Resumo: Houve uma época recente (décadas de 1980 e 1990, no Brasil) em que pesquisas sobre micropoderes sociais tiveram forte presença na Academia, sobretudo devido a obras de Foucault. Normalmente eram estudos que separavam os macros dos micros poderes, atendo-se predominantemente a estes últimos. Muitos estudos interessantes, sobre prisões, hospitais e outras instituições de sequestro advieram em função do estudo de micropoderes. Mas será que é valido estabelecer uma dicotomia, um corte, entre os poderes, colocando, de um lado, os macros, e, de outro, os micros? Se há essa dicotomia, precisamos perguntar quais são os “donos” de um e de outro tipo de poder. Para Foucault, o poder não tem donos, é circular, todos têm poder. Entretanto, quando ele assim se posiciona, está referindo-se ao círculo de micropoderes. Caberia nesse círculo, o poder do Estado, o poder dos grandes monopólios, da burguesia? É o que buscaremos refletir neste artigo, tendo de antemão a hipótese de que o poder tem a característica imanente de ser desequilibrador e centralizador.
Palavras-chave: Poder. Macropoder. Micropoder. Dominação.
Abstract: There was a time (decades of 1980 and 1990, in Brazil) in which research on social micropowers had a strong presence at the Academy, especially due to works of Foucault. Usually they were separating studies the macros of the micros powers, predominantly the latter. Many interesting studies on prisons, hospitals and other institutions were studied according to the micropowers study. But is it valid to establish a dichotomy, a cut, between the powers, putting on one side, the macros, and on the other, the micros? If there is this dichotomy, we need to ask what are the "owners" of one and another kind of power. For Foucault, power has no owners, is circular, everyone has power. However, when he thus positions itself, is referring to the circle of micropowers. Would fit in that circle, the power of large monopolies, of the bourgeoisie? That's what we will reflect in this article, having be forehand that power has inherent feature be centralizer.
Key-words: Power. Macropower. Micropower. Domination.
Introdução
Veremos neste texto que o poder tende invariavelmente a concentrar-se em mãos de poucos, a despeito das cruentas revoluções burguesas e socialistas, que lutaram contra poderes concentradores; a despeito da conquista da democracia representativa e do advento da modernidade civilizatória, que tiveram o absolutismo como um de seus principais inimigos. O poder somente se desconcentra, caso das sociedades democráticas burguesas, quando já é bastante alto e consolidado o seu grau de concentração, quando o Estado já está suficientemente consolidado sob o controle da classe dominante e com possibilidade mais do que suficiente para combater quaisquer ameaças à sua integridade. Isto é válido para quaisquer tipos de regime. Em nossa modernidade, até o presente momento, tanto o capitalismo quanto o socialismo têm o poder concentrado em poucas mãos, mesmo que ambos os regimes tenham discursos oficiais nos quais se apresentem enquanto democracia pela qual todos são iguais perante a lei . A história nos mostra que a democracia – por mais ampla que seja –, é sempre colocada sob limites por parte da minoria que de fato controla o poder. A desconcentração do poder, que pode ser vista como um exercício pleno de democracia, e o é em parte, é uma forma bastante eficaz de o poder, entendido aqui como macropoder, estender suas ramificações, suas artérias, por todo o corpo social, de forma a controlá-lo com mais eficiência. A democracia, então, só pode ser entendida como tal se não houver concentração de poder, algo que podemos imaginar em uma sociedade, uma comunidade ou um grupo que seja regido sob a forma de colegiado no qual haja um consenso (em lugar de maioria vencendo minoria, como no contrato social rousseauniano) sobre o que fazer em diversas situações que sejam comuns a todos ou que pelo menos afetem a um de seus membros.Uma sociedade, comunidade ou grupo utópico, portanto. Nem na Atenas democrática da Antiguidade tal utopia ocorreu, porque tratava-se também de uma sociedade com o poder concentrado em mãos de poucos, os senhores de terras e escravos, embora participassem do processo democrático todos os que eram cidadãos, que eram desnivelados em termos de poderes econômico, político (domínio da arte política, da arte retórica) e ideológico (domínio de saberes úteis para o exercício da vida pública, principalmente os saberes da área que hoje entendemos como sendo pertencentes às ciências humanas: filosofia, sociologia, literatura, etc.) . Na sociedade utópica que propusemos imaginar há pouco é fundamental, para a preservação da democracia, que todos tenham mais ou menos o mesmo quinhão de poderes econômico, ideológico e político, mesmo assim haverá o risco constante de o poder concentrar-se em mãos de uma minoria, o que de fato ocorrerá caso tal sociedade não seja utópica.
