nacional, valorizando o plano interno.
Por outro lado, contrapondo-se ao monismo, temos a corrente dualista, defendendo que são duas fontes distintas de direito, separando o direito interno do direito internacional. Ou seja, agora, não se trata mais de um único ordenamento composto por normas internas e normas internacionais, mas são duas ordens jurídicas distintas. Por consequência, para que uma norma internacional seja válida no direito interno faz-se necessário a sua incorporação. Nesse caso, considerando que o dualismo defente que o direito internacional e o direito interno são dois ordenamentos jurídicos distintos e autônomos entre si, o Estado, ao assumir um compromisso internacional, está somente se vinculando no plano internacional, o que ainda não traz qualquer repercussão no âmbito interno. Para que um compromisso internacional seja aplicável no plano interno é imprescindível, assim, a sua internalização. Daí resulta a teoria da incorporação dos tratados internacionais. Ao se falar em recepção de tratados pelo direito nacional necessariamente se estará frente à corrente dualista.
No dualismo, resolve-se o problema da colisão entre normas internas e normas internacionais, porque sendo dois ordenamentos jurídicos diferentes, a transposição de norma internacional faz com que esta se torne integrante do direito interno, passando a ser incorporada conforme os ditames do ordenamento nacional. Quer dizer, uma vez internalizada a norma internacional, ela passará a ter eficácia também no plano interno e, na hipótese de conflito de normas, já não mais irá se tratar de antinomia entre norma internacional e norma interna, mas tratar-se-á de duas normas nacionais. Contudo, se no monisto o problema a ser solucionado referia-se à hierarquia entre normas nacionais e internacionais, no dualismo, agora, o problema é outro, referindo-se ao processo de incorporação. É que, uma norma internacional decorrente de tratado internacional, o qual já vincula o Estado no plano externo no momento da celebração, não se reveste de força obrigatória interna enquanto não houver a sua incorporação. Assim, abre-se a possibilidade de responsabilidade no plano externo se não houver a efetiva internalização e aplicação da norma internacional no âmbito interno.
Com relação à corrente adotada pelo direito brasileiro, é de se observar que, a rigor, a Constituição Federal de 1988 não traz uma norma da qual se extraia expressamente o modelo adotado pelo direito pátrio para a relação entre direito interno e direito internacional, não havendo dispositivo constitucional que disponha se o nosso ordenamento jurídico é monista ou dualista, existindo apenas dispositivos esparsos na CF/88. Coube ao STF definir, firmando posicionamento de que o direito brasileiro adotou o dualismo. De toda forma, observamos nos arts. 49, I, e 84, VIII, ambos da Constituição Federal, um indicativo da corrente dualista. Após, com a inclusão dos parágrafos 3° e 4° no art. 5° da CF/88 pela EC 45/2004, ficou claro que o dualismo passou a ser adotado de forma expressa também pelo legislador constituinte. Nesse sentido, pacificada a opção pelo dualismo no Brasil, surge a necessidade, então, de bem observar os tratados internacionais quanto ao seu processo de incorporação no âmbito do direito interno, o que se passa a fazer agora.
2.3. Processo de Incorporação dos Tratados Internacionais
Tratados internacionais são acordos de vontades, com direitos e deveres, entre sujeitos de direito internacional. O primeiro elemento caracterizador de um tratado, necessariamente, é a existência de um pacto de vontades. Ou seja, não existe tratado consigo mesmo, não se trata de ato unilateral, mas decorre da vontade de dois (bilateral) ou mais (multilateral) Estados. O segundo elemento refere-se à celebração por sujeitos de direito internacional, o que abrange não só os Estados soberanos, mas também os sujeitos assemelhados, decorrentes das suas emanações, como organizações internacionais. Uma pessoa física não tem jus tratarum (poder de celebrar tratados), não é sujeito de direito internacional, assim como não o são organizações multinacionais privadas. São considerdos sujeitos no plano internacional apenas os Estados e as organizações internacionais que decorram de emanações dos próprios Estados soberanos. Outro elemento do conceito de tratados internacionais é que, por meio dele, surgem direitos e deveres aos signatários. Essas obrigações vinculam os Estados celebrantes. Quer dizer, se não tiverem força vinculante as normas acordadas não estaremos diante de um tratado internacional. Por fim, o último elemento caracterizador do tratado internacional é a sua submissão às normas de direito internacional.
