Inicialmente, a Lei nº 10.180/2001 atribuiu ao Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal, o qual faz parte a Controladoria-Geral da União - CGU, as seguintes finalidades e competências[1]:
Art. 20. O Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal tem as seguintes finalidades:
I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e nas entidades da Administração Pública Federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;
III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;
IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
(...)
Art. 24. Compete aos órgãos e às unidades do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal:
I - avaliar o cumprimento das metas estabelecidas no plano plurianual;
II - fiscalizar e avaliar a execução dos programas de governo, inclusive ações descentralizadas realizadas à conta de recursos oriundos dos Orçamentos da União, quanto ao nível de execução das metas e objetivos estabelecidos e à qualidade do gerenciamento;
III - avaliar a execução dos orçamentos da União;
IV - exercer o controle das operações de crédito, avais, garantias, direitos e haveres da União;
V - fornecer informações sobre a situação físico-financeira dos projetos e das atividades constantes dos orçamentos da União;
VI - realizar auditoria sobre a gestão dos recursos públicos federais sob a responsabilidade de órgãos e entidades públicos e privados;
(...)
Nesta esteira, o Manual do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal (IN nº 01, de 06 de abril de 2001) dispõe que “a auditoria é o conjunto de técnicas que visa avaliar a gestão pública, pelos processos e resultados gerenciais, e a aplicação de recursos públicos por entidades de direito público e privado, mediante a confrontação entre uma situação encontrada com um determinado critério técnico, operacional ou legal”. Conclui afirmando que “trata-se de uma importante técnica de controle do Estado na busca da melhor alocação de seus recursos, não só atuando para corrigir os desperdícios, a improbidade, a negligência e a omissão e, principalmente, antecipando-se a essas ocorrências, buscando garantir os resultados pretendidos, além de destacar os impactos e benefícios sociais advindos”.
Desse modo, a Controladoria- Geral da União, no cumprimento de suas atribuições, através de relatório de Auditoria de Acompanhamento de Gestão, entendendo pela existência de sobrepreço e superfaturamento na planilha da empresa contratada, pode e deve recomendar ao ente público contratante a adoção de diligências para fins de recomposição dos valores pagos indevidamente.
Ressalte-se que os responsáveis pelo Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência de imediato ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
Assim sendo, a par da recomendação exarada pela CGU, deve o corpo técnico do ente administrativo avaliá-la e, no exercício do seu poder discricionário e autonomia, providenciar seu cumprimento, caso entenda como correto o entendimento do citado Órgão de Controle.
Constatada a ilegalidade do pagamento efetuado à contratada, a Administração Pública deve ser integralmente ressarcida dos valores cobrados indevidamente.
Neste sentido, o ente público contratante, no desempenho da função de gestão e fiscalização, e ainda com base no denominado princípio da autotutela administrativa, que é o poder-dever de a própria Administração exercer o controle de seus atos, pode glosar os valores indevidamente pagos com recursos públicos em fatura futura, de forma integral, face à indisponibilidade e supremacia do interesse público.
Sobre o instituto da glosa, cabe trazer à colação as lições do Tribunal de Contas da União enunciadas no Acórdão nº 3.114/2010 – Segunda Câmara, in verbis:
O termo glosar, segundo o Dicionário Aurélio, é equivalente a censurar, criticar, suprimir ou anular, dentre outras acepções. Trata-se de juízo de reprovabilidade que alguém tem em relação a algo. No serviço público o instituto da glosa é mais freqüentemente associado ao exercício da função controle, ou seja, é dever de quem tem prerrogativas de fiscalizar ou auditar censurar as ações incompatíveis ou irregulares. Nem sempre a glosa possui repercussão financeira.
Quando a glosa tem efeito financeiro, dois podem ser os reflexos: a um, perda em definitivo de uma dada importância; a dois, retenção ou suspensão na transferência de valores até que a pessoa ou a entidade afetada pela glosa restitua uma importância ou faça algo.