O poder, então, por este nosso raciocínio, o qual pretendemos desenvolver neste texto, não existe em si e por si, não é algo que pode ser encontrado na natureza em forma pura. Ele somente existe enquanto prática, enquanto exercício, e, para tanto, é imprescindível haver pelo menos duas pessoas a disputá-lo. Na prática, o poder estará sempre concentrado em poucas mãos, isto é mais aprofundado quanto mais reservas econômicas, políticas e ideológicas houver disponíveis para serem disputadas. A ideia de uma repartição equitativa dos bens (econômicos, políticos e ideológicos) de uma dada sociedade é uma ideia utópica, dado que não há sociedade sem poder, nem poder que não seja concentrado e não seja oriundo de uma disputa de poder. De tudo o que até aqui foi dito podemos inferir que uma sociedade essencialmente democrática é uma sociedade sem um centro de poder, do que decorre que a democracia é uma utopia, a não ser que a qualifiquemos, como soe acontecer nos estudos sobre este tema, nos quais os autores utilizam várias denominações: democracia grega, democracia direta, democracia indireta, democracia dos antigos, democracia dos modernos, democracia burguesa, democracia, representativa, democracia minimalista, democracia participativa, democracia procedural, etc.
Entendendo que o poder é um exercício de concentração de poder - a não ser no momento de transição pela disputa de poder, quando há o que Gramsci denomina crise de hegemonia, na qual nenhum dos disputantes detém a concentração do poder -, vamos, neste artigo, buscar compreender se os chamados micropoderes são sempre uma ramificação dos macropoderes e, portanto, uma forma de reforçá-los, ou também podem ser uma oposição aos macropoderes e mesmo uma disputa com estes, como forma de se estabelecer uma nova forma de poder, um outro poder e, portanto, um outro Estado e uma outra sociedade em termos econômicos, políticos e ideológicos. Um outro modo de produção, para utilizarmos uma nomenclatura marxista. Como vivemos em uma sociedade capitalista, centraremos o
nosso estudo em uma sociedade deste tipo.
1. Sobre macropoderes
Se nos basearmos em autores clássicos da Filosofia Política que trataram da questão do poder, como Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Marx e Lênin, por exemplo, verificaremos que eles têm pelo menos três pontos em comum: 1) vêem o poder exclusivamente como dominação; 2) suas teorias de poder equivalem a projetos político-ideológicos em favor de uma classe ou grupo social; 3) centram seus estudos no macropoder Estado (e seus aparelhos), local concentrador de poder.
Uma definição de poder adequada a esses autores clássicos seria a weberiana, segundo a qual poder é uma ação social comunitária racional de um indivíduo ou grupo de indivíduos sobre outro indivíduo ou grupo de indivíduos visando impor a sua vontade, mesmo que à força. Dessa maneira, o poder é uma ação social racional pré-determinada com vistas a se obter basicamente dominação, obediência (WEBER, 1984, p.682).