Em suma, então, são quatro características que marcam os tratados internacionais: (i) acordo de vontades; (ii) legitimação aos sujeitos de direito internacional; (iii) presença de obrigações em normas com força vinculante; (iv) ato regido pelas normas de direito internacional. Estando presentes tais pressupostos, o ato celebrado será um tratado internacional, não importa a nomenclatura dada ao ato, seja pacto, acordo, tratado, protocolo, constituição, capa, convenção, enfim, tais ocorrências serão consideradas equivalentes no plano internacional, sobretudo para fins de responsabilização do Estado no plano internacional. Há exceções mas, em regra, não importa a denominação, presentes os pressupostos o ato terá natureza de tratado internacional. A forma dos tratados é escrita, caso contrário, aproximar-se-ia do costume internacional. Os tratados terão efeitos entre as partes que acordaram e, excepcionalmente, também terão o chamado efeito difuso, quando produzir efeitos para terceiros, em favor destes.
Por outro lado, apesar do tratado representar a vontade livre de Estados soberanos, nenhum acordo internacional pode ser celebrado contrariando as chamadas normas jus cogens, caso em que será nulo. A expressão jus cogens (lei coercitiva ou imperativa) serve para designar, no campo do direito internacional, uma norma peremptória geral que tenha o poder de obrigar os diversos sujeitos internacionais, devido à importância que sua matéria contém. Normas jus cogens, então, são normas imperativas que contém valores essenciais da comunidade internacional e só podem ser derrogadas por normas da mesma espécie. Reconhece-se que estejam gravadas como jus cogens as normas relacionadas à autodeterminação dos povos, proibição do uso ou da ameaça de uso da força, a soberania e igualdade dos Estados, a proibição do tráfico de seres humanos, a escravidão, genocídio, crimes contra a humanidade em geral, além de tantos outros consagrados no moderno repertório de leis internacionais construídas principalmente após a Segunda Guerra Mundial.
Tais normas não decorrem, portanto, de atos que obrigam os Estados de forma voluntária, não são atos de manifestação de vontade, mas são normas imperativas, cogentes (jus cogens). E nem se exige unanimidade de aceitação, exige-se que os elementos representativos da comunidade internacional tenham aceito como valor essencial, impondo uma obrigação erga omnes, podendo ser exigida por qualquer Estado da comunidade internacional. Além de obrigar as partes, todo instrumento munido de tal ferramenta terá prioridade sobre outros documentos que colidam com seus dispositivos. Assim, caso um determinado tratado entre em rota de colisão com uma norma internacional gravada pela adoção do jus cogens, será considerdo nulo. Logo, a norma jus cogens é superior a qualquer outra, porque contém valores essenciais à comunidade internacional, daí porque, hoje em dia, mesmo gozando de soberania, os Estados possuem limitação na celebração de tratados ou acordos internacionais.
Nos termos do entendimento da Corte Suprema brasileira, há quatro fases para que um tratado seja incorporado no direito pátrio. Essas fases têm apoio somente em dois artigos da Constituição Federal: art. 49, I, e art. 84, VIII. Nos termos do art. 49, I, da CF/88: "É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional". E, ainda, o art. 84, VIII: "Compete privativamente ao Presidente da República: VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional". Conforme entendimento do Supremo, unindo os arts. 49, I, e 84, VIII, da CF/88, chegamos à chamada Teoria da Junção de Vontades, da qual decorrem quatro fases para incorporação de tratado internacional ao direito interno: (a) assinatura; (b) referendo; (c) retificação; (d) promulgação.
A primeira fase da incorporação dos tratados internacionais diz respeito à assinatura, realizada após procedimento de negociação, sendo ato de competência do Chefe do Estado, referente à pré-disposição do Estado brasileiro em celebrar o tratado. Este ato é apenas o início do processo de formação e incorporação do tratado, contudo, obviamente, depois de assinado o tratado, o Brasil não poderá adotar medidas em sentido contrário, pelo princípio da boa-fé. O que pode ser feito é não concluir a incorporação e renunciar à assinatura. Mas não poderá assinar e, posteriormente, sem justo motivo, adotar postura divergente. A assinatura, portanto, demonstrando a vontade do Estado brasileiro de assinar o acordo, é o nascedouro do processo de incorporação do tratado internacional.
