O dinamismo da atividade empresarial, muitas vezes, importa em mudanças na estrutura societária das pessoas jurídicas, inclusive, daquelas que contratam com a Administração Pública. Em que pesem as premissas do princípio da pessoalidade que norteiam os contratos em geral e, especialmente, aqueles firmados com o poder público, será demonstrado que o ordenamento jurídico e a jurisprudência do Tribunal de Contas da União relativizam tais premissas, de modo a admitir, desde que cumpridos outros requisitos, a alteração subjetiva dos contratos administrativos decorrentes de fusão, cessão ou incorporação da empresa contratada.
Conforme estabelece o inciso VI, do art. 78, da Lei nº 8.666/93, é possível a alteração subjetiva dos contratos administrativos, decorrente de fusão, cisão ou incorporação da empresa contratada, desde que não traga qualquer prejuízo à execução do contrato e observe o interesse público.
Nessa toada, são as conclusões do Subprocurador Geral da Fazenda Aposentado Leon Frejda Szklarowsky[1]:
A conclusão insofismável é de que a lei realmente não obsta a subcontratação total da execução do contrato, nem tampouco a cessão (transferência) total ou parcial, com o que está de acordo DIÓGENES GASPARINI, ao avisar que:
“o Estatuto Federal Licitatório vai mais além e admite a subcontratação total (toda a execução do contrato passa para um terceiro sem que o subcontratante se desvincule do contrato) do objeto e a cessão (transferência total ou parcial dos direitos decorrentes do contrato a terceiro, com o cedente desvinculando-se no todo ou em parte do contrato cujos direitos foram cedidos), se essas operações estiverem previstas e reguladas no edital. Observe-se que o Estatuto Federal Licitatório só considera motivo de rescisão contratual a subcontratação, total ou parcial, e a cessão e a transferência, total ou parcial, se não previstas no edital e no contrato. Consignadas no instrumento convocatório, essas operações são válidas, desvinculando-se ou não, em parte ou por completo, o contratado do contratante. Não cabe, assim, falar-se em fraude à licitação, ainda que alguém não selecionado por esse procedimento, acabe por relacionar-se contratualmente com a Administração Publica”(cf. Direito Administrativo, Saraiva, 4ª edição, 1995, pp. 396/7).
Pertinente é a lição do Prof. Marçal Justen Filho, in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 12ª Edição, pág. 780:
As hipóteses de fusão, cisão e incorporação apresentam algumas peculiaridades comuns entre si. As três figuras correspondem a modalidades de reorganização empresarial. Em todos os casos, verifica-se uma sucessão entre pessoas jurídicas e cabe aos interessados definir a extensão da responsabilidade dos sucessores.
(...)
Admite-se que a reorganização empresarial, por via de fusão, cisão ou incorporação, possa frustrar a finalidade buscada pela contratação. Mas a Administração deve evidenciar que o evento prejudica a execução do contrato ou importa outra categoria de vícios.
Ainda quando inexistir vedação expressa no instrumento convocatório, essas operações de reorganização empresarial podem acarretar a rescisão do contrato, se forem instrumento de frustração de regras disciplinadoras da licitação, o que deverá ser evidenciado caso a caso.
No mesmo sentido, ensina Antônio Roque Citadini, in Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas, 3ª edição:
A Administração poderá rescindir a avença quando ocorrer alteração substancial na empresa, modificando sua composição social, finalidade ou estrutura, de modo que a mudança ocorrida inviabilize a execução do pactuado. É necessário que a nova situação criada prejudique a execução do contrato; isto não ocorrendo, não poderá a Administração invocar tais razões para a rescisão.
Outro não é o entendimento do Ministro Augusto Nardes, na Consulta do Ministério dos Transportes, registrada sob o nº 009.072/2006-0:
“De fato, se o contrato já existe e o intento do administrador é simplesmente o de assegurar o normal prosseguimento da avença, não se pode acusá-lo de malferir a lei de licitações pelo simples motivo de que a licitação já foi feita, ou foi dispensada na forma devida, conforme o caso. De fato, se não há desnaturação do contrato, principalmente uma alteração essencial do objeto ou de equação econômico-financeira advinda da licitação, o procedimento permanece inteiramente válido, sendo até contraproducente desconsiderá-lo, com desperdício de tempo e dinheiro além de atraso na execução do objeto pretendido.
Há sim, certa despersonalização quando ocorre a reestruturação empresarial da contratada, afetando a natureza intuito personae dos contratos administrativos, mas tal despersonalização, como ficou evidenciado no voto condutor do Acórdão 1.108/2003, não é absoluta nos casos de cisão, incorporação ou fusão, ao contrário do que ocorre na sub-rogação e, possivelmente, na subcontratação total. Se a execução do objeto do contrato não poderá ser afetada pela nova formação societária da contratada, nada impede que o novo sujeito possa legitimamente sucedê-la em todas as obrigações avençadas, podendo inclusive fazê-lo em melhores condições, como se pode presumir principalmente nos caso de fusão ou incorporação.”
