É sabido que o Fisco pode, em razão do seu poder de polícia, apreender mercadorias, com o fito de cobrar tributo. Ocorre, entretanto que na maioria das vezes tal apreensão exorbita o poder que o Fisco, caracterizando, assim, uma sanção política que é repudiada em nosso ordenamento jurídico.
De fato, estabelece o art. 5º, inciso LIV da Carta Magna, que “aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes”.
Sobre o poder de polícia da Administração Pública, sabe-se que se refere ao condicionamento e restrição no uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, para a proteção e beneficiamento de toda a coletividade e do próprio Estado, ou seja, se estende à todos os assuntos que possam afetar o setor social, a comunidade e o Estado, nos termos do artigo 78 do Código Tributário Nacional:
“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”
Ao discorrer acerca do poder de polícia, o professor Hely Lopes Meirelles[1] leciona que "a razão do poder de polícia é a necessidade de proteção do interesse social e o seu fundamento está na supremacia geral que a Administração Pública exerce sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público o seu policiamento administrativo".
Destarte, a apreensão de mercadorias com o fito de coagir o contribuinte ou responsável tributário para saldarem um determinado tributo é uma prática de todo refutada pela jurisprudência dominante. Tal entendimento restou inclusive cristalizado na Súmula nº 323 do Pretório Excelso, a qual assim dispõe: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.
Assim, se o contribuinte está em situação irregular diante do fisco, deve este unicamente adotar as providências necessárias para a constituição do crédito tributário e posterior cobrança, garantindo-se o devido processo legal. Para tanto, basta apenas identificar o sujeito passivo da obrigação tributária e o valor devido, não se admitindo a retenção por tempo indefinido das mercadorias pertencentes ao contribuinte.
Identificado, desta forma, o sujeito da obrigação tributária, especificado o produto, a quantificação e avaliação da mercadoria, lavrado o auto de infração, desarrazoada a apreensão por parte do Fisco, por se configurar um ato obstativo da atividade comercial, devendo, portanto, ser banido do ordenamento jurídico, por desrespeito às garantias constitucionais asseguradas ao contribuinte no art. 150 da Carta Magna.
Nesse sentido, os tribunais pátrios, inclusive o Colendo Superior Tribunal de Justiça, já se pronunciaram quanto a ilegalidade de ato de apreensão de mercadorias como meio coercitivo ao pagamento de tributo, vejamos:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. APREENSÃO DE MERCADORIA. SITUAÇÃO CADASTRAL IRREGULAR. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 07/STJ. 1. Consoante jurisprudência desta Corte, é inadmissível a apreensão de mercadoria com a única finalidade de coagir o pagamento de tributo pelo contribuinte. 2. In casu, consignado no acórdão recorrido que a Autoridade Fazendária não reteve a mercadoria objetivando o pagamento do tributo, mas pela ausência de inscrição no Cadastro Fiscal do Distrito Federal, a análise da questão ensejaria reexame de provas, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ. 3. Agravo Regimental não provido.
(STJ - SEGUNDA TURMA, AGA 200700378557, HERMAN BENJAMIN, DJ DATA:07/02/2008 PG:00001 ..DTPB:.)
