Resumo: O presente artigo busca analisar a possibilidade de percepção do beneficio de pensão por morte, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, pela chamada “viúva-negra”, ou seja, pelo cônjuge ou companheiro supérstite que perpetrou homicídio contra o falecido. Para tanto, após diferenciar o regime geral do regime próprio, demonstra-se que, em que pese inexista menção expressa sobre o assunto na legislação referente ao RGPS, vigora na jurisprudência dos tribunais federais duas correntes contrapostas, uma pela possibilidade outra pela negativa. Ao final, há tomada de posição pela corrente contrária à concessão, à luz do princípio que nega a que se beneficie da própria torpeza, do recurso á analogia e ao diálogo as fontes normativas.
Abstract: This paper analyzes the possibility of perceiving the benefit of pension, under the General Regime of social security - RGPS, for the "black widow", who is the surviving consort that commit murder against the deceased one. To that end, after differentiating the general scheme of the system itself, it is shown that, although without express mention about it in the RGPS legislation, case law in force in the federal courts two opposing currents. At the end, there's stance contrary to the favorable tide, under the principle that denies that benefits from own turpitude, the use of analogy and dialogue normative sources.
Palavras-chave: Viúva-negra. Previdência Social. Pensão por morte. Indignidade.
Key-words: Black widow. Social Security. Pension. Indignity.
SUMÁRIO: Introdução – 1. Previdência Social: regime geral x regime próprio – 2. O benefício de pensão por morte no RGPS – 3. Legitimidade da percepção de pensão por morte pela “viúva-negra” no RGPS – 3.1 As duas correntes jurisprudenciais contrapostas - 3.2 – A solução aparentemente mais consentânea com o ordenamento vigente – 4. Conclusão.
INTRODUÇÃO.
Recentemente, foi noticiado na imprensa o caso de um indivíduo que estaria percebendo o benefício previdenciário de pensão por morte mesmo após ter confessadamente assassinado a própria esposa[1].
A Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS determinou a abertura de processo para suspensão da pensão que está sendo paga ao réu confesso que matou a mulher e requereu o benefício pela morte da esposa. O próprio então ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves Filho, pediu à Procuradoria que emitisse parecer sobre o assunto, logo que tomou conhecimento do caso pela imprensa[2].
O caso chamou atenção para a figura conhecida como viúva-negra. O termo em sua acepção figurada[3], designa o cônjuge ou companheiro supérstite que cometeu homicídio contra o de cujus. Para efeitos previdenciários, objeto do presente estudo, a expressão alberga tanto o sobrevivente varão com o virago.
Pois bem; vigora alguma polêmica acerca da possibilidade de enquadramento da viúva-negra como beneficiária do Regime Geral de Previdência Social, na qualidade de dependente do falecido. A controvérsia ocorre não apenas em razão da conspurcada imagem dessa figura perante a sociedade em geral, mas também – e principalmente – em razão do fato de essa circunstância encontrar expressa previsão no ordenamento pátrio, para além da genérica tipificação do Art. 121 do Código Penal.
Com efeito, o Art. 1.814 do Código Civil exclui da sucessão os herdeiros ou legatários que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra ou descendente. De modo semelhante, o Art. 220 da Lei 8.112/90, Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, prescreve que não faz jus à pensão o beneficiário condenado pela prática de crime doloso de que tenha resultado a morte do servidor.
Entretanto, para efeito do Regime Geral de Previdência Social, não há qualquer dispositivo legal a respeito, persistindo, portanto, a controvérsia objeto de discussão nestes breves apontamentos.
Busca-se, assim, analisar as duas correntes jurisprudenciais existentes a respeito do tema, inclinando-se para aquela aparentemente mais consentânea com o ordenamento vigente.
1. PREVIDENCIA SOCIAL: REGIME GERAL X REGIME PRÓPRIO.
Incialmente, cumpre fazer uma breve distinção entre os dois regimes previdenciários vigorantes no ordenamento pátrio: o Regime Geral de Previdência Social – RGPS e o Regime Próprio de Previdência Social - RPPS.
