Com a edição da Portaria Secex n. 8, de 25.9.2000, o Uruguai considerou-se prejudicado, pois a decisão do Conselho do Mercado Comum[1] CMC n. 22 de 2000 firmou o compromisso entre os países integrantes do Mercosul de não dar causa a novas medidas restritivas ao comércio entre si. Diante de tais circunstâncias, o Uruguai solicitou ao Brasil negociações diretas sobre a proibição de importação de pneus remoldados, portanto usados, procedentes daquele país (nos termos dos arts. 2º e 3º do Protocolo de Brasília).
Encerrada frustrada a fase de negociações, o Uruguai iniciou o procedimento arbitral.
Argumentou o Uruguai que foram afrontados princípios de Direito Internacional, tais como a boa-fé e o pacta sunt servanda, preceitos fundamentais contidos no direito das obrigações e dos contratos, no sentido de que os contratos devem ser obedecidos, em referência ao Tratado de Assunção, com a garantia de livre circulação de bens, sem restrições.
Sustentou, também, que teria sido afrontado o princípio do estoppel, intimamente relacionado com o princípio da boa fé objetiva, pois define a impossibilidade de que uma pessoa tome uma posição jurídica contrária a comportamento assumido previamente. No caso em tela, o fato de proibir o livre comércio após tê-lo permitido por dez anos. Em outras palavras, seria a impossibilidade de editar o Brasil norma contrária a acordo ou convenção assinada por ele anteriormente, referindo-se ao Tratado de Assunção, sob pena de afronta à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, da qual o Brasil é signatário.
Em sua defesa, o Brasil alegou que não havia consenso quanto a definição do que englobaria a expressão “pneus usados”.
O Brasil alegou que o fluxo de importação que existiu nos últimos anos era proveniente de erro no momento de completar os documentos necessários à importação, não constituindo, portanto, reconhecimento de sua licitude pelo governo brasileiro. Citou em sua defesa também algumas sentenças que não autorizavam a importação de tais pneus, não havendo, portanto, nada que indicasse essa crença legítima de que a importação era permitida. Logo, não houve preclusão do direito de proibi-la.
A Portaria 8 de 2000 teria, na verdade, caráter meramente interpretativo, explicitando a proibição de importação de pneumáticos reformados já existente com anterioridade, ao estarem incluídos na proibição referente a pneumáticos usados. Assim, a Portaria n. 8/00 foi editada justamente para corrigir essas falhas no Sistema Informatizado de Comércio Exterior do Brasil – Siscomex.
Esse fluxo de importação que houve no Brasil nos últimos anos, proveniente do erro no preenchimento dos documentos necessários à importação, não constituiria, portanto, reconhecimento de sua licitude pelo Governo brasileiro.
Destaca-se que o Brasil não alegou qualquer questão ambiental. Sua defesa foi apenas no sentido de que a Portaria Secex n. 8/00 não estabelecia, como pretendia o reclamante, nova proibição de acesso ao mercado brasileiro, ou extensão ilegítima de restrição anteriormente existente.
O laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc do Mercosul, de 9.1.2002, concluiu pela ilegalidade da proibição de importação de pneus remoldados de países integrantes do bloco econômico da América do Sul, pois teria existido durante a década de noventa, especificamente a partir de 1994/95, um fluxo comercial em direção ao Brasil de pneumáticos recauchutados (remoldados) provenientes do Uruguai, compatível com a legislação interna do Brasil aplicada a partir da Portaria n. 8/91.
Ademais, para o Tribunal Arbitral a Decisão n. 22/00 impunha aos Estados-Partes a obrigação de não adotar medidas restritivas ao comércio recíproco e, como a Portaria n. 8/00 foi posterior à Decisão n. 22/00, ela impôs novas restrições ao comércio recíproco então existente.
Independentemente do fato de não ser compatível com a Decisão CMC n. 22/00, asseverou o Tribunal que a Portaria n. 8/00 contradizia princípios gerais do direito, especialmente o princípio do estoppel, cuja aplicação no presente caso reafirma os postulados básicos relativos ao objeto e ao fim do Tratado de Assunção.
Em conseqüência, o Brasil teve de adequar sua legislação àquela decisão. Sob esse fundamento, a Secretaria de Comércio Exterior – Secex editou a Portaria n. 2/02, que manteve a vedação de importação de pneus usados, mas criou exceção para os pneus remoldados provenientes dos Países-Partes do Mercosul.
Repita-se: o Brasil não utilizou em sua defesa qualquer motivação ambiental para a imposição da proibição questionada, e portanto, ao Tribunal Arbitral não foi demandado analisar se a proibição se justificava nos termos do artigo 50 do Tratado de Montevidéu[2].
Deve-se ressaltar que, à época, inexistia a possibilidade de recurso da decisão, já que somente o Protocolo de Olivos veio a criar a etapa recursal, representada pelo Tribunal Permanente de Revisão.
Neste ponto, vale citar que alguns anos depois o Uruguai também demandou a Argentina no Mercosul em razão da proibição promovida pela Lei Argentina n 25.626/01 de importação de pneus recauchutados (os usados já eram proibidos).
É interessante mencionar este caso, pois ele se deu já sob a égide do Protocolo de Olivos, que, como foi mencionado anteriormente, previa a possibilidade de eleição de foro, bem como a existência de instancia recursal, o TPR. Foi optado pelo foro do Mercosul e não houve julgamento per saltum.
Em sua defesa, a Argentina alegou na primeira etapa do procedimento arbitral exceção de natureza ambiental permitida pelo artigo 50 do Tratado de Montevidéu, para justificar a existência da medida restritiva ao comércio. A Argentina alegou também violação ao art. XX do GATT[3].