Assim sendo, percebe-se que, uma vez ocorrida fusão, cisão ou incorporação da empresa contratada, deve a administração demonstrar o prejuízo à execução do contrato para, então, poder rescindi-lo. Caso contrário, o contrato deve ser mantido.
A orientação construída no âmbito da Corte de Contas acerca da alteração subjetiva, do mesmo modo, menciona requisitos básicos necessários a sua efetivação, sempre pautado na prevalência do interesse público e na ausência de prejuízos à Administração. Observa-se ser possível alteração no ajuste em função da fusão, cisão ou incorporação da empresa contratada, ainda que tal previsão não esteja expressa no pacto bilateral. Veja-se:
VOTO
(...)
5. Acerca da legalidade de fusão, incorporação ou cisão em contratos administrativos, frente ao disposto no art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93, o TCU entendeu, em consulta formulada pela Câmara dos Deputados, por meio do Acórdão 1.108/2003 do Plenário, que é possível a continuidade dos contratos, desde que sejam observados os seguintes requisitos: - tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato; - a nova empresa cumpra os requisitos de habilitação originalmente previstos na licitação; e - sejam mantidas as condições originais do contrato.
6. Vale dizer, acerca do primeiro requisito, que o Tribunal vem evoluindo para considerar que, restando caracterizado o interesse público, admite-se a continuidade do contrato, ainda que não prevista a hipótese de reorganização empresarial no edital e no contrato. Essa é a posição, aliás, da Unidade Técnica, do autor da representação e do órgão contratante do Distrito Federal. Ademais, está contida no recente Acórdão nº 113/2006 - Plenário.
7. Penso ser louvável a evolução jurisprudencial ocorrida no TCU sobre essa matéria. A dinâmica empresarial inerente a um mercado competitivo e globalizado, que impõe a necessidade de alterações na organização da sociedade para a sua própria sobrevivência, não pode ficar engessada por falta de previsão, nos contratos administrativos, sobre a possibilidade de alteração organizacional, por meio de cisão, fusão ou incorporação.
8. A proibição de alteração da organização da sociedade contratante com a Administração Pública poderia, ao contrário do desejado pela norma, levar ao seu enfraquecimento e, assim, oferecer riscos à plena execução contratual.
9. É sabido que, nos contratos administrativos, a Administração Pública participa com supremacia de poderes na relação jurídica, com suporte no objetivo de fazer prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. E para isso, a Administração dispõe de prerrogativas, entre elas a possibilidade de alterar ou rescindir unilateralmente os ajustes e de aplicar sanções legais.
10. Assim, a previsão contida no art. 78, inc. VI, no que tange à ocorrência de fusão, incorporação ou cisão, deve ser vista como uma prerrogativa, uma faculdade da Administração, e não como uma conseqüência direta e inexorável da reorganização empresarial, que não admite avaliação acerca do interesse público na adoção da medida extrema.
11. A rescisão há de ser aplicada quando a hipótese prevista no dispositivo mostrar-se inconveniente para o serviço público ou quando ferir os princípios básicos da Administração Pública.
12. Não fosse esse o melhor entendimento, a previsão legal em apreço poderia ser utilizada para respaldar interesses particulares espúrios. Por exemplo, na hipótese de um contratado estar mal satisfeito com as condições pactuadas com o poder público, ele poderia providenciar, no âmbito do direito privado, uma fusão, incorporação ou cisão e assim pleitear o desfazimento contratual sem que tivesse que arcar com as conseqüências decorrentes da rescisão unilateral.
13. Por tudo isso, penso ser possível a alteração subjetiva nos contratos administrativos, desde que haja a prevalência incondicional do interesse público. Mantidos, portanto, os requisitos para habilitação previstos na licitação e as condições originais do contrato, pode o particular envolvido na reorganização empresarial pleitear a continuidade da execução contratual. Caberá à Administração acolher ou não o pedido, sempre com observância dos princípios que norteiam a Administração Pública e de forma justificada.
14. A propósito, anoto que esse posicionamento encontra guarida também na doutrina, especialmente nos ensinamentos de Marçal Justen Filho, em seu "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos", ed. Dialética, 10ª edição, fls. 559 a 569, bem como na jurisprudência do Tribunal de Contas do Distrito Federal, tais como nas decisões adotadas nos processos 7581/96 e 2447/99.
15. Ressalvo, todavia, os casos em que o contratado é escolhido, como regra sem licitação, em decorrência de suas características personalíssimas. Nessas circunstâncias, a alteração subjetiva é inviável por caracterizar fraude à licitação.
(...)
Acórdão
(...)