O referendo, por sua vez, é a segunda etapa desse processo de internalização de uma norma originada no plano externo. Trata-se de ato de competência do Congresso Nacional, a quem será encaminhado mensagem presidencial enviando o tratado assinado. Terá trâmite inicial na Câmara dos Deputados, onde é criado um Projeto de Decreto Legislativo (PDL), com posterior apreciação no Senado Federal. O projeto será objeto de deliberação no âmbito do Congresso Nacional, a quem cabe resolver definitivamente sobre os tratados, convenções e atos internacionais. Sendo o caso de ser aprovado, o Decreto Legislativo será promulgado pelo Presidente do Senado Federal, o qual possui dupla função: aprovaçao do tratado e autorização para sua ratificação.
Passamos, então, para a terceira fase da incorporação de um tratado no direito pátrio, que se refere à ratificação, ato realizado pelo Presidente da República e que encerra o processo de formação do tratado. É somente na ratificação que o tratado vincula normativamente o Estado brasileiro. Ressalte-se que é comum falar que na ratificação o tratado foi incorporado, o que de fato ocorre, porque nessa fase o Brasil já fica vinculado no plano externo. Contudo, aqui há uma sutil diferença entre formação e incorporação de tratados. A melhor técnica diz que com a ratificação o tratado foi formado, encerrado sua formação em relação ao direito externo, mas ainda não totalmente incorporado no plano interno, faltando a promulgação, necessária para qualquer ato normativo vincular no plano interno. Fala-se em formação do tratado justamente porque as três fases de manifestação de vontade para a celebração do tratado são assinatura, referendo e ratificação. Todos os atos realizados antes da ratificação apontavam somente para um futuro tratado, o que significa dizer que só há tratado internacionalmente válido após a ratificação, fase que encerra o processo de formação (manifestação da vontade) do tratado.
Concluído o processo de formação do tratado, este passa a ser válido no plano externo, mas não ainda no plano interno. Com a ratificação, o tratado torna-se formado e válido, passando a ser exigível no plano externo, contudo, no plano interno, a obrigatoriedade da sua observância ainda depende de uma última fase, que se trata o decreto de promulgação, também chamado decreto presidencial. Enquanto este não ocorrer fica válido o tratado tão somente no plano externo. A formação do tratado com a ratificação gera responsabilização do Estado no plano internacional, enquanto a incorporação do tratado com a promulgação gera a sua responsabilização no plano interno. Ou seja, a ratificação é o ato que inova a ordem jurídica internacional e o decreto de promulgação é o ato que inova a ordem jurídica nacional. A rigor, portanto, seriam três fases de formação (assinatura, referendo e ratificação) e uma fase de incorporação (promulgação) dos tratados internacionais. Mas quando se fala em processo de incorporação entende-se o conjunto das quatro etapas, da assinatura à promulgação.
3. PLANO NORMATIVO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO
3.1. Força Normativa dos Tratados Internacionais
Uma vez incorporada, a norma internacional passará a integrar o ordenamento nacional e terá eficácia também no plano interno. É o que ocorre no direito brasileiro, que adota o dualismo, onde o direito nacional e o direito internacional constituem-se em dois ordenamentos jurídicos distintos, por isso, enquanto não incorporada a norma internacional não há possibilidade de conflito. Por outro lado, depois de incorporada no plano interno, a norma internacional passa a ter verdadeira força de norma de direito interno. Por isso se faz necessário perceber com que força normativa ingressa no ordenamento pátrio o tratado internacional. Isto porque, em todo ordenamento jurídico é possível existirem conflitos entre normas internas, logo, igualmente poderão haver conflitos em que uma das normas internas envolvidas seja aquela decorrente de um tratado internacional submetido ao processo de incorporação. Daí resulta a necessidade de saber como o ordenamento pátrio recepciona os tratados. É necessário, então, definir qual a força normativa interna que os tratados possuem depois de incorporados.
Em regra, a hierarquia de um tratado incorporado é a mesma de uma lei ordinária federal. Essa é a regra geral, conforme entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, após a incorporação, o tratado é absorvido no direito interno com força normativa, via de regra, de uma lei ordinária federal, equiparando-se a esta. Aliás, esta interpretação pode ser retirada do próprio art. 102, III, "b", da CF/88, que assim dispõe: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal". E ainda, o art. 105, III, "a", da CF/88, que estabelece: "Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência".
