Em razão da proibição expressa da importação de pneus recauchutados no Brasil, bem como da exceção feita para os pneus provenientes do Mercosul[1], a União Europeia decidiu demandá-lo perante a OMC.
A União Europeia não questionou, no caso, os riscos da acumulação de pneus e a importância de políticas governamentais para a solução desse problema, mas apenas não concordou que a proibição de importações fosse a medida necessária e adequada para resolver o problema ambiental, cabendo outros tipos de políticas governamentais.
O Brasil, de outro lado, alegou que o país já produzia carcaças de pneus em demasia e que não havia políticas governamentais alternativas efetivas para a solução do problema, tendo-se em vista a correta destinação do produto, ou seja, a reciclagem. Dessa maneira, a proibição de importação seria válida de acordo com o princípio da não geração de mais resíduos.
A União Europeia também argumentou que o Brasil poderia dar destinação a seus resíduos de pneus com segurança se simplesmente empregasse os três seguintes métodos: armazenamento em pilhas, incineração em fornos de cimento e reciclagem. Contudo, armazenamento em pilhas não é método de destinação final, pois não elimina os resíduos de pneu, e incineração é francamente poluidora. Já a reciclagem não é capaz de absorver o elevado número de pneus existentes.
Alegou também que a proibição de importações não contribuia significativamente para a meta do Brasil de reduzir os riscos provocados por resíduos de pneus, pois os reformadores brasileiros trabalhavam com carcaças importadas, obtidas através de decisões judiciais.
Interessante observar que a UE explicitamente se opõe ao despejo do ônus dos resíduos de penus sobre seus Estados-Membros mais pobres. No entanto, adotou a exportação de resíduos de pneus e pneus reformados para países não membros da UE como instrumento de gestão de resíduos.
A UE também alegou que não caberia a exceção prevista na OMC para o acordos regionais de comércio ao Mercosul, pois alegaram que o Brasil deveria, a fim de pleitear a exceção do artigo XXIV GATT, e em particular de seu inciso 5, alínea a, provar que o Mercosul era uma união aduaneira.
Deve-se registrar, no entanto, que a União Europeia já reconheceu, em outras oportunidades, que o Mercosul tinha uma tarifa externa comum (TEC) e uma política externa também comum, tendo elimidado substancialmente todas as tarifas e regulamentos restritivos intrabloco, o que faria com fosse perfeitamente enquadrado como união aduaneira.
Os princípios fundamentais da OMC são o da nação mais favorecida (NMF) e do tratamento nacional (TN). Pelo princípio da nação mais favorecida qualquer vantagem concedida a um parceiro comercial estende-se automaticamente a todos os demais membros da OMC. De acordo com o princípio do tratamento nacional, um membro da OMC não pode discriminar produtos importados originários dos territórios de outros membros, devendo lhes garantir o mesmo tratamento jurídico concedido aos produtores nacionais.
No âmbito da OMC, o fato de um Estado-Membro também fazer parte de um Acordo Comercial Regional pode lhe dar certas isenções de cumprimento da obrigação da cláusula da nação mais favorecida, um dos princípios basilares deste organismo internacional. Por sua vez, é o artigo XXIV do GATT 94 que estabelece as regras sobre a coexistência e a compatibilidade dos ACRs com as regras de liberalização comercial preconizadas com a criação da OMC.
A União Europeia questionou também as diversas decisões proferidas pelo judiciário brasilero que autorizavam a importação de carcaças, o que demonstraria que a proibição de recauchutados seria, na verdade, uma forma de proteger este ramo da indústria nacional e que os pneus brasileiros não seriam recauchutáveis, pondo por terra a tese de que o Brasil reaproveitaria suas carcaças, prologando a vida dos pneus existentes no país e diminuindo, assim, o seu impacto ambiental.
Aqui vale fazer um adendo: as empresas reformadoras brasileiras preferem importar carcaças reformáveis simplesmente porque estas são substancialmente mais baratas que as carcaças nacionais.