Esse poder ,visto exclusivamente como dominação, como imposição da vontade de A sobre B, apóia-se em dois pilares: a força e um projeto político-ideológico. A força é uma salvaguarda sua, é algo latente que deve ser usado sempre que necessário. É algo indispensável para quem quer conquistar e/ou manter o poder, como aconselha Maquiavel (1996). O poder visto como dominação tem como substrato um projeto político-ideológico que visa impor-se hegemonicamente, que visa legitimar-se universalmente, buscando obter, para isso, o consentimento e a submissão dos dominados (MARX & ENGELS, 2002). Assim, na Idade Média Ocidental, por exemplo, a sociedade tinha como substrato do poder senhorial vigente o projeto político-ideológico do catolicismo, pelo qual o soberano era tido como um representante do poder divino. Maquiavel (1996) e Hobbes (2006) foram pioneiros em teorizar projetos político-ideológicos secularizados em favor do absolutismo, separando, portanto, o que era tido como sagrado do profano, fazendo com a política se liberasse do primeiro e fosse parte do segundo, fosse coisa de homens não mais de Deus. O capitalismo tem o liberalismo – com suas nuanças: de Locke a Friedman – como projeto político-ideológico que passa a imagem de que o Estado é um bem comum a todos, do que decorre que todos são tidos como iguais perante a lei. Já o “socialismo científico” – de Marx a Gramsci – tem o marxismo-leninismo como o seu projeto político-ideológico de poder, pelo qual o poder, isto é, o macropoder Estado, tem que ser tomado pela força revolucionária das armas empunhadas pelos proletários e têm que estar sob o controle destes contra seus inimigos, o que equivale à ditadura do proletariado, isto é, ditadura para a burguesia e seus aliados e democracia para o proletariado e seus aliados. Portanto, o marxismo tem uma visão de que o poder é um objeto de disputa, estando sob o controle da classe que vencer a disputa. Esse poder em disputa equivale ao Estado, através do qual a classe vencedora impõe seus modelos econômico, político e ideológico. A visão marxista, especialmente a visão marxiana, refuta a ideia de Estado como bem comum de todas as classes, sendo o Estado um artefato a serviço dos interesses da classe dominante e, por conseguinte, contra os interesses das classes dominadas, o que não implica que ele deixe de fazer concessões a estas últimas, pois isto faz parte do jogo para a manutenção do poder em mãos da classe que o detém. Em O capital (MARX, 1983), Marx mostra que as lutas dos operários foram decisivas para a conquista da redução da jornada de trabalho. Tais lutas fizeram a burguesia ceder em seus intentos de não reduzir a carga horária, a qual foi reduzida progressivamente. Entretanto,tais lutas, e muitas outras levadas a efeito pelos trabalhadores, não foram suficientes para fazer com que o Estado deixasse de ser um objeto a serviço dos interesses primordiais da burguesia, salvo nos raros casos em que houve revoluções socialistas exitosas, nas quais o poder deixou de estar concentrado em mãos da burguesia para concentrar-se em mãos do petit comité revolucionário.
A burguesia, mais do que qualquer classe ou grupo dominante, do passado e do presente, busca passar a impressão de que não tem e não quer ter o controle sobre o Estado, sendo tão-somente uma classe de mercado, estando o Estado sob o controle rotativo, em rodízio, dos políticos profissionais eleitos democraticamente para tal finalidade. É raro vermos um grande capitalista como chefe de Estado, como presidente da república, primeiro-ministro, quando isto acontece é por que, por coincidência, esse magnata é um político profissional, caso do Berlusconi na Itália, por exemplo. Há até casos em que presidentes da república, sob o capitalismo, vieram de origem humilde e até de origem socialista, anticapitalista. No Brasil, temos os exemplos, respectivamente, de Lula, que foi operário, e Dilma, uma ex-guerrilheira. Os dois se tornaram presidentes da república, eleitos pelo sufrágio universal, no entanto, sob o governo de ambos, o Estado, cujas leis regularizam o mercado, não deixou de privilegiar os interesses das burguesias nacional e internacional. Lula e Dilma, como quaisquer outros chefes de Estado sob o capitalismo são tão-somente gestores da res publica, sem nenhuma capacidade de mudar as leis de mercado que fazem da burguesia a classe dominante. Mesmo em um caso bem diferente, como o da Venezuela chavista, cujo presidente da república Hugo Chávez autoproclamou seu governo como estando em processo de revolução socialista, o Socialismo do Século XXI, não houve, até o momento, mudanças radicais nas regras econômicas, de modo que o modo de produção segue sendo capitalista, a sociedade segue sendo capitalista. Neste exemplo específico, mesmo que o governo venha fazendo um grande esforço para privilegiar os setores menos favorecidos da sociedade, é a burguesia que continua a deter os maiores privilégios, pois as leis estatais continuam regulando o mercado segundo o modelo capitalista
As teorias de poder não se expressam abstratamente, mas buscando uma intervenção concreta na realidade, buscando, como já dito, impor-se universalmente. Ao contrário da tirania e do absolutismo, o liberalismo teoriza o poder de uma forma mais persuasiva do que coercitiva e o governo representativo foi um grande achado liberal neste sentido, como veremos mais adiante. É sabido que no capitalismo há uma igualdade jurídica de direitos para todos os cidadãos. Ou seja, em tese, todos são iguais perante a lei, embora na prática tal igualdade esteja sujeita aos poderes econômicos e políticos de cada um. As revoluções estadunidense e francesa consolidaram essa igualdade jurídica. No entanto, a ascensão das massas a partir da Revolução Industrial passou a assustar a burguesia, mormente com os movimentos insurrecionais de 1848 e com a Comuna de Paris (1871). A resposta das burguesias nacionais foi reprimir violentamente os trabalhadores insurretos, os quais, efetivamente, haviam-nas colocado no poder, ao participarem das revoluções burguesas de armas nas mãos. Certamente, sem as massas armadas a burguesia não teria vencido suas revoluções. Mas não somente a repressão foi usada e tem sido usada para conter a ascensão das massas. Menos do que a repressão, os teóricos burgueses passaram a desenvolver mecanismos visando colocar as massas em seu devido lugar de dominadas. Vejamos, a seguir, alguns desses mecanismos fundamentais.