O primeiro deles (RGPS) é o regime básico de previdência social, sendo de aplicação compulsória a todos aqueles que exerçam algum tipo de atividade remunerada, exceto se essa atividade já gera filiação a determinado regime próprio de previdência[4].
O regime geral encontra previsão no Art. 201 da Constituição da República, verbis:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º
Na atual legislação, cumpre à Lei 8.213, de 24 de julho de 1991 dispor sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, sendo o diploma regulamentado pelo Decreto 3.048, de 06 de maio de 1999. Já o sistema de custeio, encontra previsão na Lei 8.212, de 24 de julho de 1991. O RGPS é administrado por uma autarquia federal, o INSS, dotada de personalidade jurídica de direito público, a quem compete conceder os benefícios previdenciários no citado regime.
Já o segundo regime referido (RPPS) é relativo aos servidores efetivos (incluindo os vitalícios) da União, dos Estados e de alguns Municípios que o possuem (nos municípios em que não há regime próprio, a filiação é ao RGPS). Alguns agentes públicos podem ser contratados pelo regime de emprego público (vinculados à Consolidação das Leis do Trabalho), ou para cargo de provimento em comissão sem vinculo efetivo, o que os vincula, necessariamente ao RGPS. Os demais, com vínculo estatutário efetivo com a Administração Pública, filiam-se ao RPPS.
O Regime Próprio de Previdência Social encontra previsão constitucional no Art. 40 da Carta, verbis:
Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
Incumbe a cada ente federativo gerira a Previdência do seu quadro efetivo de servidores. No âmbito federal, o sistema de previdência é regulado pela Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
2. O BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE NO RGPS.
A pensão por morte é um beneficio direcionado aos dependentes do segurado, visando à manutenção da família, no caso de morte do responsável pelo seu sustento[5]. No âmbito do RGPS, prevê o Art. 74 da Lei 8.213/91, verbis:
Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data: (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
I - do óbito, quando requerida até trinta dias depois deste; (Incluído pela Lei nº 9.528, de 1997)
II - do requerimento, quando requerida após o prazo previsto no inciso anterior; (Incluído pela Lei nº 9.528, de 1997)
III - da decisão judicial, no caso de morte presumida.
Por sua vez, o rol de dependentes do segurado falecido é previsto no Art. 16 do referido diploma legislativo, que inclui expressamente o cônjuge ou companheiro:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011).
Dessa forma, pode-se concluir que, em princípio, o cônjuge ou companheiro do segurado falecido faz jus à pensão por morte, independente de carência[6]. Ademais, como se pode observar, não há no âmbito do RGPS qualquer restrição relativa à figura da viúva negra, qual seja aquele ou aquela que comete homicídio contra o consorte. Resta, portanto, à doutrina e jurisprudência a atribuição de discernir sobre a legitimidade ou não da percepção do beneficio nesses casos.
3. LEGITIMIDADE DA PERCEPÇÃO DE PENSAO POR MORTE PELA VIÚVA NEGRA NO RGPS.
4.1 - As duas correntes jurisprudenciais contrapostas.
Sobre o tema, pode-se distinguir no âmbito jurisprudencial a formação de duas correntes: uma pela possibilidade e outra pela impossibilidade de concessão do benefício.
Com efeito, para uma primeira vertente, entende-se que, em se tratando de homicídio doloso, há fundamento no ordenamento jurídico para impedir a concessão do beneficio, pois ninguém se poderá se locupletar da própria torpeza, expressão consagrada como principio geral do direito[7]. A concessão iria de encontro à boa-fé, igualmente exigível no Direito Administrativo[8].
O principal recurso utilizado por essa vertente consiste na analogia, autorizada pelo Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil ao rezar que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Seria o caso de se aplicar, portanto, analogicamente, o dispositivo civil que exclui da sucessão os herdeiros que houverem consumado ou tentado homicídio contra o instituidor, desde que a indignidade seja declarada por sentença:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Art. 1.815. A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença.
