I - Introdução
Entre os vários questionamentos que permeiam as discussões dos internacionalistas está a fragmentação do direito internacional. Não raras vezes é possível encontrar autores que trabalham questões como a denominada “proliferação” de tribunais internacionais, o forum-shopping e os “self-contained regimes”[1] ou regimes auto-contidos, sob as mais diversas perspectivas.
Ao abordar as questões atinentes aos regimes auto-contidos bem como os casos de lex specialis as menções à Organização Mundial do Comércio (OMC) estão sempre presentes. A existência de seu Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) é tida como um ambiente profícuo para suscitar discussões sobre conflitos entre as normas da OMC e o direito internacional geral.
Sendo um órgão cuja função é resolver conflitos, nem sempre as questões trazidas podem ser resolvidas com o uso unicamente do instrumental da própria OMC. O surgimento de controvérsias que de alguma forma extrapolam o direito comercial, passando seja para o direito internacional geral seja para os direitos humanos, diplomático ou ambiental, faz com que seja relevante analisar como é feita essa interação para além das fronteiras do próprio sistema.
Apesar de sua inconteste singularidade e autonomia na aplicação das normas de direito comercial, desde a criação deste organismo, no seu Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (DSU), no artigo 3.2, já foi prevista a aplicação do direito internacional geral na interpretação das regras estatuídas pela Organização, o que demonstra que, desde o seu início, a OMC não se imaginou como um regime afastado do direito internacional geral, muito pelo contrário, já o tinha como ferramenta para interpretação de tratados.
Essa previsão expressa de diálogo, no entanto, não foi feita da mesma forma com relação aos demais regimes auto-contidos, isto é, apesar de mencionar a incorporação do direito internacional geral, não há regra explícita sobre a relação dos tratados da OMC com os demais regimes existentes no direito internacional.
Assim sendo, a via de comunicação entre os diversos regimes será o próprio direito internacional geral com suas normas de interpretação de tratados. No entanto, cabe questionar em que medida o direito internacional geral permite esse diálogo, até que ponto a comunicação com o geral significa ou não comunicação com os outros regimes, e este é o tema a ser discutido no presente trabalho.
II - A OMC e o Direito Internacional Geral
A jurisdição dos painéis para solução de controvérsias da OMC está restrita aos acordos cobertos pela Organização. Ou seja, ela não possui autoridade para julgar questões suscitadas por alegadas violações a tratados outros que não aqueles listados como sendo “normas da OMC”, nem mesmo sobre regras de direito internacional geral. Além disso, a instituição estabelece que todos os membros devem recorrer exclusivamente aos seus órgãos para resolver quaisquer conflitos relacionados aos seus tratados.
É esse contexto que leva a afirmações como a de Martti Koskenniemi e Päivi Leino de que o OSC “may be seen to constitute a special regime, as it requires to resort exclusively to the WTO organs to seek redress for violations of the covered agreements”[2].
Esse regime especial que a OMC parece constituir é decorrente do conceito de “self-contained regimes”, ou regimes auto-contidos ou auto-continentes. A própria noção de regime auto-contido, assim como sua tradução, é muito problemática no direito internacional e sua definição constitui temática de amplas discussões. Adotando a noção apresentada no Relatório do Grupo de Estudos da Comissão de Direito Internacional sobre Fragmentação do Direito Internacional, em uma breve síntese, regime auto-contido seria o caso em que um conjunto específico de regras secundárias[3] clama primazia sobre as regras gerais quanto às consequências de sua violação. São “sistemas” ou “subsistemas” de regras que cobrem alguns problemas particulares de forma diferente daquela que seria usada sob as regras gerais do direito internacional[4].
Nesse mesmo relatório, ao falar sobre “a relação entre os regimes auto-contidos (especiais) vis-à-vis o direito internacional geral sob circunstâncias normais” o segundo exemplo apresentado nesse tópico são as normas da Organização Mundial do Comércio, já apontando logo no início que por vezes é sugerido que seus tratados formam um sistema fechado, mas que, apesar disso, o Órgão de Apelação tem buscado uma orientação interpretativa diferente.