Ora, se cabe recurso extraordinário ao STF de decisão que incidentalmente declare a inconstitucionalidade de tratado, obviamente, esta espécie possui hierarquia inferior à Constituição. Por outro lado, os dois citados dispositivos cuidam bem de dar tratamento equivalente entre lei federal e tratados internacionais, sempre inserindo-os no mesmo regramento. Daí porque, indubitavelmente, os tratados incorporados equiparam-se à lei ordinária federal, conforme entendimento da Suprema Corte. Contudo, existe exceção a essa regra, que se refere aos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos. Com a inclusão do §3° ao art. 5° da Constituição Federal pela EC n.° 45/2004, eleva-se ao status de emenda constitucional os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados na forma de emenda constittucional: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Na verdade, quando a Constituição de 1988 entrou em vigor, o STF adotava o entendimento de que qualquer tratado internacional teria o status de lei ordinária. No entanto, alguns doutrinadores começaram a sustentar que nem todos os tratados tinham o status de lei ordinária, mas tão somente aqueles que não tratassem de direitos humanos. Caso fossem relacionados à matéria afeta aos direitos humanos teriam status de norma constitucional. Sustentavam essa tese com observância no art. 5º, § 2º, da CF/88: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. De fato, trata-se de uma concepção material dos direitos fundamentais. Esta tese chegou a ter repercussão em alguns tribunais brasileiros, mas o STF manteve seu entendimento anterior, tratando os tratados incorporados no direito pátrio com natureza de lei ordinária. Diante disso, a Emenda nº 45/2004 introduziu o §3º ao art. 5º da CF/88, estabelecendo expressamente que em caso do tratado internacional versar sobre direitos humanos e for aprovado com o quorum de emenda, terá status de norma constitucional.
Assim, temos, por regra geral, que os tratados incorporados no direito interno passam a ser lei ordinária federal, contudo, se tratarem de direitos humanos e forem aprovados na forma de emenda constitucional, passará a ser considerada norma constitucional. O procedimento de incorporação dos tratados de direitos humanos com status de emenda constitucional segue a mesma regra dos tratados comuns, submetido por decreto legislativo e seguindo os trâmites normais. Apenas se seu conteúdo tratar de direitos humanos e sua aprovação for com mais de 3/5 dos votos nas duas casas do Congresso, então equiparar-se-á à emenda constitucional. Portanto, o procedimento é o mesmo, o que muda apenas é o conteúdo e o quorum de aprovação para fins de aquisição do status constitucional. Vale ressaltar que os tratados anteriores que versem sobre direitos humanos não adquiriram automaticamente status constitucional, sendo necessário ser submetido à nova aprovação, nos termos do referido art. 5°, §3°, da CF/88, para adquirir tal natureza constitucional.
Assim, temos bem caracterizado, então, duas possíveis situações: em caso de tratado que verse sobre direitos humanos e tenha aprovação na forma de emenda, terá status de norma constitucional, caso contrário, segue a regra geral do tratado incorporado como lei ordinária federal. Mas indaga-se: e se o tratado internacional versar sobre direitos humanos e não for aprovado na forma de emenda, o que ocorre? Nesse ponto, tivemos importante alteração na famosa e tradicional pirâmide kelsiana adotada no ordenamento jurídico brasileiro. Sabemos que, desde sempre, tivemos três níveis no sistema jurídico brasileiro: normas constitucionais; leis em sentido amplo (espécies normativas primárias); e atos infralegais (espécies normativas secundárias). Ocorre que no RE 466.343/SP o Supremo Tribunal Federal inseriu mais um nível na tradicional pirâmide, estabelecendo que, se o conteúdo do tratado internacional for direitos humanos mas não tiver aprovação com o quórum de emenda constitucional, passará a ter natureza de norma supralegal. Ou seja, ficará hierarquicamente acima das leis, porém, abaixo das normas constitucionais.
Na verdade, quando o STF decidiu o citado RE 466.343/SP, estava decidindo sobre o Pacto de San José da Costa Rica que só permitia prisão por dívida no caso de inadimplemento de obrigação alimentar. O Decreto-lei 911/69 (recepcionado pela CF/88 como lei ordinária) falava da prisão do depositário infiel. Mas o Brasil assinou o Pacto de São José da Costa Rica, que só permite a prisão civil por ocasião da obrigação alimentar. Como o STF entendeu que este Pacto tem caráter de norma supralegal, superior ao decreto (lei infraconstitucional), não poderá mais haver prisão do depositário infiel. Logo após, o Supremo editou a sua Súmula Vinculante n. 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Alguns questionam se o Pacto de São José da Costa Rica, ao estabelecer que somente pode haver prisão civil em caso de inadimplemento de obrigação alimentar, estaria violando a Constituição Federal, especificamente seu art. 5°, LXVII, que possibilita a prisão civil também do depositário infiel. De fato, não há violação. O referido Pacto está ampliando um direito (liberdade), nesse sentido, não se vislumbra ofensa ao mandamento constitucional, embora alguns entendam que há redução de um direito fundamental do credor. Predomina a posição do STF no sentido de que prevalece o Pacto, com força supralegal.