O Uruguai apresentou alegações semelhantes às feitas no litígio com o Brasil.
Nesta demanda, o Tribunal Arbitral Ad Hoc afastou a aplicação do principio do stoppel asseverando que no caso não havia a existência de um fluxo ou prática comercial suficientes para gerar a expectativa de que se constituiria uma obrigação internacional.
O TAH afirmou também que a proteção do meio ambiente é um princípio básico para o Mercosul. A defesa do meio ambiente, desde que fundada em justas razões pode ser usada como exceção às normas gerais de integração regional e, particularmente aquelas que regulam o livre comércio entre os países do Mercosul.
O Tribunal decidiu não somente que a proteção do meio ambiente podia constituir uma exceção ao principio de livre circulação de mercadorias, mas também que cabia ao Uruguai provar a inxistência de ameaças ambientais (inversão do ônus da prova).
Aduziu ainda que o que se produz e exporta no Uruguai são pneus reconstituídos a partir da carcaça geralmente importada de países desenvolvidos.
Esse laudo também afirmou que no caso brasileiro o Tribunal, naquela oportunidade, preocupou-se exclusivamente em verificar se o comportamento do Brasil implicava ou não violação do princípio do livre comércio.
Não havia em todo o laudo arbitral qualquer preocupação com a preservação do meio ambiente. Em nenhum tópico daquela decisão arbitral se menciona, por exemplo, o art. 2º do anexo I do Tratado de Assunção[4], ou o art. 50 do Tratado de Montevidéu, marco jurídico de importância fundamental no deslinde dessa arbitragem.
Assim, a lei argentina foi declarada pelo Tribunal Ad Hoc compatível com o Tratado de Assunção e as normas de Direito Internacional aplicáveis ao caso.
No entanto, o Uruguai recorreu e conseguiu reverter a decisão. O Tribunal Permanente de Revisão entendeu que quem invoca uma exceção ao livre comércio deve prová-la. Ademais, disse que a medida era discriminatória, pois não proibia a circulação de pneus recauchutados nacionais.
Segundo o TPR, a lei argentina tinha por finalidade predominante o estímulo da indústria nacional e não a proteção do meio ambiente. Este Tribunal não percebeu que se proibisse a recauchutagem de carcaça nacional é que o ambiente não estaria protegido, pois após uma única utilização o pneu já seria passivo ambiental.
Enfim, o TPR não analisou devidamente a questão ambiental, colocando-a como questão de prova, a qual não foi produzida. Também ataca o fato de haver incentivo às fábricas de recauchutagem na Argentina, lembrando que ela utiliza carcaça nacional, pois a importação de carcaças também foi proibida.
Dessa decisão a Argentina apresentou impugnação, mas não foi acolhida por não ser meramente aclaratória, mas uma tentativa de revisão do julgado, o que não era cabível.
A exemplo do Tratado de Roma para a União Europeia, o Tratado de Assunção não apresentava originalmente em seu articulado nenhuma disposição de ordem ambiental. Somente seu preâmbulo previa a proteção ambiental, enunciando que os objetivos econômicos deviam se fundar num aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis na preservação do meio ambiente.
Assim, o caso dos pneus parece indicar que o Mercosul ainda está longe de constituir um foro privilegiado para as questões ambientais.
[1] O Conselho do Mercado Comum é o órgão superior do Mercosul ao qual incumbe a condução política do processo de integração e a tomada de decisões para assegurar o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo Tratado de Assunção e para lograr a constituição final do mercado comum. O Conselho do Mercado Comum é integrado pelos Ministros das Relações Exteriores; e pelos Ministros da Economia, ou seus equivalentes, dos Estados-Partes
[2] ARTIGO 50: “Nenhuma disposição do presente Tratado será interpretada como impedimento à adoção e ao cumprimento de medidas destinadas à:
(…)
d) Proteção da vida a saúde das pessoal, dos animais e dos vegetais”
[3] Artigo XX do GATT:“As exceções estão sujeitas à condição de que tais medidas não sejam aplicadas de maneira tal que viria a constituir um meio de discriminação arbitrária ou injustificável entre Estados onde a mesma condição prevalece, ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional, e nada neste Acordo há de ser elaborado para prevenir a adoção ou fortalecimento, por qualquer das partes contratantes, de medidas:
(..)
b) necessárias para proteger a saúde ou a vida de pessoas, animais e vegetais;
(...)
g) relacionadas à conservação de recursos naturais não renováveis quando tais medidas forem tomadas efetivamente em conjunto com restrições sobre a produção ou o consumo domestico.”
[4] Anexo I, do Tratado de Assunção: “Artigo 1º - Os Estados Partes acordam eliminar, o mais tardar a 31 de dezembro de 1994, os gravames e demais restrições aplicadas ao seu comércio recíproco.
No que se refere às Listas de Exceções apresentadas pela República do Paraguai e pela República Oriental do Uruguai, o prazo para sua eliminação se estenderá até 31 de dezembro de 1995, nos termos do Artigo Sétimo do presente Anexo.
Artigo 2º - Para efeito do disposto no Artigo anterior, se entenderá:
(...)
b) por "restrições", qualquer medida de caráter administrativo, financeiro, cambial ou de qualquer natureza, mediante a qual um Estado Parte impeça ou dificulte, por decisão unilateral, o comércio recíproco. Não estão compreendidas no mencionado conceito as medidas adotadas em virtude das situações previstas no Artigo 50 do Tratado de Montevidéu de 1980.”
Procuradora Federal. Graduada pela Universidade de Brasília - UNB. Mestranda pela Universidade de Lisboa;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES, Camila Dias. O caso dos penumáticos no Mercosul: Uruguai X Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38104/o-caso-dos-penumaticos-no-mercosul-uruguai-x-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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