A reiterada aparição da OMC como um dos principais exemplos de regime auto-contido pode dar a impressão de que há uma ambição ou uma tentativa da Organização de se distanciar do direito internacional geral. Esse distanciamento é inclusive por vezes defendido por internacionalistas atuantes junto à Organização, com o claro objetivo de afastar a incidência de certas normas, no entanto suas próprias regras constitutivas e as do Órgão de Solução de Controvérsias, assim como seu contexto de criação não parecem apontar para uma situação de isolamento.
Joost Pauwelyin diz que todo novo tratado nasce automaticamente dentro do direito internacional geral, que cada novo tratado não é simplesmente subsumido ao direito internacional geral, mas é criado dentro de um corpo mais amplo de direito internacional público que inclui os tratados preexistentes. Continuando, ele afirma que ainda assim é possível que esse novo tratado exclua a aplicação de uma ou algumas regras de direito internacional geral (como é o caso das normas sobre responsabilidade dos Estados), mas que o novo tratado não precisa dizer quais regras serão aplicáveis, pois a interação é automática[5]. Ou seja, o regime da OMC foi criado dentro do corpo de regras mais amplo, que é o direito internacional geral, então a não ser que algum tratado exclua especificamente a aplicação de uma regra, o direito internacional por inteiro continua aplicável, e a exclusão de uma parte não significa a exclusão do todo.
O conceito de “fallback” (retorno) dá suporte a essa interação com o direito internacional geral. Afinal, as normas gerais funcionam como um pano de fundo e servem como apoio para eventuais áreas não cobertas especificamente pelos tratados. Assim toda convenção internacional deve ser tacitamente considerada como se referindo aos princípios gerais do direito internacional para todas as questões as quais ela não resolve por si mesma em termos expressos e de um modo diferente[6].
Um exemplo de “fallback” no direito internacional geral foi o caso Estados Unidos – camisas e blusas, em que o Órgão de Apelação aplicou princípios gerais do direito internacional sobre o ônus da prova para estabelecer a quem caberia esse papel no caso, uma vez que o DSU é silente sobre o assunto.
O âmbito mais claro da relação com o direito internacional geral é a interpretação dos tratados, e o artigo 3.2 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (DSU) é a regra mais proeminente da OMC no suporte a essa ideia, a qual estabelece que a interpretação dos acordos abrangidos será “em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional”[7]. Esse artigo sempre é referido nas análises sobre a relação da OMC com o direito internacional geral e tido como prova da aceitação da sua presença.
Nesse sentido, cabe citar a seguinte declaração feita em um dos painéis da organização:
We take note that Article 3.2 of the DSU requires that we seek within the context of a particular dispute to clarify the existing provisions of the WTO agreements in accordance with customary rules of interpretation of public international law. However, the relationship of the WTO Agreements to customary international law is broader than this. Customary international law applies generally to the economic relations between the WTO Members. Such international law applies to the extent that the WTO treaty agreements do not "contract out" from it. To put it another way, to the extent there is no conflict or inconsistency, or an expression in a covered WTO agreement that implies differently, we are of the view that the customary rules of international law apply to the WTO treaties and to the process of treaty formation under the WTO.[8]
Pode ser feito um paralelo com o artigo 31.3(c) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados que como regra geral de interpretação diz que serão levadas em consideração quaisquer regras pertinentes de direito internacional aplicáveis às relações entre as partes. Se considerarmos a Convenção de Viena como um exemplo de norma corrente de interpretação do direito internacional, em conformidade com o artigo 3.2 do DSU, trata-se de um reforço da afirmação da interação entre as normas da OMC e o direito internacional geral.
Apesar da Convenção de Viena não ter sido ratificada por todos os membros da OMC ela é aceita como direito costumeiro por essa Organização, dando assim todo suporte para a aplicação plena de suas normas e afastando as críticas sobre sua alegada inaplicabilidade em casos que envolvesse estados membros que não fossem signatários da Convenção, como é o caso dos Estados Unidos.
