A respeito da duração excessiva do processo e seu efeito pernicioso sobre as partes, vale destacar a comparação elaborada por Calamandrei (2000):
Acontece freqüentemente com o bibliófilo, que se diverte folheando religiosamente as páginas amareladas de algum precioso incunábulo, encontrar entre uma página e outra, grudados e quase absorvidos pelo papel, os restos agora transparentes de uma mariposa incauta, que há alguns séculos, buscando o sol, passou viva naquele livro aberto, e quando o leitor subitamente o fechou ali ficou esmagada e ressecada para sempre.
Essa imagem me vem à mente quando folheio as peças de algum velho processo, civil ou penal, que dura dezenas de anos. Os juízes, que mantêm com indiferença aqueles autos à espera em sua mesa, parecem não se lembrar de que entre aquelas páginas se encontram, esmagados e ressecados, os restos de tantos pobres insetinhos humanos, que ficaram presos no pesado livro da justiça.
Nas últimas décadas, criou-se na doutrina processual brasileira praticamente um consenso quanto a necessidade de tornar o processo mais célere. Esse pensamento fundamentou diversas reformas no Código de Processo Civil, entre elas as que atingiram o processo de execução de sentença e culminaram com sua extinção, em meados da década passada.
Entretanto, não há como se indicar com precisão qual seria prazo razoável de duração. Até mesmo porque diversos fatores intrínsecos e extrínsecos a cada processo, no caso concreto, devem ser considerados, inclusive a infra-estrutura judiciária.
Não se pode ignorar que:
Como já advertiu Francesco Carnelutti, é preciso ter paciência, porque “se a justiça é segura não é rápida e se é rápida não é segura”. (...) O julgamento não pode, em prol da tempestividade do provimento, desatender aos princípios fundamentais da ordem jurídica, impedindo ou limitando a defesa do réu (BAUMÖHL,2006, p. 05).
É a visão do processo, a partir desses princípios fundamentais ou das garantias processuais consagradas na Constituição da República, que a escola constitucionalista do processo convencionou chamar de “modelo constitucional de processo”.
Andolina e Vignera, no direito italiano, compreendem esse modelo como:
As normas e os princípios constitucionais que se referem ao exercício das funções jurisdicionais, se consideradas na sua complexidade, que concedem ao intérprete a determinação de um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, suscetível de formar o objeto de uma exposição unitária (tradução livre).
Nesta perspectiva, a nossa Constituição traz um modelo constitucional de processo consubstanciado, por exemplo, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CRFB/88), do direito à prova, do direito ao recurso, da isonomia (art. 5º, caput, CRFB/88), do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CRFB/88), da fundamentação racional das decisões (art. 93, inciso IX, CRFB/88), do juízo natural (art. 5º, inciso LIII, CRFB/88), da independência da magistratura, da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CRFB/88), da celeridade e do direito ao advogado (art. 133, CRFB/88). (NUNES, 2004, p. 40).
Destarte, no modelo constitucional de processo brasileiro, encontra-se a expressa garantia do acesso ao poder judiciário (ou da inafastabilidade da tutela jurisdicional - art. 5º LIII) - entendido no sentido de que toda lesão ou ameaça a direito será apreciada pelo Poder Judiciário por meio do processo que, realizado em contraditório e garantindo a ampla defesa, terá duração razoável, dispondo as partes dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação, assegurando a observância do devido processo legal.
Nesse sentido, não se pode ignorar que a duração prolongada do processo pode ser considerada uma violação à garantia do devido processo legal, que assim está consagrado no artigo 5º da Constituição: “LIV – ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Desse modo, se alguém só consegue determinado bem da vida a que tem direito - após longuíssimo processo de conhecimento e interminável processo de execução, precedido de processo de liquidação de sentença e interrompido por embargos à execução, todos objeto de recurso com efeito suspensivo - esteve “privado de seus bens sem o devido processo legal”, pois aqueles mantiveram-se em poder de outrem durante toda a longa espera. Nesse quadro, certo é que não lhe foi garantido o acesso à devida e tempestiva tutela jurisdicional. Portanto, não há dúvida de que a duração excessiva ofende ao modelo constitucional de processo brasileiro.