Com a decisão proferida no RE 466.343/SP, posteriormente ratificada pela Súmula Vinculante n. 25 do STF, houve uma revisão da jurisprudência da Suprema Corte, nascendo a chamada Teoria do Duplo Estatuto dos Tratados de Direitos Humanos: se forem aprovados nas duas Casas com quórum qualificado na forma do art. 5°, §3°, da CF/88, terão status de norma constitucional, caso contrário, se o tratado internacional de direitos humanos não for aprovado nos moldes do art. 5°, §3°, da CF/88, passa a ter força de norma supralegal, ficando abaixo da Constituição, mas acima das leis. Com isso, o STF acabou conferindo aos tratados internacionais uma tríplice hierarquia, podendo, a depender do caso, ter natureza de lei ordinária federal, norma supra legal, ou status constitucional, do seguinte modo: a) tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos e forem aprovados na forma do art. 5°, §3°, da CF/88: terão status de norma constitucional; b) tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos e não forem aprovados na forma do art. 5°, §3°, da CF/88: terão status de norma supralegal; c) quaisquer tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos: terão status de lei ordinária federal.
Portanto, conforme recente entendimento do STF, tivemos alteração na pirâmide kelsiana no ordenamento jurídico brasileiro, que agora passa a ser formado por 4 degraus em sua escala normativa hierarquizada: (i) na base da pirâmide, temos os atos infralegais, aqueles que estão abaixo da lei, são os regulamentos, decretos, portarias, instruções normativas, cuja função é regulamentar a lei que lhe é superior, sendo o nível mais baixo da pirâmide; (ii) acima, temos a lei, assim entendida em sentido amplo a conter todas as espécies normativas primárias, presentes no art. 59 da CF/88: lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo, resoluções legislativas; (iii) o terceiro nível se refere exatamente à inovação advinda a partir das normas supralegais. Se antes só haviam três níveis hierárquicos, com as leis ocupando toda a faixa intermediária da pirâmide, hoje, o STF criou mais um nível escalonado, inserindo os tratados internacionais de direitos humanos não aprovados na forma do art. 5º, §3º, CF/88, dotanto-os de natureza supra legal; (iv) por fim, o primeiro degrau, no topo da Pirâmide, está a Constituição, resultado do poder constituinte originário, bem como do poder constituinte derivado (emendas constitucionais), em relação a qual todo o resto da pirâmide deve obediência.
3.2. Controle de Constitucionalidade de Tratados Internacionais
Como vimos, a partir da teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos conferido pelo STF, temos uma tríplice hierarquia para os tratados internacionais incorporados no direito pátrio, podendo ter, a depender do caso, força normativa de: a) lei ordinária federal; b) norma supra legal; ou c) norma constitucional. Nesse sentido, considerando estas várias possibilidades de disciplinamento no ordenamento jurídico nacional, questiona-se: como se insere, então, o exercício do controle de constitucionalidade na esfera dos tratados internacionais? Para essa análise, se temos três formas de recepção dos tratados no direito interno, obviamente, temos também três possibilidades para a atividade de controle em relação aos tratados. Vejamos, então, cada possibilidade.
Inicialmente, analisemos a hipótese em que um tratado internacional verse sobre direitos humanos e seja aprovado na forma do art. 5°, §3°, da CF/88, caso em que a Constituição é clara: os tratados internacionais aprovados nesses moldes serão equivalentes às emendas constitucionais. Isso significa que passarão a ser, de fato, normas constitucionais. Nesse plano, observa-se a possibilidade do controle de constitucionalidade ser exercido com o tratado internacional sendo o próprio parâmetro de controle, quando alguma lei infraconstitucional o violar. Ou seja, nesse primeiro caso, o objeto impugnado é determinada lei que viola um tratado internacional com status de norma constitucional. Aqui, faz-se importante, preliminarmente, esclarecer a diferença entre dois conceitos básicos do controle de constitucionalidade: (a) parâmetro de controle; e (b) objeto de controle.