Como se vê, não é difícil encontrar dentro do próprio regime da Organização fortes bases que fundamentam sua relação constante e necessária com o direito internacional geral, afastando assim a ideia de que por ser considerado um sistema auto-contido a OMC tende a se isolar das questões gerais do direito internacional, principalmente no que tange à interpretação de tratados e a resolução de conflitos. Seguindo essa mesma lógica, foi dito no primeiro relatório do Órgão de Apelação da OMC que o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) não deveria ser lido em “isolamento clínico do direito internacional público”[9].
Apesar da importância em termos de força jurídica que tem um artigo como o 3.2 do DSU, exatamente pelo que é estabelecido no artigo 31.3(c) da Convenção de Viena e por acreditar na obviedade da inserção do regime da OMC como parte do direito internacional, e como tal sujeito às suas regras gerais, Joost Pauwelyn acredita que a presença desse artigo não era necessária em teoria, mas na prática sua inscrição foi necessária e inclusive uma surpresa para aqueles que acreditavam na separação das normas da OMC do direito internacional geral[10].
Obviamente que apesar da viabilidade de utilização do direito internacional geral, isso só ocorre como último recurso. Há sempre a tentativa de se resolver a controvérsia que tenha surgido somente com o aparato provido pelo próprio sistema, e apenas em caso de impossibilidade de assim prosseguir haverá o “fallback”. Eles estão primariamente preocupados com “sua” lei especial. Só em um segundo momento, se o regime especial provar-se insuficiente para resolver o caso, recorre-se às regras gerais de direito internacional[11]. É parte da lógica que perpassa os regimes auto-contidos como um todo, que é a sua presunção de completude.
Mesmo que por vezes o Órgão de Solução de Controvérsias seja reticente quanto à incidência do direito internacional geral essa relação é inegável. E essa presença constante das regras gerais pode abrir caminhos para influências que vão além dos princípios gerais e alcançam outros regimes especiais. As mesmas regras que dão espaço para o direito internacional geral podem servir de porta de entrada para as normas de direitos humanos e direito ambiental, por exemplo. Essa possibilidade será trabalhada a seguir.
III - A interação entre a OMC e outros regimes auto-contidos
Apesar de não serem os preâmbulos dotados de força jurídica direta, eles refletem o contexto de criação de determinado tratado. No preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC (Acordo de Marrakesh) é feita menção logo no primeiro parágrafo a uma “utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentável e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para fazê-lo”[12].
O GATT 1947 é um dos tratados que está sob o “guarda-chuva” da OMC. Em seus artigos XX e XXI são apresentadas as suas exceções gerais, entre elas incluem-se medidas necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais (b) e medidas relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis (g). Esse tratado é frequentemente utilizado pelos membros da Organização em seus argumentos em conflitos envolvendo direito comercial e direito ambiental.
Mesmo com esse objetivo de preservação ambiental presente no momento da criação da Organização, com a previsão de exceções a aplicação das normas de um dos principais tratados da OMC com base em questões ambientais e de direitos humanos, e com sua estrutura para lidar com o direito internacional geral, parece que quando o OSC precisa ir um pouco além das normas gerais e ingressar na esfera temática de outro regime especial do direito internacional a tarefa se torna muito mais complexa. Mas por que essa dificuldade se são todos parte de um mesmo complexo jurídico mais abrangente?
Como afirma Joost Pauwelyn, “like international environmental law and human rights law, WTO is ‘just’ a branch of public international law"[13], e sendo “apenas” um ramo de uma árvore tão vasta como é o direito internacional, a comunicação entre os distintos braços passa necessariamente pelo tronco central, que é o direito internacional geral.
Como dito anteriormente, a jurisdição da OMC não alcança alegações de violações de tratados que não façam parte do seu regime, por exemplo, tratados sobre direitos humanos ou direito ambiental, no entanto, é possível que essas questões sejam trazidas pelos próprios membros por consenso, criando uma jurisdição ad hoc sobre esses tratados caso a disputa de modo geral seja de competência do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Assim sendo, o que pode ocorrer é que se a regra para a resolução de conflitos indicar que a norma da Organização Mundial do Comércio deve prevalecer sobre a norma “externa”, aquela será aplicada. Se, por outro lado, a regra de resolução de conflitos demonstrar que a outra norma se sobrepõe ou até mesmo invalida a norma da OMC, então esta não será aplicada, mesmo que esse tratado contenha uma exceção ou uma justificativa para a medida em questão. Nesse último caso, no entanto, não resulta na possibilidade do OSC impor judicialmente a aplicação dessa norma “externa”[14].