Nesse sentido, embora ainda não haja registro de julgado emanado das cortes superiores, colhe-se o seguinte precedente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. BENEFICIÁRIA HOMICIDA. CANCELAMENTO DO BENEFÍCIO. REVERSÃO DA COTA-PARTE. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. TERMO A QUO DA CONDENAÇÃO. 1. Inexistindo na legislação previdenciária norma acerca da exclusão de beneficiário que cometeu homicídio contra o próprio instituidor da pensão por morte, há que ser aplicada, por analogia, a regra do direito civil, que elimina da sucessão o herdeiro homicida. 2. Hipótese em que ficou comprovado que a Srª Marinalva Barros de Souza assassinou o próprio marido, já tendo sido condenada por homicídio doloso através de sentença transitada em julgado, de modo que deve ser cancelado o seu benefício e revertida a sua cota-parte em favor da autora, Srª Marivalda de Brito Silva, a outra beneficiária do de cujus. 3. Considerando que o INSS não tinha como saber do ocorrido, deve ser fixado como termo a quo da condenação do Instituto (ao pagamento das diferenças) a data da citação. Idêntico raciocínio, todavia, não pode ser estendido à litisconsorte homicida, porquanto (a) não houve recurso de apelação por parte desta e (b) porque ciente da condenação que lhe foi impingida. No seu caso, pois, mantido o cancelamento desde o trânsito em julgado da sentença criminal. 4. Apelação provida e remessa oficial parcialmente provida[9].
Já para uma segunda corrente, as duas relações – civil e estatutária – não se confundem, razão porque, em sendo omissa a lei previdenciária quanto ao ponto, não haveria que se negar o direito ao beneficio. Nesse sentido, já se pronunciou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, como se observa do ementário abaixo colacionado:
DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. SEGURADO FALECIDO EM RAZÃO DE ASSASSINATO. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA PRETENDIDA PELA GENITORA, COM EXCLUSÃO DA COMPANHEIRA DO DE CUJUS. NOMEAÇÃO DE PROCURADOR DA REPÚBLICA COMO DEFENSOR DE REVEL, CITADO POR EDITAL, DESCABIMENTO. CASO DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO E NÃO DENUNCIAÇÃO À LIDE.
1. Não perde o direito à pensão companheira de segurado falecido, que, vítima de homicídio, a designou, em vida, como sua dependente perante a Previdência Social, sem que haja comprovação, sequer por indícios, de participação dela no assassinato.
2. Privar a concubina dos benefícios do direito previdenciário por analogia com ato de indignidade, motivador de exclusão da sucessão hereditária (Código Civil, art. 1595), não encontra simetria, no plano da juridicidade, com o herdeiro considerado indigno por sentença declaratória, transitada em julgado (Código Civil, art. 1.596).
3. Entre as funções institucionais do Ministério Público, não cabe a defesa de réu revel, não incapaz, citado por edital. Deve compor a relação processual como litisconsorte passivo necessário e não denunciado à lide a pessoa contra quem se litiga, em cumulação subjetiva com o INSS, a respeito da legalidade de benefício previdenciário concedido ao litisconsorte[10].
Do inteiro teor do julgado, registra o Exmo. Sr. Juiz Amílcar Machado que o juiz de primeira instância, ao negar direito ao beneficio, “tentou estabelecer um raciocínio analógico sem a menor pertinência. O que ele fez foi, realmente, uma mixagem de duas relações completamente diferenciadas, uma que é a relação sucessória e a relação previdenciária.[11]”.
Assim, embora no caso específico houvesse ainda outras questões decisivas para a reforma da sentença, fato é que se pode extrair um posicionamento do tribunal sobre o tema aqui tratado, orientando-se pela possibilidade de concessão do beneficio mesmo no caso da “viúva-negra”.