É por essa exata razão que os reformadores brasileiros têm agressivamente buscado a importação de pneus usados através de medidas liminares. No entanto, a preferência dos reformadores por carcaças importadas baratas de forma alguma indica que não há carcaças brasileiras reformáveis disponíveis.
Alegou também a UE que eliminar os resíduos de pneus, por si só, não resolveria o problema da dengue.
De fato, a afirmação é inteiramente correta. Enquanto resíduos de pneus são um dos mais comuns e freqüentemente preferidos criadouros dos mosquitos, outros itens também servem como criadouros, tais como barris, tanques, latas e garrafas de plástico. Para eliminar essa doença, o Brasil precisa atingir todos os principais recipientes, e é isso precisamente o que tem feito em sua campanha contra a dengue.
A proibição das importações de pneus reformados claramente não pode eliminar os danos à saúde e ao meio ambiente em sua totalidade, pois os resíduos de pneus continuarão a ser gerados. No entanto, como um resultado direto da proibição das importações, haverá menos resíduos e com menos resíduos haverá menos incêndios de pneus, menos casos de dengue e menos danos provocados por fornos de cimento ou outros métodos de destinação final.
É interessante observer que a proibição das importações de pneus usados aumenta significativamente os custos de produção para os reformadores brasileiros, colocando-os em desvantagem, pois permite que concorrentes de outros países do Mercosul usem carcaças importadas baratas, enquanto se nega este direito aos reformadores brasileiros. Este fato demonstra claramente que a norma não tem qualquer objetivo de proteger o mercado nacional. O único objetivo é, de fato, evitar a geração de mais resíduos de difícil gestão.
De outro lado, as importações de pneus novos cresceram na ordem de aproximadamente 53% no período de 2000 a 2005. Além disso, a proibição de importações não levou a um aumento das vendas de fabricantes nacionais de pneus novos. Os produtores nacionais não auferiram nenhum lucro com a proibição brasileira.
A meta do Brasil é eliminar a isenção do Mercosul. Atualmente, o Brasil tem obrigação jurídica de cumprir a decisão do Tribunal Ad Hoc e, por isso, está trabalhando em conjunto com seus parceiros do bloco sulamericano para implementar uma política comum de resíduos e espera poder brevemente proibir importações de pneus reformados dos países do Mercosul.
O Relatório do Painel deciciu, em julho de 2007, que as portarias Secex que proibiam a importação de penus recauchutados estavam em desconformidade com o Art. XI:1 do GATT 1994, que dispõe que “nenhuma proibição ou restrição que não seja tarifária, tributária ou que envolva outros encargos, quando adotadas por quotas, licenças de importação e exportação ou outras medidas, deverá ser instituída ou mantida por qualquer [Membro] na importação de qualquer produto de território de outro [Membro] ou na exportação ou venda para exportação de qualquer produto destinado ao território de qualquer outro [Membro]”.
De outro lado, reconheceu que o Brasil demonstrou a existência de riscos para a vida e a saúde humana, nos termos do Art. XX, b, relacionados com o acúmulo de pneus usados e a existência de riscos à vida animal e às plantas ou à saúde em relação às emissões tóxicas causadas pela queima de pneus. Concluiu também que existem riscos à vida animal ou à saúde provocados por pelo menos uma doença – dengue - transmissível por insetos em razão da acumulação de pneus usados.
O Painel também concluiu que a proibição de importação é hábil para contribuir para a redução do volume de carcaças de pneus geradas no Brasil.
Restou decidido, outrossim, que as medidas sugeridas pela União Europeia não constituiam alternativas razoáveis disponíveis à proibição de importação de pneus reformados que pudessem alcançar os objetivos do Brasil na redução da acumulação de resíduos de pneus em seu território e concluiu que a proibição de importação de pneus reformados podia ser considerada ‘necessária’ nos termos do Art. XX, b. Estaria, assim, justificada provisoriamente nos termos do Art. XX, b.