Mesmo com essa possibilidade, existe uma tendência isolacionista do OSC ao lidar com esses conflitos, evitando ultrapassar o âmbito do direito comercial e enfatizando a especificidade da OMC, esquivando-se da análise desses tratados “externos”. Um exemplo dessa relutância por parte dos painéis foi o caso Canadá – salmão e arenque, em que foi decidido que as medidas canadenses eram inconsistentes com o artigo XI do GATT 1947 e não justificáveis pelo artigo XX(g), o qual fornece uma exceção às obrigações do acordo para medidas “relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis”, sendo que não foi emitida nenhuma opinião sobre a aplicação de outros acordos internacionais, mesmo tendo sido esse argumento levantado pelo Canadá, e qualificado o mandato do painel como limitado a examinar as medidas canadenses sob a luz do GATT 1947[15].
Gabrielle Marceau acredita que apesar dessa jurisdição limitada do OSC isso não significa que não se deva levar em conta as normas de direito internacional geral e de direitos humanos, exatamente pelo fato de a OMC ser um regime auto-contido não significa que seja um sistema isolado.
The limited domain of the WTO does not mean that the WTO Agreements exists in an hermetically sealed system, closed off from general international law and human rights law. On the contrary, states must implement all their obligations in good faith, including human rights and WTO obligations. Moreover, the principles of interpretation in the DSU require panels and the Appellate Body to use or take into account various general principles of law, customs and relevant treaties, including those relating to relevant human rights, when interpreting and assessing compliance with WTO provisions.[16]
A despeito da relutância por parte dos painéis do OSC em sair da zona dos “tratados da OMC” por vezes é preciso fazê-lo, mas em que medida o direito internacional geral auxiliará essa interação?
Na obra Of Planets and the Universe, Bruno Simma e Dirk Pulkowski também trabalham a questão anteriormente citada do “fallback” no direito internacional geral, mas talvez em uma perspectiva um pouco diferente da apresentada. Segundo eles o “fallback” ocorre quando por uma necessidade de maior legitimidade e efetividade um regime especial recorre a regras gerais e até mesmo a outros sistemas como forma de reforçar suas decisões.
O “fallback” pode ser uma dessas pontes entre os regimes especiais. Segundo os autores, essa posição isolacionista só é mantida enquanto há equilíbrio entre legitimidade e efetividade. Uma vez que a legitimidade de uma decisão começa a ser questionada, invocar a inserção do regime no direito internacional geral e apoiar-se em regras “externas” à OMC torna-se uma estratégia interessante, sejam essas regras de direito internacional geral ou de outros sistemas, como os direitos humanos ou o direito ambiental.
However, this isolationist discursive strategy can only be pursued as far as the point where the effectiveness-legitimacy balance begins to tilt. Once the legitimacy of the decision comes under fire, the invocation of ‘unity’ rather than ‘particularity’ becomes an interesting discursive option. By relying on rules outside the WTO regime that, in the view of many, embody legitimate concerns or internationally recognized ethical positions, the WTO’s judicial bodies have attempted to import the legitimacy offered by the ‘universe’ to the ‘planet’.[17]
Um exemplo do uso desse recurso foi o caso dos EUA quanto à importação de camarões. Nesse caso, o Órgão de Apelação adotou um discurso unitário, contrariando sua imagem de total supremacia dada ao comércio, utilizou-se de instrumentos do direito ambiental. Assim, para aumentar a legitimidade da decisão, é feito uso de padrões e regras que não são a priori da OMC. Outro exemplo que pode ser dado foi o caso Camarão-tartaruga, em que para melhor interpretar a expressão “recursos naturais esgotáveis” o painel precisou referir-se à Declaração do Rio de 1992, à Agenda 21, à Convenção de Biodiversidade de 1992, entre outros tratados de direito ambiental. Nesse caso, não foi tanto pela legitimidade da decisão em si, mas pela do argumento a ser utilizado que houve o “fallback”.