4.2 – A solução aparentemente mais consentânea com o ordenamento vigente.
Com todas as vênias devidas ao entendimento contrário, parece lídimo inferir-se que o princípio geral do direito que veda que alguém se beneficie da própria torpeza ("nemo turpitudinem suam allegare potest”) afasta a validade de pensão por morte concedida na circunstância aqui analisada.
A percepção de pensão por morte de um sujeito condenado por homicídio contra o seu consorte parece ir de encontro a um mínimo ético[12], resultando um tanto quanto aberrante que uma conduta tutelada pelo Direito Penal – ramo adstrito à repressão das condutas profundamente lesivas à vida social[13] - dê origem a um benefício previdenciário. Seria algo como, ao mesmo tempo coibir e fomentar um crime dos mais abjetos.
A proibição de usufruir da própria torpeza é das mais comezinhas no direito, conforme ensina Plácido e Silva, ao concluir que a torpeza é juridicamente repelida:
"Torpeza - De torpe, do latim turpis (infame, vil, ignóbil), indica a qualidade, ou o estado de tudo o que é torpe, ou contra a moral. A torpeza resulta de qualquer ato vergonhoso, imoral, ou desonesto, de todo ato que possa ofender o decoro e os bons costumes, de toda ação de maldade e de infâmia. Pode formular-se por atos, por fatos, ou por palavras, onde se desfilem a ignomínia, a vergonha, a desonestidade. Os atos ou fatos torpes não podem servir de objeto a relações jurídicas. As coisas torpes não merecem apoio legal. E nulos são os atos jurídicos fundados na torpeza. E se a torpeza é juridicamente repelida, a ninguém, igualmente, é lícito alegar a própria torpeza, no intuito de tirar qualquer proveito: "Nemo auditur turpitudinem suam allegans", é a glosa extraída do Cód. de JUSTINIANO[14].
De modo semelhante, Anderson Schreiber acrescenta que a repugnância à incoerência é um sentimento tão inato ao ser humano quanto à própria incoerência. Afirma, ainda, o Autor que comportamento incoerente, entendido como aquele que se põe em desarmonia, em desconexão, e, especialmente, em contradição com um comportamento anterior, é condenado em inúmeros registros da cultura universal[15].
A proibição do comportamento contraditório é repelida pelo Direito, como corolário do principio da boa-fé objetiva e sua incidência nas mais variadas relações jurídicas[16].
Por outro lado, ao que parece, a omissão do RGPS quanto a esta questão, a par de não intencional, pode ser superada pelo recurso a analogia, técnica de integração reconhecidamente válida pela LICC, como visto acima. Salvo melhor juízo, a analogia com o já citado Art. 1.814, I do CPC, que trata da indignidade, não resulta em uma mixagem de leis impertinente, mas em uma solução apta a conferir coerência, harmonia e segurança jurídica ao ordenamento jurídico. Se bem analisado os dois direitos em cotejo – herança e pensão por morte – pode-se concluir que encontram a mesma razão de ser, qual seja uma garantia patrimonial ao indivíduo que detém um especial vínculo, consanguíneo ou afetivo, com outro que veio a óbito.
E não é só. Cumpre ainda observar que no âmbito do Regime Próprio de Previdência Social dos servidores federais existe expressa vedação à percepção do benefício pelo cônjuge/companheiro sobrevivente, senão vejamos o que dispõe o Art. 220 da Lei 8.112/90, verbis:
Art. 220. Não faz jus à pensão o beneficiário condenado pela prática de crime doloso de que tenha resultado a morte do servidor.
Como se observa, o caso proscrito pelo estatuto se enquadra perfeitamente à figura da viúva-negra ora em exame. Assim, embora os dois regimes básicos de previdência não se confundam, como demonstrado acima, na medida em que cada qual é regido por lei própria, nada obsta – ao contrario, se recomenda – que se recorra à analogia, ou mesmo à técnica do diálogo das fontes.