No caso do SUS, se a glosa decorre de um recebimento indevido, como no caso de pagamento de procedimentos não realizados, a medida tem por fim restituir os cofres públicos, logo a glosa deve ser processada como uma perda em definitivo.
Por outro lado, se a glosa resulta de um pagamento irregular ou ilegítimo, gasto realizado com recursos da União, como neste caso concreto, a glosa pode ter um caráter definitivo se for empregada como meio de compensação, ou de retenção/suspensão se a entidade afetada comprovar que depositou no fundo municipal importância equivalente ao montante da glosa, pois assim estaria restituindo o valor ilegitimamente gasto.
O intuito de glosar valores em fatura futura tem inegável efeito financeiro e colima restituir aos cofres públicos valores indevidamente pagos, caracterizando-se, assim, como perda definitiva para a contratada. Representa, ainda, meio célere do qual dispõe a Administração para fazer ajustes contábeis e de atender ao interesse público, ao tempo que garante a devolução das quantias indevidamente despendidas do erário.
A aplicação da glosa não comporta maiores discussões, tanto que a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, no art. 80, inciso IV, e a jurisprudência do TCU admitem a possibilidade de retenção de créditos decorrentes do contrato para que sejam compensados com os débitos existentes perante a Administração.
O princípio da autotutela já mencionado possui previsão no art. 53, da Lei 9.874/1999, e nos enunciados de súmula do STF nº 346 e 476, conforme abaixo:
Lei nº 9.784/1999:
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
Súmula do STF
Nº 346: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Nº 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
A aplicação do princípio deve observar aos postulados do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, em atenção à ordem constitucional vigente do art. 5º, incisos LIV e LV. Neste sentido é a jurisprudência do Pretório Excelso e do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DO PODER DE AUTOTUTELA ESTATAL. REVISÃO DE CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO E DE QUINQUÊNIOS DE SERVIDORA PÚBLICA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já decorreram efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo. 2. Ordem de revisão de contagem de tempo de serviço, de cancelamento de quinquênios e de devolução de valores tidos por indevidamente recebidos apenas pode ser imposta ao servidor depois de submetida a questão ao devido processo administrativo, em que se mostra de obrigatória observância o respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa. 3. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(STF - RE: 594296 MG , Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 21/09/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO)
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. ART. 543-B, § 3º, DO CPC. RE n. 594.296/MG. REPERCUSSÃO GERAL. AUTOTUTELA. SÚMULA 473/STF. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO ILEGAL, COM PREJUÍZO A DIREITO DE PARTICULAR. PROCESSO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. CONCURSO PARA O PREENCHIMENTO DE CARGOS DE DENTISTA DO DISTRITO FEDERAL, OCORRIDO EM 2006. ANULAÇÃO DAS PROVAS. IMPEDIMENTO DE MEMBRO DA BANCA EXAMINADORA. ATO REALIZADO DURANTE CONTROLE DE LEGALIDADE DO CERTAME, AINDA NÃO HOMOLOGADO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA A DIREITO DOS CANDIDATOS. INAPLICABILIDADE DO PRECEDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - O Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 594.296/MG, consoante o disposto nos arts. 543-B, do Código de Processo Civil, consolidou o entendimento segundo o qual a anulação, pela Administração Pública, no exercício da autotutela, de ato administrativo reputado ilegal que, contudo, já tenha produzido efeitos concretos perante terceiros, deve ser precedida de prévio processo administrativo, no qual seja garantido, aos interessados, o pleno exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa. II - Adequação da inteligência da Súmula 473, daquela Corte, ao sistema de garantias processuais, introduzido por meio da Constituição de 1988. (...) - Agravo regimental desprovido.