Outro meio pelo qual a interação entre os diferentes regimes auto-contidos ocorre é através da “validade intersistêmica”, isto é, um tratado ainda que oriundo de outro regime e detentor de certas peculiaridades é reconhecido como norma de direito internacional uma vez que também é capaz de vincular os Estados. Portanto, mesmo sendo o reconhecimento externo de normas de um dado regime por outro algo por vezes árduo, a existência dessas normas é inquestionável e seu reconhecimento necessário para o diálogo. Rosario Huesa Vinaixa, nesse sentido, considera como um exemplo digno, no âmbito da OMC, o fato de normas de proteção ambiental desempenharem, em certos casos, funções interpretativas ou probatórias na solução de litígios comerciais[18].
Sobre o uso de normas que não são da OMC com função probatória, Joost Pauwelyn fornece um bom exemplo:
In establishing the relevant facts of a dispute and applying WTO rules to these facts, non-WTO rules may constitute proof of certain factual circumstances that must be present, for example, if WTO rules are not to be violated. The standard example is a multilateral environmental convention that calls for the imposition of certain trade restrictions to protect the environment from product X, which is considered harmful to human health under the convention. Even if this convention is not binding on all WTO members, or on the disputing parties in the particular case (in particular, the com- plainant), the fact that, say, sixty countries including half of the WTO membership have ratified the convention may constitute significant proof under GATT Article XX(b) that the defendant's measure is, indeed, "necessary for the protection of human health.[19]
Assim, mesmo que o tratado não desempenhe uma função com força jurídica direta, a ele é dado reconhecimento como fonte de obrigações externas a OMC capaz de influir de forma decisiva na tomada de decisão de um dado conflito julgado pelo Órgão de Solução de Controvérsias.
O reconhecimento dessa validez intersistêmica seria, na mesma lógica que o “fallback”, uma ferramenta para conceder a um regime, no caso a OMC, mais legitimidade a suas decisões, através do reconhecimento que é dado por esse sistema às normas externas. Esse reconhecimento permite assim uma espécie de osmose entre os sistemas e a criação de consensos, além de ser positivo do ponto de vista da produção normativa.
Lembrando da disposição trazida no artigo 31.3(c) da Convenção de Viena, ela cabe como aparato jurídico-normativo para embasar a incorporação desses outros tratados às decisões do Órgão de Solução de Controvérsias, reforçando assim as opiniões doutrinárias sobre o assunto. Afinal, quando a Convenção estabelece que sejam levadas em consideração quaisquer regras pertinentes de direito internacional aplicáveis às relações entre as partes não há nada que limite isso às regras de interpretação de tratados do direito internacional geral. Essa disposição oferece plena liberdade para se buscar suporte em regras do direito diplomático ou ambiental, conforme for o caso. E o mesmo pode ser dito do artigo 3.2 do DSU, apesar de seu texto literal ser mais restrito, mas nada que um esforço interpretativo não solucionasse.
Uma consequência interessante dessa interação da OMC com outros regimes auto-contidos é que as suas normas serão aplicadas de forma diferente para cada um de seus membros conforme os outros tratados ratificados por eles e essa pluralidade é apenas mais uma das consequências da fragmentação do direito internacional. Afinal, as obrigações e direitos assumidos por determinado Estado frente a um regime como a OMC não podem implicar na abdicação de direitos e obrigações assumidos por meio de outros tratados, mas uma vez que os conflitos entre essas normas é inevitável, buscar o diálogo entre cada um desses regimes parece ser a melhor solução, pois mesmo que haja uma presunção de coerência entre todos os tratados ratificados por um país, nem sempre essa coerência existirá.
IV - Conclusão
A criação do Órgão de Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio deu origem a um sistema jurídico sui generis no direito internacional, com tamanha autonomia e complexidade que pode ser considerado um regime auto-contido. No entanto, sua classificação como auto-contido não significa de forma alguma um isolamento em relação ao direito internacional geral ou em relação aos demais regimes auto-contidos.