A teoria do diálogo das fontes surge no fito de reforçar a ideia de que o Direito deve ser interpretado como um todo, de forma sistemática e coordenada. Segundo essa teoria, nos casos de antinomias, as normas não obrigatoriamente se excluem; ao contrário, se coordenam. Sobre o tema, leciona com grande originalidade a jurista Claudia Lima Marques, a partir dos ensinamentos do criador da teoria, o professor da Universidade de Helderberg Erik Jayme:
“É o chamado ‘diálogo das fontes’ (di + a = dois ou mais; logos = lógica ou modo de pensar), expressão criada por Erik Jayme, em seu curso de Haia (Jayme, Recueil des Cours, 251, p. 259), significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro-saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais.
Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que, em face do atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo (Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, II, p. 60 e 251 e ss.).
O uso da expressão do mestre, ‘diálogo das fontes’, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não coerência’.
‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)”[17].
É relevante ponderar que embora a técnica tenha sido alvitrada pelos juristas na solução de antinomias do direito privado, a priori não há empecilho à sua aplicabilidade no direito público, mormente considerando-se que na moderna concepção do Direito essa distinção não tem maior representatividade[18].
Dessarte, deve-se considerar que o RPPS é uma norma especial em relação ao RGPS, caracterizando-se a omissão legislativa, portanto, como uma (aparente) antinomia corrigível pelo diálogo das fontes. Ademais, além de aparentemente casual a omissão, pode-se constatar que a solução expressamente prevista no Estatuto dos Servidores Federais encontra o mesmo lastro jurídico aplicável ao caso do RGPS, qual seja a proibição do beneficio pela própria torpeza. Observa-se, ainda, que o Art. 220 da Lei 8.112 não versa sobre uma condição especifica e inerente ao agente público segurado do RPPS, e que a própria Constituição institui, em seu Art. 40, §12°, um sistema previdenciário de influências recíprocas ao prescrever que “o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social”. Ao que parece, portanto, o recurso ao dialogo das fontes no caso é por demais salutar.
Sem embargo dessas observações, parece sensato defender que, ainda se adotando essa corrente, o pretenso beneficiário só poderá ser excluído da pensão por morte caso tenha sido condenado por sentença penal com transito em julgado, por força do que dispõe o Art. 5º, LVII da Constituição da República.
4. CONCLUSÃO.
Do exposto, pode-se concluir que a questão da legitimidade da percepção de beneficio de pensão por morte no RGPS pelo cônjuge ou companheiro condenado por homicídio contra o instituidor – vulgarmente denominado viúva-negra - ainda é matéria objeto de certa controvérsia, embora não seja lide rara de vir a ressurgir nas cortes pátrias.
Sem embargo da existência de corrente contrária, interpretando-se a omissão legislativa favoravelmente ao pretenso beneficiário, parece mais consentâneo com o principio que veda que se beneficie da própria torpeza o indeferimento do pensionamento, sobretudo considerando a possibilidade do recurso à analogia (Art. 1.814, I do Código Civil) e à técnica do diálogo das fontes (Art. 220 da Lei 8.112/90).
Felizmente, há notícia de projeto de lei (PL 4.053/2012) de autoria do Deputado Federal Manato (PDT/ES) que acrescenta o § 5º ao Art. 16 da Lei Federal nº 8.213/91 (Lei Previdenciária), excluindo como dependente da pensão por morte quem comete crime de homicídio doloso contra o segurado[19].
Até que se concretize a alteração, resta aguardar o posicionamento das cortes superiores.
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Cláusulas Abusivas no Código do Consumidor, in Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul/Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor. Seção do Rio Grande do Sul; coord. De Cláudia Lima Marques. Porto Alegre: livraria do Advogado, 1994.
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GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública (O Conteúdo Dogmático da Moralidade Administrativa). São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
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SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico, vol.IV. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
[1] Por todas, conferir reportagem veiculada em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/03/1244669-professor-tentou-simular-suicidio-da-mulher-antes-de-confessar-crime.shtml. Acesso em 31.01.2014.