Locke foi o primeiro grande teórico a favorecer a burguesia na conquista do poder. Esse favorecimento veio do fato dele teorizar um poder dividido em duas partes: a parte que executa as leis, sendo o poder executivo, sob a chefia do monarca, e a parte que formula as leis, equivalente ao poder legislativo (LOCKE, 1978), do qual a burguesia podia participar e no qual a burguesia viria a se tornar força majoritária, já no bojo da Revolução Industrial, exercendo a capacidade de criar leis a seu favor, tornando o Estado um artefato a serviço de seus interesses. Com isso, como mostram Marx (1983) e Polanyi (2000), entre tantos outros estudiosos deste tema, a burguesia conquistou/expropriou terras de camponeses e impôs normas ao mercado em então recente consolidação, com base em leis estatais , ou seja, de uma forma legal, legítima, malgrado grande parte de suas conquistas para impor o poder capitalista, o modo de produção capitalista, tenha sido na base da violência, como descrevem, por exemplo, Marx e Polanyi nas obras supracitadas.
Adam Smith, outro teórico de fundamental importância para a conquista do poder em favor da burguesia, através das teses do self-interest e do homem ser naturalmente propenso a trocas (econômicas), dilui o elemento político no elemento econômico, o que é uma forma eficaz de alienar as massas, afastá-las da política, e proclama que a vida pública é praticamente a vida no mercado, a vida do homo economicus. Pelo projeto smithiano, é fundamental que cada um introjete que praticando o self-interest estará pavimentando o caminho de sua ascensão social, tornando-se,assim, parte essencial da sociedade e construtor da riqueza nacional (SMITH, 1984).
Tocqueville, preocupado com a extensão que tomara a democracia burguesa, temia que as massas pudessem conquistar o poder pelo voto, dado elas serem a maior parte da população, e instituir o que ele considerava ser uma “tirania da maioria”. Ao estudar a democracia dos Estados Unidos, em meados do século XIX , Tocqueville encontrou um antídoto para evitar que as massas alcançassem o poder através do sufrágio universal . Esse antídoto eram as associações privadas (de todo tipo) nas quais os cidadãos estadunidenses dos mais diversos níveis socioeconômicos se organizavam e, assim, fortaleciam-se diante da força do Estado, criando uma democracia representativa nas bases sociais a contrabalançar a democracia representativa estatal. Assim, mesmo se as massas alcançassem o governo através do sufrágio universal, elas não poderiam impor uma "tirania da maioria". Tocqueville viu nesse exemplo associativo praticado nos Estados Unidos um modelo de democracia a ser aplicado ao capitalismo em geral (TOCQUEVILLE, 1998).