Já as importações de pneus usados que tenham ocorrido por intermédio de autorizações judiciais prejudicam o cumprimento do objetivo declarado pelo Brasil e constituiriam um meio de discriminação injustificada.
O fato de as importações serem decorrentes de decisões de tribunais não exonera o Brasil de suas obrigações na OMC. Ao contrário, um membro da OMC tem responsabilidade pelos atos de todos os seus departamentos governamentais, inclusive seu judiciário.
No entanto, as importações de pneus reformados originárias do Mercosul foram consideradas relativamente pequenas e que por isso não comprometeriam o objetivo da política brasileira, podendo ser mantida, então, a exceção ao Mercosul.
Ao final, o Painel concluiu que o Brasil não se encontrava em conformidade com as obrigações que assumiu sob o sistema multilateral de comércio em razão das decisões judiciais que permitiam a importação de pneus usados, pois estas importações, segundo o painel, são em quantidades significativas para anular o objetivo buscado com a proibição das importações.
O relatório condenou o Brasil, mas lhe reconheceu o direito de invocar, sob o fundamento do art. XX do GATT de 1994, razões de ordem ecológica e sanitária para proibir a importação de produtos considerados prejudiciais ao meio ambiente. Reafirmou-se, contudo, que as restrições por motivos ambientais não podem provocar discriminações arbitrárias ou injustificadas entre os membros da OMC.
A UE apelou da decisão. Em 3 de dezembro de 2007, o Órgão de Apelação da OMC veiculou sua conclusão e manteve sua decisão no sentido de que era justificável a medida adotada pelo Brasil quanto à proibição de importação de pneus usados e reformados, para fins de proteger a vida e a saúde humanas, bem como a sua flora e fauna, nos termos do Art. XX, b, do GATT.
No entanto, o Órgão de Apelação decidiu que a isenção de proibição de importação de pneus usados dada ao Mercosul e as importações de pneus usados e reformados por meio de liminares, independentemente do volume de importações que propiciam, configuram uma injustificada e arbitrária discriminação.
Proferida a decisão, as partes decidiram instituir uma arbitragem vinculante, de acordo com o que permite o sistema de solução de controvérsias da OMC para estipular prazo razoável para o cumprimento da decisão.
Em 25 de setembro de 2009, o Brasil informou que havia dado pleno cumprimento as recomendações e resoluções proferidas pelo sistema de solução de controvérsias. No entanto, a verdade é que, no âmbito do Mercosul, o Brasil conseguiu apenas a edição da resolução GMC 25/08 para criação do Grupo Ad Hoc para uma política regional sobre pneus, inclusive reformados e usados.
O Grupo Ad Hoc teria como mandato inicial elaborar, até o final de 2008, uma política do MERCOSUL para o comércio de pneus reformados e usados??e uma política comum de destinação final ambientalmente adequada para todo o setor de pneus.
Contudo, até o hoje não foi criada essa poliítica. E como então foi dado cumprimento a decisão da OMC?
Em 06 de janeiro de 2008, foi assinado um acordo entre a União Européia e o Brasil para evitar retaliação comercial no curto prazo, em razão de o Brasil não ter cumprido o prazo estipulado pela arbitragem para uniformizar a proibição de importação de pneus usados e reformados. Não ficou claro no bojo do acordo qual seria o benefício para a União Europeia, mas certamente houve algum interesse político para sua assinatura.
[1] Assim restou decidido no conflito que houve entre o Brasil e o Uruguai dirimido pelo sistema de resolução de conflitos do MERCOSUL
Procuradora Federal. Graduada pela Universidade de Brasília - UNB. Mestranda pela Universidade de Lisboa;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES, Camila Dias. O caso dos pneumáticos na OMC: União Europeia x Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38113/o-caso-dos-pneumaticos-na-omc-uniao-europeia-x-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
Por: Beatriz Matias Lopes
Por: MARA LAISA DE BRITO CARDOSO
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
Precisa estar logado para fazer comentários.