[2] Informação extraída do Blog da Previdência Social. Disponível em http://blog.previdencia.gov.br/?p=6563. Acesso em 31.01.2014
[3] Na acepção original, segundo o Dicionário on line de Português: “1. Espécie de aranha teridiídea (Latrodectus mactans), distribuída por toda a América, de coloração negra, com larga mancha vermelha no abdome, e cerca de 1cm de comprimento. O nome provém do fato de a fêmea geralmente comer o macho após a cópula. Sua picada é muitas vezes fatal, e é considerada a mais peçonhenta das aranhas. No Brasil, é encontrada atualmente, próximo ao mar, sobretudo em praias pouco frequentadas em torno da baía de Guanabara. [Sin.: flamenguinha. Pl.: viúvas-negras.]”. Disponível em http://dicionario.co/vi%C3%BAva-negra. Acesso em 04.02.2014
[4] IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. Niterói, Impetus, 2007, p.140
[5] IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário, p. 562
[6] Conforme Art. 26, I da Lei de Benefícios: “Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes prestações “I - pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente; (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 26.11.99)”
[7] AMADO, Frederico. Direito e Processo Previdenciário Sistematizado. Salvador: Jus Podvm, 2012, p. 594.
[8] Conforme leciona Giacomuzzi, a boa-fé é valorada, também no direito administrativo, ora como padrão de conduta, a exigir dos sujeitos do vínculos jurídico atuação conforme à lealdade e à honestidade (boa-fé objetiva), ora como uma crença, errônea e escusável, de uma determinada situação (boa-fé subjetiva).GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública (O Conteúdo Dogmático da Moralidade Administrativa). São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
[9] TRF5 - AC 200683000124736. Relator: Desembargadora Federal Joana Carolina Lins Pereira, Segunda Turma, , DJ - Data::16/04/2008 - Página::1055 - Nº::73
[10] TRF1 - AC 15409 MG 94.01.15409-0. Relator(a):JUIZ ALOÍSIO PALMEIRA, PRIMEIRA TURMA, Julgamento:22/05/1996. Publicação:09/12/1996 DJ p.94735.
[11] Inteiro teor do julgado disponível em http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=133527019944010000. Acesso em 31.01.2014.
[12] Não é pretensão do expositor adentrar na questão filosófica acerca da ética.
[13] MIRABETE, Julio Fabrine. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2003, p. 22
[14] SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico, vol.IV. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.1.571
[15] SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 09.
[16] Ruy Rosado de Aguiar define a boa-fé como um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Cláusulas Abusivas no Código do Consumidor, in Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul/Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor. Seção do Rio Grande do Sul; coord. De Cláudia Lima Marques. Porto Alegre: livraria do Advogado, 1994, pp. 13-32.
[17] MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antônio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90.
[18] Nesse sentido, afirma Luís Roberto Barroso, a progressiva superação do liberalismo puro pelo intervencionismo estatal trouxe à lume diversos princípios de ordem pública. A proliferação de normas cogentes assinala a denominada publicização do direito privado, processo esse que se aprofunda com a constitucionalização do direito civil na virada do século e a despatrimonialização no curso deste processo. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 58/59.
[19] Cabe o registro de que o Projeto de Lei encontra-se em regular tramitação, já contando atualmente com aprovação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), conforme se observa do sitio eletrônico da Câmara dos Deputados. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=547882. Acesso em 31.01.2014
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da Uniao. Pos-graduado em Direito Publico pela Anhanguera/UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, Samuel Mota de Aquino. A percepção de pensão por morte pela 'viúva-negra' no âmbito do regime geral de Previdência Social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2014, 09:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38258/a-percepcao-de-pensao-por-morte-pela-viuva-negra-no-ambito-do-regime-geral-de-previdencia-social. Acesso em: 24 nov 2024.
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