Dentre todas as contribuições teóricas para manter a estabilidade do capitalismo, o governo representativo se destaca como a mais eficiente, sobretudo a partir do momento em que o voto censitário foi vencido pelo voto igualitário, isto é, o voto de qualquer cidadão, rico ou pobre, de qualquer classe social, credo ideológico ou etnia passou a ter o mesmo peso na contagem geral dos votos. Evidentemente que essa igualdade, como a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei), está condicionada por poderes econômicos, políticos e ideológicos de cada um, pois um candidato rico, com apoio da grande imprensa e financiado por grandes capitais tem mais chance de se eleger do que um candidato em sentido contrário. Eleitores dependentes de um certo tipo de clientelismo político tendem a direcionar o seu voto para candidatos aos quais estejam ligados de maneira clientelista. Assim como um eleitor sem uma consciência crítica fortalecida tenderá a votar motivado por influências que venha a ter no processo de disputa de votos, em lugar de votar com convicção. Havendo a influência dos poderes econômicos, políticos e ideológicos no processo eleitoral e havendo o apartheid entre eleitores e eleitos após a eleição, isto é, durante o exercício do mandato, executivo ou legislativo, legitimado pelo sufrágio universal, o governo representativo se apresenta como o mais eficaz instrumento a manter a estabilidade do capitalismo, pois não há registro na história de nenhuma revolução anticapitalista que tenha se processado através do voto. O apartheid durante o exercício do governo representativo faz com que este se feche para os eleitores com menor poder de lobby e se abra, coloque-se a serviço, para os eleitores com grande poder de lobby, que geralmente são os grandes capitalistas que, não por acaso, apoiaram, com financiamento e apoio midiático, entre outros, grande parte dos eleitos para o exercício de mandatos executivos e legislativos.
Stuart Mill – também fortemente preocupado em conter a “tirania da maioria”, ele que sofrera influência de Tocqueville – elaborou uma série de preceitos elitistas e utilitaristas com o escopo de afastar as massas do controle sobre o governo. Por esses preceitos, os votos dos mais ricos e com maior escolaridade (os quais no século XIX eram praticamente os mais ricos) deveria ter um peso maior do que o voto dos mais pobres e com menor escolaridade ( MILL, 1964 ). Entretanto, o desenvolvimento do capitalismo mostraria que o temor exagerado de que as massas, por serem a parte mais numerosa da população, alcançariam o governo através do sufrágio universal seria algo não concretizado na prática do governo representativo. Przeworski, em um estudo sobre partidos socialistas europeus de orientação marxista, percebeu que o simples fato de existir o governo representativo fez com que esses partidos amainassem o radicalismo de seus discursos, abandonassem a luta revolucionária de classes e passassem a buscar votos para além da classe operária sem o que corriam o risco de perder as eleições, pois somente o voto dos operários não era suficiente para lhes dar uma maioria governante. De modo que para serem competitivos eleitoralmente, esses partidos optaram por fazer o jogo político burguês, tanto na disputa do voto durante o processo eleitoral quanto durante o cumprimento do mandato no governo representativo (PRZEWORSKI,1989). Fazer o jogo político burguês implica fazer alianças com partidos de centro, e até de direita, renegando os princípios marxistas que fundaram esses partidos, o que os fez caminhar cada vez mais para a direita, passando de marxistas a revisionistas, depois a keynesianos e, a partir da década de 1990, alguns até se tornaram neoliberais. Isto tem sido um fenômeno a ocorrer em escala mundial, não apenas uma exclusividade dos partidos estudados por Przeworski. Um fenômeno que tem como substrato o governo representativo, o que nos leva a reiterar que este instrumento político tem sido o maior responsável para a burguesia e o capitalismo manterem uma sólida estabilidade, a despeito de tantas e frequentes graves crises a ameaçá-los, notadamente as crises representadas pela depressão econômica de 1929 e as primeira e segunda guerras mundiais.
2. Sobre micropoderes
Foucault percebe a existência de uma nova manifestação de poder na sociedade industrial em relação à sociedade pré-industrial. Essa nova manifestação (poder disciplinar) atua diretamente sobre o trabalho dos indivíduos, diretamente sobre seus corpos. Ao contrário do modelo de poder baseado na soberania, o qual correspondia ao macropoder Estado, controlado pelo rei de forma absolutista, que atuava sobre a economia de base agrícola do Ancien Régime, visando extrair bens e riquezas do produto do trabalho, sobretudo o trabalho sobre a terra. Segundo Foucault, “a teoria da soberania está vinculada a uma forma de poder que se exerce muito mais sobre a terra e seus produtos do que sobre os corpos e seus atos: se refere à extração e apropriação pelo poder dos bens e da riqueza e não do trabalho” (FOUCAULT,1992a, p.188 ).