No entanto, o OSC é vulnerável às mesmas críticas que são direcionadas a OMC: falta de sensibilidade para as preferências não-comerciais e ausência de legitimidade democrática[20]. Conquanto a Organização possua meios para viabilizar uma comunicação, que tem tudo para ser frutífera, com os outros ramos do direito internacional, tendo como pano de fundo as regras gerais, ainda há considerável resistência a isso. No presente momento só nos cabe cogitar quais seriam os motivos para tanto, talvez uma busca por fortalecer uma identidade própria, talvez a falta de profissionais com uma formação muldisciplinar na composição dos painéis[21] ou simplesmente a compreensão de que a instituição não tem jurisdição suficiente para abarcar questões externas. Mas o fato é que surgem e continuarão surgindo questões que ultrapassam as fronteiras de um único regime e, consequentemente, a interação será necessária.
O presente trabalho tentou demonstrar que para além das usuais discussões sobre conflito entre o regime auto-contido da OMC e as normas gerais do direito internacional existe também um problema quando se trata da sua relação com os outros regimes auto-contidos, mas que dentro do próprio aparato do direito internacional geral é possível facilmente encontrar formas de embasar essa interação.
Assim, seja pelo “fallback”, como instrumento para oferecer legitimidade e efetividade às decisões, seja pela valoração intersistêmica, utilizando os tratados “externos” como referência, meio de prova ou com força jurídica em sentido estrito, ou pelos próprios artigos existentes no DSU e na Convenção de Viena, como aparatos jurídico-normativos que vão além do direito internacional geral, existem meios de viabilizar uma interação com os outros regimes auto-contidos.
Obviamente que mais interação pode significar mais conflitos, uma vez que os principais interesses perseguidos pela OMC não são necessariamente os mesmos buscados pelos ambientalistas ou defensores dos direitos humanos, por exemplo, mas simplesmente ignorar que o outro lado existe, como foi feito no caso citado do Canadá – salmão e arenque não parece ser a opção mais inteligente.
Afinal, são todos ramos de uma mesma árvore e não há motivos para não buscar sua comunicação.
V- Referências Bibliográficas
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[1] A própria tradução do termo já é alvo de controvérsias. Entre as possíveis expressões a serem utilizadas estão: regimes auto-contidos, regimes auto-continentes e regimes autônomos. Por uma opção discricionária a tradução aqui utilizada será a de regime auto-contido.
[2] KOSKENNIEMI; LEINO. 2002, p. 570.
[3] A noção de regras primárias e regras secundárias foi desenvolvida por H. L. A. Hart em sua obra “O Conceito de Direito”, de 1961.
[4] INTERNATIONAL LAW COMISSION. 2006, p. 68.
[5] PAUWELYN. 2001, p. 537.
[6] PAUWELYN. 2003, p. 205.
[7] OMC. 1994, anexo 2.
[8] Korea-Measures Affecting Government Procurement apud INTERNATIONAL LAW COMISSION. 2006, p. 87.
[9] United States-Standards for Reformulated and Conventional Gasoline, WTO Doc. apud PAUWELYN. 2001, p. 542.
[10] PAUWELYN. 2001, p. 542.
[11] SIMMA; PULKOWSKI. 2006, p.488.
[12] OMC, 1994, preâmbulo.
[13] PAUWELYN. 2001, p. 538.
[14] PAUWELYN. 2001, p. 566.
[15] CAMERON; GRAY. 2008, p. 263.
[16] MARCEAU. 2002, p. 779.
[17] SIMMA; PULKOWSKI. 2006, p.511.
[18] VINAIXA. 2009, p. 189.
[19] PAUWELYN. 2001, p. 572.
[20] KOSKENNIEMI; LEINO. 2002, p. 572.
[21] Ver Marceau, WTO Dispute Settlement and Human Rights.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Brasília e aluna de iniciação científica do ProIC/DPP/UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Luana Helena Alves dos Anjos. OMC: a interação com outros regimes auto-contidos através do direito internacional geral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38096/omc-a-interacao-com-outros-regimes-auto-contidos-atraves-do-direito-internacional-geral. Acesso em: 23 dez 2024.
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