O objeto do controle é o ato que vai ser submetido ao controle de constitucionalidade. Isto é, trata-se do ato impugnado supostamente violador do parâmetro. O objeto é a lei ou ato normativo cuja constitucionalidade vem a ser questionada para fins de controle. Já quando se fala em parâmetro de controle, está-se referindo às chamadas normas de referência ou paradigmas de controle, que são as normas da Constituição que podem ser invocadas para dizer que um objeto é ou não inconstitucional em face dela. Para se invocar uma norma constitucional como parâmetro, essa norma tem que ser formalmente constitucional. É o caso dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e sejam aprovados com status de emenda constitucional, na dicção do art. 5°, §3°, da CF/88. Contudo, se a norma tiver conteúdo de matéria constitucional, mas não tiver a forma constitucional, não servirá de parâmetro de controle de constitucionalidade. Exemplo disso seria um tratado internacional de direitos humanos (que traz normas materialmente constitucionais, porquanto direitos humanos se insere em matéria de direitos fundamentais), mas que não tenha sido recebido com status constitucional porque não foi aprovado na forma qualificada do art. 5°, §3°, da CF/88 (nesse caso, não se pode utilizálo como parâmetro de controle de constitucionalidade simplesmente porque consagra direitos humanos, pois não é norma constitucional formal).
Portanto, em primeiro plano, uma norma só servirá como parâmetro, paradigma, referência para o controle, se ela for formalmente constitucional, como é o caso dos tratados de direitos humanos aprovados como emenda constitucional. De fato, existem normas que não estão expressas no texto da Constituição mas que são consideradas formalmente constitucionais e servirão de parâmetro de controle, porque fazem parte do chamado Bloco de Constitucionalidade, teoria absorvida por influência francesa para designar todas as normas que tenham valor constitucional. É possivel, então, haver normas formalmente constitucionais que não possuam texto expresso dentro da Constituição. Isso significa que normas não expressas literalmente dentro da Constituição podem ser invocadas como parâmetros de controle se forem também consideradas formalmente constitucionais, como é a presente hipótese dos tratados de direitos humanos aprovados como emenda constitucional na forma do art. 5°, §3°, da CF/88.
A teoria do Bloco de Constitucionalidade vem sendo largamente utilizada na jurisprudência do STF, significando que a Constituição não se resume ao seu texto fechado, mas é possível haver também normas formalmente constitucionais que não estão contidas expressamente nela, servindo igualmente como parâmetro de controle. Fariam parte do bloco de constitucionalidade, além da Constituição, também os princípios constitucionais implícitos, bem como os tratados internacionais de direitos humanos incorporados com status de emenda constitucional (art. 5º, §3º, CF/88). Tratam-se, pois, de elementos não expressos no texto da Constituição, mas que se tratam de normas formalmente constitucionais, a integrar o Bloco de Constitucionalidade. Por isso é que, hoje em dia, entende-se que a Constituição brasileira, apesar de ser reconhecidamente unitária (não esparsa), não se resume formalmente no seu texto escrito, mas também admite, como extensão dela, os princípios nela implícitos e os tratados de direitos humanos com status de norma constitucional. Portanto, as leis não bastam ser compatíveis com dispositivos textuais que integram a Constituição, mais que isso, também precisam ser compatíveis com todo o bloco de constitucionalidade, neste inseridos os tratados de direitos humanos aprovados com status de emenda constitucional.
Nesse caso, temos, então, um tratado internacional incorporado servindo como parâmetro de controle. Mas é possível, também, a hipótese de um tratado internacional incorporado servir de objeto de controle. Vimos o conceito de parâmetro de controle (no qual se adequam os tratados com força de norma constitucional), agora temos em vista o conceito de objeto de controle (regra geral dos tratados incorporados). Temos o caso, agora, em que o tratado é recebido como lei ordinária federal. Não versando sobre direitos humanos, os tratados internacionais terão status de lei ordinária federal, com hierarquia inferior à Constituição. Daí retiramos uma conclusão extremamente importante: se os tratados internacionais incorporados possuem hierarquia inferior à Constituição e são equiparados à espécie normativa de lei ordinária, é possível haver controle de constitucionalidade em face de tratados internacionais. Ou seja, nesse caso em que segue a regra geral de equiparação à lei ordinária federal, um tratado internacional poderá ser impugnado se violar a Constituição, caso em que passará a ser objeto de controle. Este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal.