Essa nova manifestação de poder é um efeito e uma característica da era industrial, que trouxe um desenfreado crescimento da produção de mercadorias e um desenfreado crescimento populacional. E tudo isso demandou um controle mais rígido sobre os indivíduos, sobre as riquezas produzidas e sobre os meios de produção, já não bastava mais o controle à distância exercido pelo poder baseado no modelo de soberania. Controle esse à distância suficiente para gerenciar o trabalho dos camponeses, bastando para tanto apropriar-se de parte de sua produção agrícola, em troca de dar-lhes acesso a pequenos lotes de propriedade fundiária para a sua sobrevivência e de sua família, fazendo com que o controle fosse mais sobre a repartição da produção do que sobre os indivíduos.
A era industrial fez os indivíduos se misturarem nos grandes centros urbanos – emigrando das pequenas comunidades agrícolas – e fez com que o trabalho humano passasse a ter o seu ritmo multiplicado, pois, como expressa Marx, em O capital, as máquinas é que passaram a dar o ritmo do trabalho. Assim, a efervescência dos indivíduos nos grandes centros urbanos, a necessidade de um trabalho humano mais intensivo e a necessidade da burguesia de proteger os seus bens redundaram na necessidade de novas formas de controle, de novos mecanismos de poder. Não bastava apenas o controle através de macropoderes de aparelhos estatais apartados dos indivíduos, como o exercido pelo modelo de soberania vigente em épocas pré-capitalistas.
Surgiu a necessidade de mecanismos de micropoderes oriundos da própria sociedade civil, componentes da teia social. Foucault teve o insight de perceber essa passagem do sistema baseado nos macropoderes estatais sobre a sociedade para o sistema de micropoderes incrustado na sociedade. Ele percebeu que este último sistema nasceu da natural necessidade do regime industrial ter um controle mais efetivo sobre cada indivíduo, o que o sistema de macropoderes estatais não poderia dar conta com segura eficácia. Era necessário um controle não mais sobre a distribuição das riquezas advindas do trabalho sobre a terra – o qual, como vimos, poderia ser controlado à distância, de fora do mesmo. Era necessário um controle sobre cada indivíduo.
Foucault nos dá uma ideia dessa espécie de controle tomando como exemplo o projeto do panopticon, de autoria de Jeremy Bentham, modelo de arquitetura prisional no qual os presos são vigiados individualmente em suas celas (iluminadas pela luz do sol) por guardas colocados em uma torre de vigia equidistante de cada cela ( FOUCAULT, 1977). Tal modelo de controle diferenciava-se do anterior, que deixava os presos nas masmorras (em escuridão) em completo estado de promiscuidade de penas. Através do panopticon, os presos são constantemente vigiados e têm constantemente a sensação de estarem sendo vigiados.
Foucault percebeu que o modelo de controlar os presos atuando sobre seus corpos estava presente em praticamente todas as instituições (asilos, hospitais, escolas, etc.) da sociedade moderna, a qual, por conta desse modelo, ele a designa como sociedade disciplinar ou panóptica, sob o controle de poderes disciplinares ou panópticos exercidos através de uma rede de micropoderes, que atuam com forte autonomia em relação aos macropoderes, mesmo quando sendo deles derivados, caso de instituições estatais. Esses micropoderes permeiam toda a sociedade moderna, estando presentes tanto nas relações privadas, como no relacionamento de familiares ou vizinhos, quanto nas relações públicas.
A sociedade panóptica está submetida a uma “pirâmide de olhares” (FOUCAULT, 1979. p.86) onde todos vigiam todos. Uma sociedade onde o poder, menos do que um instrumento de opressão, é um instrumento disciplinador que gera saberes, os quais, por sua vez, também geram novos poderes, e assim sucessivamente.