REEXAME NECESSÁRIO. CONCESSAO DA SEGURANÇA. APREENSAO DE MERCADORIAS COMO MEIO COERCITIVO PARA PAGAMENTO DE TRIBUTO. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇAO, IN TOTUM, DA SENTENÇA RECORRIDA. I- É sabido que o Fisco dispõe de procedimento adequado para consecução de seus créditos, fato que o impede de efetivar medidas restritivas às atividades dos contribuintes, que venham a prejudicar o desempenho da mercancia, medida que não compadece com a legislação federal vigente. II- Assim, no Estado Democrático de Direito, não é legal que a Administração proceda à apreensão de mercadorias ou bens sem observar os ditames legais, pois somente é possível este procedimento para efeito de constituir prova do ilícito fiscal, ou seja, para lavrar o auto de infração, vez que o poder público dispõe de procedimento específico para a cobrança do crédito. III- Ressalta-se, também, que o poder de polícia encontra limites, devendo ser exercido em observância aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e finalidade que regram o interesse público. IV- Evidencia-se, com isto, o flagrante desiderato da Recorrida em coagir a Requerente ao pagamento de impostos, mediante a retenção das mercadorias destinadas à circulação. V- Isto posto, tem-se que a decisão fustigada encontra-se em harmonia com a orientação deste Tribunal, e notadamente na Súmula nº. 323, do Supremo Tribunal Federal, no sentido de repelir formas oblíquas de cobrança de débitos fiscais, que caracterizam ofensa à garantia constitucional do livre exercício de qualquer atividade econômica, sopesando, ainda, que o fisco detém mecanismo próprio para a cobrança de seus créditos.V- Manutenção, in totum, da sentença recorrida. VI-Jurisprudência dominante dos tribunais pátrios. VII- Decisão por votação unânime. (TJ-PI - REEX: 201100010070978 PI , Relator: Des. Raimundo Eufrásio Alves Filho, Data de Julgamento: 08/08/2012, 1a. Câmara Especializada Cível)
MANDADO DE SEGURANÇA - DIREITO TRIBUTÁRIO - APREENSAO DE MERCADORIAS COMO MEIO COERCITIVO PARA O PAGAMENTO DE TRIBUTOS - AUTO DE INFRAÇAO DEVIDAMENTE LAVRADO - MANUTENÇAO DA APREENSAO - IMPOSSIBILIDADE - SÚMULA 323 DO STF - PRECEDENTES - VIOLAÇAO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO DO IMPETRANTE - CONCESSAO DO WRIT. I - No caso dos autos, não subsiste a apreensão de mercadorias, uma vez que não é esta a única forma de viabilizar a constituição do crédito tributário, sobretudo, considerando que já ocorrera a identificação do sujeito passivo da obrigação, a apuração do montante do crédito fiscal e a lavratura do auto de infração. II - O Fisco Estadual dispõe dos meios legais para a cobrança de débitos dos contribuintes, atendendo ao devido processo legal. III - Concessão da segurança. Decisão unânime. (TJ-SE - MS: 2011123268 SE , Relator: DESA. SUZANA MARIA CARVALHO OLIVEIRA, Data de Julgamento: 23/05/2012, TRIBUNAL PLENO)
Permissa venia, tal proceder fere frontalmente a garantia constitucional do livre exercício de qualquer atividade econômica. Portanto, é de se concluir que é abusivo e ilegal o procedimento do Fisco estadual que, como meio coercitivo para pagamento de tributos, apreende mercadorias em trânsito, sobretudo porque, dispondo de meios próprios para a cobrança de tributos que lhe são devidos, não pode coagir o contribuinte a pagar os débitos, sob pena de impedir-lhe a prática do livre exercício do comércio ou da atividade empresarial produtiva, ainda que notificados ou lançados em dívida ativa.
Dessa forma, torna-se completamente injurídica a medida de apreensão de mercadorias, quando a mesma visa meramente coagir o contribuinte interessado ao pagamento de tributos, multas e demais outras cominações que são carreadas pelo ente tributante, caracterizando-se verdadeiro abuso de poder.
Não é demasiado lembrar que o administrador público deve conduzir sua ação estritamente dentro do princípio da legalidade.
O saudoso professor Hely Lopes Meirelles[2] ensina acerca da vinculação do administrador ao referido princípio:
"(...) Legalidade. A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso (...)". .
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das considerações supra, conclui-se que o Fisco deve-se valer de outros meios legítimos ao recebimento de seus créditos, não podendo, assim, apreender mercadorias com o fito de coagir o administrado ao pagamento de tributo.
Outrossim, em se valendo da retenção de mercadoria, restará caracterizado o abuso de poder, o que é rechaçado por nosso ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 14ª edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
__________, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 27ª edição, São Paulo: Malheiros, 2002.
[1] in Direito Municipal Brasileiro, 14ª edição, 2006, Editora Malheiros, p. 341.
[2] in Direito administrativo brasileiro, 27. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 86
Procuradora Federal em exercício na Procuradoria Federal junto à Fundação Universidade Federal do Tocantins - UFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Patricia Bezerra de Medeiros. Da apreensão de mercadorias pelo fisco como forma de coagir o contribuinte ao pagamento de tributo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38135/da-apreensao-de-mercadorias-pelo-fisco-como-forma-de-coagir-o-contribuinte-ao-pagamento-de-tributo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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