O art. 102, I, "a", da Constituição Federal traz a competência do Supremo para julgar ação direta de inconstitucionalidade: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal". Note-se que o citado dispositivo nada fala acerca dos tratados. Contudo, embora o art. 102, I, "a" reste silente, entende a Suprema Corte que é implicação hierárquica lógica, decorrente do princípio da supremacia da Constituição, a possibilidade de controle de constitucionalide de tratados em virtude da natureza interna de lei ordinária federal que passam a possuir após a incorporação. Assim, é possível ADI, ADPF, ADC, em face de tratados internacionais. No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de tratado, ocorrerá o que a doutrina chama de efeito paralisante, quando o tratado continuará vinculando o Brasil no plano externo, com responsabilidade internacional frente aos demais signatários, mas no plano interno o tratado perde a sua validade. Nesse caso, deve o Supremo proceder à tecnica da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, até que o Presidente da República denuncie o tratado, quando só então será finalizada a relação no plano internacional.
Ademais, a possibilidade de controle de constitucionalidade também pode ser feita em sede difusa, como se extrai do art. 102, III, "b", da CF/88, que assim dispõe: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal". Ou seja, é possível determinada decisão de juízo inferior declarar a inconstitucionalidade de tratado, o que indica ter havido, na hipótese, controle incidental de constitucionalidade, podendo ser reapreciado em sede de recurso extraordinário pelo Supremo. Portanto, após a incorporação com status de lei federal, será possível o controle de constitucionalidade em face de tratado internacional, seja em controle concreto ou abstrato.
3.3. Controle de Convencionalidade de Tratados Internacionais
Até aqui, falamos de duas possibilidades: o tratado internacional como parâmetro de controle (se for aprovado com status de emenda constitucional na forma do art. 5º, §3º, CF/88) ou o tratado internacional como objeto de controle (se aprovado com status de lei ordinária federal). Ocorre que, como visto, com a decisão proferida no RE 466.343/SP pelo Supremo Tribunal Federal, tivemos uma revisão da jurisprudência fazendo nascer a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos e, por consequência, os tratados internacionais passaram a ter tríplice hierarquia no direito brasileiro, podendo ter natureza não apenas de lei ordinária federal (regra geral) ou de emenda constitucional (art. 5º, §3º, CF/88), mas, agora, abre-se a possibilidade de se tratarem de norma supralegal no caso de serem tratados internacionais sobre direitos humanos não aprovados na forma qualificada do art. 5°, §3°, da CF/88, hipótese em que nem terão status de norma constitucional e nem ficarão sendo simples lei ordinária. Temos, nesse caso, um tratado internacional com status de norma supralegal.
Nessa hipótese, quando o tratado não é parametro de controle (quando possui status de norma constitucional) e nem objeto de controle (quando segue a regra geral de lei ordinára), não se fala em controle de constitucionalidade. A doutrina passa a admitir, agora, o chamado Controle de Convencionalidade, quando o tratado internacional revestir-se de natureza de supralegalidade. Quer dizer, por um lado, os tratados incorporados com força de lei ordinária integram o nível dos atos normativos primários e podem ser objeto de controle de constitucionalidade. Por outro lado, os tratados com natureza de força constitucional incorporam-se no bloco de constitucionalidade e integram o nível das normas constitucionais, servindo de parâmetros de controle de constitucionalidade. Quanto aos dois, nenhum problema. Mas, e os tratados internacionais com força supralegal, como ficariam? É para esse caso, então, que temos o chamado Controle de Convencionalidade. Não falamos de controle de constitucionalidade nessa hipótese, pois uma norma supralegal não pode ser parâmetro de controle.
É que, como o próprio nome indica, controle de constitucionalidade refere-se ao fundamento de validade das normas infraconstitucionais em relação à Constituição (e não à norma supralegal). No controle de constitucionalidade o objetivo é a garantia da supremacia constitucional. Logo, a compatibilidade vertical para fins de controle de constitucionalidade é obtida justamente a partir da análise do fundamento de validade interno dos atos legislativos com relação às normas constitucionais, como se tivéssemos uma linha que liga o ato normativo inferior ao seu fundamento de validade acima, até chegarmos na Constituição, fundamento de validade de todo o sistema normativo. Nesse plano, analisando o ordenamento não do ponto de vista das diferentes possibilidades de forças normativas (aqui temos 4 níveis: normas constitucionais; atos supralegais; atos legais; atos infralegais), mas sim do ponto de vista dos fundamentos de validade interno (agora temos só 3 níveis: normas constitucionais; espécies normativas primárias; espécies normativas secundárias). Verificamos que, no caso das leis (espécies normativas primárias), estas não retiram o seu fundamento de validade a partir de eventuais atos supralegais, mas o seu fundamento é extraído diretametne da Constituição. Exatamente por isso é que, para fins de controle de constitucionalidade, há um salto das leis (ignorando os atos supralegais) direto para a Constituição, pois a validade daquelas é retirado diretamente desta.