Segundo Foucault, esse poder disciplinar seria inviável se não fosse instrumentalizado pelos micropoderes, por uma rede de micropoderes, porque um poder tipo soberania não seria capaz de dar conta do controle dos corpos dos indivíduos, controle este que é uma condição sine quae non para a manutenção da ordem nas sociedades industriais. E esse controle, como já vimos, não pode ser feito adequadamente por um poder arterial que vem de fora do corpo social , mas por poderes capilares que estão no corpo social, fazendo todos aderirem às normas sociais de forma sutil, persuasiva, ao invés de pela pedagogia do terror, como era comum no Ancien Régime, onde o poder soberano buscava ser temido pelos seus súditos , para tanto impunha-se à base de demonstrações exemplares de força e violência cruéis aplicadas às suas vítimas. Tais demonstrações se davam comumente em lugares públicos, como Foucault mostra em Vigiar e punir, aos quais a população local era convocada a comparecer e tudo se passava de acordo com rituais pré-estabelecidos pelos detentores do poder, de modo que todos percebessem que aquele castigo imposto a uma determinada vítima era mais público do que privado, tinha o escopo de mostrar que o mesmo poderia acontecer a qualquer um que não se submetesse ao poder soberano. Essa era a forma do poder soberano tentar atingir a todos em suas individualidades, dado que ele era um tipo de poder que não permeava o corpo social de maneira contínua e intensa. Então, ele tomava o medo como o elemento a tentar permear todo o corpo social, a instalar-se em todas as mentes: “(...) é preciso que a punição seja espetacular para que os outros tenham medo. Portanto, poder violento e que devia, pela virtude de seu exemplo, assegurar funções de continuidade”( FOUCAULT,1992b, p.217). Esse tipo de poder apresentava ineficiência do ponto de vista prático e, inclusive, grande possibilidade de causar um efeito bumerangue. Era ineficiente porque não atingia os indivíduos ininterruptamente, incutindo-lhes uma domesticação contínua. A sua violência exemplar poderia gerar violência do coletivo de indivíduos contra o establishment.
“Se a violência for grande, há o risco de provocar revoltas; ou, se a intervenção for descontínua, há o risco de permitir o desenvolvimento, nos intervalos, dos fenômenos de resistência, de desobediência, de custo político elevado” (FOUCAULT, 1992c, p. 217).
Era também um poder dispendioso do ponto de vista econômico, ainda mais se levarmos em conta que sua função básica era ser opressivo, não gerador de saberes para a produtividade do sistema. Era um poder de cara manutenção, pois implicava substancialmente despesa, ficando o lucro praticamente fora de seu alcance.
Foucault percebeu que o poder baseado na soberania se tornava obsoleto para a era industrial que se estabelecia a partir do século XVIII. Era mister um tipo de poder que penetrasse em todos os recônditos do corpo social, que, ininterruptamente, se introjetasse em todas as mentes e adestrasse os corpos dos indivíduos, objetivando a todos domesticar, modelar.
"Ora, as mudanças econômicas do século XVIII tornaram necessário fazer circular os efeitos do poder, por canais cada vez mais sutis, chegando até aos próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos” ( FOUCAULT, 1992d, p.214).
Faz-se mister salientar que quando Foucault estuda o poder na sociedade industrial, ele se utiliza de uma metodologia ímpar. A imparidade de sua metodologia reside no fato dele estudar o poder em termos de suas manifestações, em termos de seus mecanismos de atuação, “a partir das técnicas e táticas de dominação” (FOUCAULT, 1992e,186).
É justamente a opção por este viés que lhe permite verificar um sem número de micropoderes a irrigarem o corpo social, como se fossem vasos capilares a irrigarem todos os espaços do corpo humano. E ele vê nessa irrigação a sustentação à saúde dos micropoderes estatais, os quais ele não ignora, no entanto considera-os insuficientes para dar conta do completo expressar-se do poder na sociedade industrial. Quando se propôs a estudar a passagem do poder no período compreendido entre o absolutismo e a consolidação do capitalismo industrial, Foucault também optou em limitar o seu estudo ao campo das observações das manifestações do poder. Assim, ele verificou que o poder metamorfoseou-se em suas manifestações ao longo do período supracitado. Todavia, ele não faz uma ligação causal dessa metamorfose com a passagem do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista e também não considera como causal nessa metamorfose o humanismo advindo do liberalismo, não obstante considerar esses dois fatores como duas das várias influências que ocasionaram essa metamorfose. Aqui , é de bom alvitre asseverar que influência não tem o mesmo status de causa. Esta produz efeito(s) e influência(s) não necessariamente. Ao deixar de conduzir-se por causas, Foucault se isenta de defender que o poder disciplinar seja efeito do acúmulo das contradições internas da sociedade que antecedeu à sociedade capitalista.