(STJ - AgRg no RMS: 24122 DF 2007/0084811-6, Relator: Ministra REGINA HELENA COSTA, Data de Julgamento: 10/12/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/12/2013)
Veja-se, também, precedentes das Cortes Regionais Federais reconhecendo o direito constitucional da ampla defesa e do contraditório no caso de glosas:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. GLOSAS DE VALORES DEVIDOS A EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO DE TRANSPORTE PARA O MINISTÉRIO DA SAÚDE. PROCESSO ADMINISTRATIVO. CONTRADITÓRIO. AMPLA DEFESA. 1. Estando configurado o fumus boni iuris da pretensão da Agravante na existência de glosas referentes a pagamentos de notas fiscais atestadas e pagas, defere-se liminar para determinar a suspensão da retenção de valores a esse título, até o julgamento final de lide principal, ainda mais quando há, também, alegação de não observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório no processo administrativo no qual se apurou os motivos ensejadores da glosas. 2. Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas. A Lei 9.784/99 assegura aos administrados o direito de ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenham a condição de interessados, ter vista dos autos, formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente. 3. Agravo de instrumento a que se dá provimento.
(TRF-1 - AG: 21849 DF 2008.01.00.021849-4, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, Data de Julgamento: 01/12/2008, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 12/01/2009 e-DJF1 p.71)
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL EM VARA FEDERAL - EMBARGOS DO DEVEDOR - GLOSA DOS VALORES DECLARADOS COMO RETIDOS NA FONTE - AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO CONTRIBUINTE SOBRE ESSA GLOSA - CERCEAMENTO DE DEFESA ADMINISTRATIVO - NULIDADE DO LANÇAMENTO. 1. Se a FN alega que só cobra o que lançado na Declaração de Ajuste Anual do embargante, mas não se atenta que, na referida declaração, o embargante declara não haver nenhum "saldo a pagar", pois o valor devido de IRPF fora retido na fonte, como declarado no item 19 de sua DIRPF, não há como aplicar a SÚMULA n.º 436/STJ, pois a FN não cobra o que fora declarado. 2. Configura nulidade do lançamento tributário a constituição de crédito em razão de glosa de valores declarados pelo contribuinte, sem que, contudo, se tenha oportunizada a ampla defesa e o contraditório. 3.Apelação não provida. 4.Peças liberadas pelo Relator, Brasília, 2 de dezembro de 2013., para publicação do acórdão.
(TRF-1 - AC: 364600419994013800 MG 0036460-04.1999.4.01.3800, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO AMARAL, Data de Julgamento: 02/12/2013, SÉTIMA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.421 de 13/12/2013)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PREFEITO MUNICIPAL. GLOSA DE VALORES. AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO. CERCEAMENTO DE DEFESA QUE SE RECONHECE. NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA. 1. Decisão que intimou o autor para pagamento de quantia glosada, sem que fosse dada ao mesmo a oportunidade para se defender no processo administrativo. 2. A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo, é taxativa quanto ao direito do administrado de formular alegações e apresentar documentos antes da decisão - Artigo 3º, III. 3. No caso dos autos tal dispositivo não restou observado porque, após a inspeção, já se procedeu à glosa do valor que deveria ser pago pelo autor, sem que lhe fosse dada a oportunidade para refutar as irregularidades apontadas e apresentar a defesa que julgasse pertinente, sendo forçoso reconhecer o cerceamento de seu direito de defesa. 4. Apelação e remessa oficial às quais se nega provimento.
(TRF-3 - APELREEX: 203 MS 0000203-66.2006.4.03.6002, Relator: JUIZ CONVOCADO RUBENS CALIXTO, Data de Julgamento: 18/07/2013, TERCEIRA TURMA)
Diante do exposto, inexiste óbice quanto à glosa de valores no contrato reputados pela Controladoria Geral da União como de pagamento ilegal. Não obstante, faz-se necessária a prévia notificação da contratada, de forma a lhe garantir o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa.
[1] O Decreto nº 3.591/2001 detalha as competências de cada órgão integrante do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal.
Procurador Federal. Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto à Universidade Federal do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Marcelo Morais. Pagamento indevido no contrato administrativo: recomendação da CGU pela reposição ao erário e possibilidade de glosa, desde que observado o devido processo legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 fev 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38356/pagamento-indevido-no-contrato-administrativo-recomendacao-da-cgu-pela-reposicao-ao-erario-e-possibilidade-de-glosa-desde-que-observado-o-devido-processo-legal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
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Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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