Ou seja, entre as espécies normativas primárias (todas aquelas elencadas no art. 59 da CF/88: lei complementar, lei ordinária, medida provisória, lei delegada, decreto legislativo e resolução, salvo emendas constitucionais) e a Constituição, não há nenhum outro ato normativo que lhes confira o fundamento de validade. Existem, sim, os atos normativos supralegais (tratados internacionais de direitos humanos que não possuem status constitucional), mas não são estes que conferem o fundamento de validade das leis. A compatibilidade dos atos normativos no controle de constitucionalidade é verificado com relação às normas constitucionais, estas, sim, fundamento de validade daquelas. Ou seja, a Constituição é o fundamento de validade da lei. E, também, a Constituição é o fundamento de validade dos atos supralegais. Logo, por tudo isso, para fins de controle de constitucionalidade, colocamos no mesmo plano os atos supralegais (tratados internacionais de direitos humanos sem força constitucional) e os atos legais (espécies normativas primárias), porque ambos retiram seu fundamento de validade diretamente da Constituição.
Assim, por um lado, se uma lei violar um tratado internacional de direito humanos aprovado por 3/5 em 2 turnos (art. 5°, §3°, CF/88), será possível controle de constitucionalidade (bloco de constitucionalidade), servindo o tratado como parâmetro, o mesmo não ocorre com os tratados de direitos humanos incorporados sem força constitucional (atos supralegais). Nesse caso, qual é o controle cabível? Se não cabe controle de constitucionalidade (porque para fins de controle estão em mesmo patamar os atos legais e os supralegais, já que ambos retiram o fundamento de validade da Constituição), mas se o ordenamento admite uma força normativa superior que à das leis (natureza de supralegalidade), que tipo de controle caberia entre uma lei em face de um ato infraconstitucioal supralegal (tratados de direitos humanos não aprovados pelo quórum do art. 5°, §3°, CF/88)? É para esta hipótese que a doutrina tem falado no Controle de Convencionalidade, havendo quem prefira chamar, ainda, de Controle de Supralegalidade.
A rigor, não existe nenhuma ação específica para esse tipo de controle. Seria o mesmo que um controle de legalidade, se um ato infralegal violar uma lei, ou ainda, um tratado com status de lei ordinária. Tanto o controle de convencionalidade (supralegalidade) quanto o controle de legalidade são realizados por meio de ações ordinárias, não há ações próprias como ocorre no controle de constitucionalidade. Então, na prática, controle de convencionalidade teria o mesmo tratamento que o controle de legalidade, isto é, manejados por meio de ações ordinárias. A diferença é que no controle de convencionalidade temos uma lei violando um ato supralegal, enquanto no controle de legalidade temos um ato infralegal violando uma lei. Mas não há ação específica, esta só existe em sede de controle abstrato de constitucionalidade, com processo objetivo em que se busque a supremacia da Constituição. A violação a um ato supralegal não se trata de controle de constitucionalidade, justamente porque, para fins de controle, atos supralegais e atos legais inserem-se em um mesmo nível, já que, ambos, retiram o fundamento de validade diretamente da Constituição.
4. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, podemos verificar neste breve trabalho as características da nova sociedade global e atual presença de organismos internacionais proporcionando uma maior interferência da regulação do direito internacional no direito interno. Nesse enfoque, verificamos a importância dos tratados internacionais e, especificamente, o seu disciplinamento no direito brasileiro. Percebemos, ainda, que a Emenda Constitucional n. 45/2004, ao inserir o parágrafo 3° no art. 5° da Carta Magna, alterou profundamente a hierarquia das normas no plano interno. A tradicional pirâmide kelsiana existente no direito brasileiro foi modificada para incluir dentre suas camadas, agora, as normas supralegais, conforme atual entendimento do Supremo Tribunal Federal. É nesse contexto que surge, atualmente, o controle de convencionalidade, tema ainda recente no direito pátrio, mas que merece atenção da comunidade acadêmica, sobretudo quando se percebe caminhos pelos quais trilha a sociedade globalizada, no sentido de cada vez mais aproximar os Estados soberanos com a eliminação de fronteiras a partir de uma sistematização jurídica harmoniosa em todo globo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra de Carvalho. Do Disciplinamento dos Tratados Internacionais no Direito Brasileiro e o Surgimento do Controle de Convencionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jan 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37965/do-disciplinamento-dos-tratados-internacionais-no-direito-brasileiro-e-o-surgimento-do-controle-de-convencionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
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Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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