Conclusão
Quanto à metodologia de estudo do poder, Foucault estabelece um corte epistemológico em relação a teóricos clássicos que estudaram o macropoder, alguns dos quais comentamos no início deste artigo, pois ele 1) não vê o poder exclusivamente como dominação; 2) não se arvora em criar um projeto político-ideológico de poder – inclusive nega que tenha criado uma teoria (geral) de poder – , nem faz uma ligação causal entre ideologia e poder; 3) não identifica uma localização fixa para o poder, mas identifica uma rede de micropoderes a percorrer todo corpo social, embora não menospreze o macropoder Estado e seus aparelhos.
Caso se ativesse meramente a ver o poder confundido com dominação, ele fatalmente seria levado a procurar o poder apenas nos tidos como dominadores, pois o poder seria algo que estes possuiriam e os dominados não. O poder disciplinar, para ele, como já vimos, gera saberes, os quais geram mais poderes, e, mais que dominar do ponto de vista classista, visa fabricar indivíduos dóceis ao sistema e às respectivas instituições que os adestram e normalizam diretamente.
Quanto a fazer do seu estudo sobre o poder uma teoria a favor dessa ou daquela classe, desse ou daquele grupo, ou seja, uma ideologia, ele descarta essa possibilidade e afirma que a sua opção é por um estudo genealógico do poder, que permita contribuir a que as pessoas vejam como atua o poder disciplinar e que isso possa ajudá-las a resistir à sua condição de submissão, que também permita contribuir para o desterramento e a insurreição de saberes que foram deslegitimados pela tirania da teoria, da ciência. Isso não implica que ele seja contra a ciência, ele é contra a sua tirania, o seu positivismo, de legitimar uns saberes e deslegitimar outros (FOUCAULT, 1992f).
Se os autores clássicos que comentamos no item 1, construíram teorias de poder para fortalecer as suas respectivas convicções ideológicas, Foucault se propõe a afastar-se desse objetivo, negando-se inclusive a ser construtor de uma teoria de poder e afirmando-se como um estudioso dos mecanismos de poder. Ele se afasta de estabelecer uma relação de complementação ou de oposição envolvendo macropoderes e micropoderes, vendo estes com uma elástica autonomia em relação àqueles. No entanto, acreditamos que os micropoderes, menos do que serem uma forma de oposição por parte dos de baixo aos macropoderes (Estado,grandes corporações econômicas, indústria cultural e grande media) sob o controle da classe dominante, são, assim como o governo representativo, um grande instrumento a reforçar e legitimar o sistema capitalista, a oxigená-lo em seus vasos capilares. Evidentemente que através dos micropoderes, como também através do governo representativo, uma oposição ao sistema pode achar brechas para atuar até de forma revolucionária, mas, em geral, os micropoderes são forças localizadas que indiretamente reforçam e dão sustentação ao capitalismo. O próprio Foucault, ao estudar e defender os micropoderes como instrumento de luta de minorias, não os pensa como uma via revolucionária, mas como uma forma de se obter conquistas dentro do sistema.
O que buscamos defender neste artigo, é que o poder tem a característica imanente de ser centralizado, mesmo quando se apresenta aparentemente descentralizado, através do governo representativo ou de micropoderes, por exemplo. Ele sempre teve essa característica de estar em poucas mãos, a democracia burguesa, com o sufrágio universal, o governo representativo, a liberdade de expressão, a probabilidade de todos ascenderem socialmente, é que forjou a falsa impressão do poder como um bem comum.
Em nossa contemporaneidade capitalista, o poder se descentraliza aparentemente, ao tempo em que se centraliza de fato. Nunca o Estado esteve tão estável quanto sob a sociedade industrial, o mesmo se dá com relação à propaganda oficial (indústria cultural/media), aos grandes grupos econômicos e a uma classe em particular, que é a burguesia.
Referências bibliográficas
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Pós-doutorando em História Social (USP). Doutorado em Sociologia (USP). Mestrado em Ciência Política (UNICAMP). Autor do livro Liberalismo e cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na virada do século XIX para o XX (Ed.UFRJ, no prelo).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BANDERA, Vinicius. Macros e micropoderes: uma relação oponente ou complementar? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2014, 08:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37988/macros-e-micropoderes-uma-relacao-oponente-ou-complementar. Acesso em: 23 dez 2024.
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