9.4. comunicar à Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Distrito Federal - SEAPA/DF que este Tribunal não encontra óbices a que a Construtora LJA Ltda. dê prosseguimento à execução do Contrato nº 001/2001-SAA/DF, celebrado em decorrência do Edital de Concorrência Pública nº 001/2000-CEL/SAA/DF, desde que:
9.4.1. no processo referente ao aditivo contratual reste efetivamente comprovado o atendimento, pela Construtora LJA Ltda., de todas as condições de habilitação e qualificação previstas no edital licitatório;
9.4.2. o eventual aditivo ao contrato seja celebrado nos exatos termos previstos no edital da citada Concorrência e da proposta apresentada pela antiga Construtora Gautama Ltda., vencedora do certame;
9.4.3. não existam outros óbices legais e/ou judiciais; e
9.4.4. permaneça o interesse da Administração em dar continuidade ao contrato em referência, resguardado o interesse público;
Ainda, com relação à obrigatoriedade de previsão contratual ou editalícia para a continuação do contrato, imposto pelo inciso VI, do art. 78, da Lei nº 8.666/93, cabe destacar parte do voto do Ministro Marcos Vinícios Vilaça, relator do Acórdão TCU n.º 2071/2006, que bem exemplifica o remansoso entendimento do Tribunal Administrativo, o qual flexibiliza as condicionantes do citado dispositivo legal:
[...] 5. Acerca da legalidade de fusão, incorporação ou cisão em contratos administrativos, frente ao disposto no art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93, o TCU entendeu, em consulta formulada pela Câmara dos Deputados, por meio do Acórdão 1.108/2003 do Plenário, que é possível a continuidade dos contratos, desde que sejam observados os seguintes requisitos: - tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato; - a nova empresa cumpra os requisitos de habilitação originalmente previstos na licitação; e - sejam mantidas as condições originais do contrato.
6. Vale dizer, acerca do primeiro requisito, que o Tribunal vem evoluindo para considerar que, restando caracterizado o interesse público, admite-se a continuidade do contrato, ainda que não prevista a hipótese de reorganização empresarial no edital e no contrato. Essa é a posição, aliás, da Unidade Técnica, do autor da representação e do órgão contratante do Distrito Federal. Ademais, está contida no recente Acórdão nº 113/2006 - Plenário.
7. Penso ser louvável a evolução jurisprudencial ocorrida no TCU sobre essa matéria. A dinâmica empresarial inerente a um mercado competitivo e globalizado, que impõe a necessidade de alterações na organização da sociedade para a sua própria sobrevivência, não pode ficar engessada por falta de previsão, nos contratos administrativos, sobre a possibilidade de alteração organizacional, por meio de cisão, fusão ou incorporação.
8. A proibição de alteração da organização da sociedade contratante com a Administração Pública poderia, ao contrário do desejado pela norma, levar ao seu enfraquecimento e, assim, oferecer riscos à plena execução contratual.
9. É sabido que, nos contratos administrativos, a Administração Pública participa com supremacia de poderes na relação jurídica, com suporte no objetivo de fazer prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. E para isso, a Administração dispõe de prerrogativas, entre elas a possibilidade de alterar ou rescindir unilateralmente os ajustes e de aplicar sanções legais.
10. Assim, a previsão contida no art. 78, inc. VI, no que tange à ocorrência de fusão, incorporação ou cisão, deve ser vista como uma prerrogativa, uma faculdade da Administração, e não como uma conseqüência direta e inexorável da reorganização empresarial, que não admite avaliação acerca do interesse público na adoção da medida extrema.
11. A rescisão há de ser aplicada quando a hipótese prevista no dispositivo mostrar-se inconveniente para o serviço público ou quando ferir os princípios básicos da Administração Pública.
Em casos de fusão, cisão, incorporação da empresa contratada, a manutenção do contrato deve ser a regra a nortear o agir do administrador público, tendo por finalidade adequar-se ao bem maior em jogo: o interesse público na execução e continuidade do objeto do contrato, desde que não haja prejuízo para sua execução provocado pela alteração subjetiva.
Conclui-se, portanto, ser possível a alteração subjetiva do contrato administrativo, decorrente de fusão, cisão ou incorporação da empresa contratada, desde que tal alteração não importe em prejuízo à execução do contrato e atenda ao interesse público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Subcontratação e cessão de contratos administrativos. http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=83967&id_site=1513. Acesso em: 21 out. 2013.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12ª Ed. São Paulo: Dialética, 2012.
CITADINI, Antônio Roque. Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas. 3ª Ed. São Paulo: Max Limonad, 1999.
[1] Szklarowsky, Leon Frejda. Subcontratação e cessão de contratos administrativos. Disponível em:< http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=83967&id_site=1513>. Acesso em: 21 out. 2013.
Procurador Federal. Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto à Universidade Federal do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Marcelo Morais. A alteração subjetiva do contrato administrativo, nos termos do art. 78, VI, da Lei 8.666/93 e da jurisprudência do Tribunal de Contas da União Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38158/a-alteracao-subjetiva-do-contrato-administrativo-nos-termos-do-art-78-vi-da-lei-8-666-93-e-da-jurisprudencia-do-tribunal-de-contas-da-uniao. Acesso em: 23 dez 2024.
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