Diante do exposto, a nova execução de sentença, ao que nos parece, não ofende o modelo constitucional de processo, porque nela estão asseguradas todas as garantias do executado, devendo ser plenamente observado o contraditório e a ampla defesa não apenas na impugnação, mas em toda a fase de execução. Em verdade, parece-nos que melhor se adequa a tal modelo, uma vez que consagra, do ponto de vista do credor, o acesso efetivo à tutela jurisdicional, o devido processo legal e - espera-se - a duração razoável do processo, ao menos na fase de execução.
Na busca por maior efetividade do processo e da garantia do acesso à tutela jurisdicional, com o objetivo de dar àquele duração razoável, bem como diante da rígida separação entre processo de conhecimento e processo de execução - mantida inexplicavelmente até recentemente por injustificado apego a modelos formalistas do passado - o legislador optou por acabar, de maneira gradual, com o processo de execução de sentença. Ou seja, com o processo executivo autônomo e não com a execução em si, o que seria inimaginável, conferindo mais poderes ao magistrado para dar concretude ao que restou decidido.
Tal procedimento pode, por um lado, de fato reduzir, em muito, o tempo entre a prolação da sentença e a satisfação do credor; por outro, gerar erros, exageros e arbítrios do juiz em face das muitas possibilidades (“poderes”) que lhe foram conferidos para, de ofício, fazer cumprir a sentença, seja de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia certa.
Diante de tão profunda e substancial reformulação do sistema processual civil, cumpre-nos abdicar dos conceitos arraigados e adotar uma interpretação da nova execução de sentença mais de acordo e comprometida com o modelo constitucional de processo brasileiro. Este, como já se disse, caracterizado pela garantia de que toda lesão ou ameaça a direito será apreciada pelo Poder Judiciário através do processo que, realizado em contraditório e assegurando a ampla defesa, tenha duração razoável, dispondo as partes dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação, assegurando a observância do devido processo legal.
Apenas com o passar do tempo, teremos clareza se os novos (ou nem tão novos) rumos dados à execução no processo civil brasileiro foram realmente positivos. Todavia, a experiência resultante das primeiras reformas - ocorridas há aproximadamente doze anos - em que pesem diversas críticas pontuais da doutrina, indicia que o legislador (ao menos no que tange à execução das sentenças) parece ter acertado no caminho escolhido para as reformas do Código de Processo Civil.
ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
BAUMÖHL, Débora Inês Kram. A Nova Execução Civil: a desestruturação do processo de execução. Coleção Atlas de Processo Civil. São Paulo: Atlas, 2006.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado. 5 tiragem. Tradução: Eduardo Brandão. Martins fontes: São Paulo, 2000. Título original: Elogio dei giudici screitto da un avvocato.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
NUNES, Dierle José Coelho. Apontamentos Iniciais do Modelo Constitucional de Processo Civil Brasileiro: da concepção procedimental comparticipada de aplicação da tutela – da leitura das cláusulas gerais no Novo Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de Sete Lagoas, v. 3 n. 1. p. 37-61, jun/jul 2004.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de Execução. 13. ed. São Paulo: Edição Universitária de Direito, 1989.
_____. Cumprimento da Sentença e a Garantia do Devido Processo Legal: antecedente histórico da reforma da execução de sentença ultimada pela lei 11.232 de 22.12.2005. 2. ed. Belo Horizonte: Melhoramentos, 2006.
Procurador Federal; Subprocurador da Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais; Especialista em Direito Processual pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REZENDE, Marcus Vinícius Drumond. O modelo constitucional de processo brasileiro e a nova execução de sentença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2014, 07:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38100/o-modelo-constitucional-de-processo-brasileiro-e-a-nova-execucao-de-sentenca. Acesso em: 23 dez 2024.
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