RESUMO: O descumprimento das decisões judiciais no Brasil tem despertado preocupação por parte dos operadores do direito porque contribui significativamente para a fragilização do Estado Democrático de Direito uma vez que permite a insegurança jurídica e torna o Poder Judiciário vulnerável quanto ao cumprimento de sua função precípua. A limitação das astreintes em razão da vedação do enriquecimento sem causa e a necessidade de adequação ao princípio da razoabilidade na ordem jurídica brasileira não tem se revelado suficiente a suprir a carência de mecanismos que visem à plena efetividade das decisões do Poder Judiciário, o que vem instigando a academia bem como os profissionais do direito em todo País, especialmente, juízes e advogados, ao intenso debate sobre a matéria.
Palavras-chave: Astreintes, Segurança Jurídica, Efetividade, Decisões Judiciais, Interesse Público, Pedagógico, Estado de Direito.
ABSTRACT: The failure of judgments in Brazil has aroused concern among jurists because it contributes significantly to the weakening of the democratic state as it allows the legal uncertainty and makes the judiciary vulnerable as to whether their primary function. Limiting astreintes due to the sealing of unjust enrichment and the need to adapt the principle of reasonableness in the Brazilian legal system has not proved sufficient to supply the lack of mechanisms aimed at the full realization of the decisions of the judiciary, which has been urging academia and legal practitioners throughout the country, especially judges and lawyers.
Keywords: Astreintes, Legal Safety, Effectiveness, Judgements, Public Interest, Educational, rule of law.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A natureza das astreintes. 3. Contempt of Court e a Satisfatividade das Decisões Judiciais. 4. O critério de aplicação das astreintes pelos tribunais brasileiros. 5. O caráter pedagógico das “astreintes” como critério de sua aplicação integral. 6. Caráter Pedagógico e Interesse Público. 7. Conclusão.
1. Introdução:
O descumprimento de ordens judiciais além de descredibilizar o Poder Judiciário, fomenta o sentimento de impunidade nos diversos setores da sociedade, revelando uma verdadeira afronta ao Estado de Direito que deve ser norteado essencialmente pela estabilidade nas relações jurídicas a fim de que as instituições democráticas sejam plenamente eficazes em sua estrutura e decisões.
“Ordem e Progresso” como lema de formação da República Federativa do Brasil, traduzindo o que o positivista francês quis dizer com a célebre frase: “L'amour pour principe et l'ordre pour base; le progrès pour but.” (Amor por princípio e a Ordem por base: o Progresso por fim) está estampado na bandeira brasileira como postulado que determina a razão de ser das instituições representativas dos Poderes por meio da atuação de seus agentes.
O progresso de um País com estruturas democráticas está condicionado, elementarmente, à manutenção de sua ordem jurídica que se dará pelo fiel cumprimento, pelos Poderes Constitucionais, de suas funções precípuas sem que sejam usurpados pela corrupção ou mesmo pela politicagem, esta última podendo ser compreendida como a concepção corrompida de política.
As decisões judiciais como atos essenciais do Poder Judiciário, pois expressam o sentido e o alcance das normas do País, quando desacatadas, induz-se ao caos que pode ganhar proporções destrutivas se não for combatido rigorosamente através da utilização de mecanismos de defesa das estruturas democráticas que estão previstos na própria Ordem Jurídica. Tanto é assim, que a Constituição da República de 1988 trás em seu arcabouço de regras e princípios o instituto da intervenção que pode ser colocado em prática na hipótese de inexecução da lei federal, ordem ou decisão judicial, nos termos do art. 34, inciso VI e art. 35, inciso IV.
Não obstante à preocupação constitucional, outros mecanismos estão previstos em norma ordinária como a criminalização da desobediência prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro e a imputação de multa processual, sem prejuízo de outras sanções, pela prática de ato atentatório ao exercício da jurisdição conforme dispõe o parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil.
Atualmente, no Brasil, as sanções pecuniárias, especialmente as astreintes, previstas no art. 273, § 4º, art. 287 c/c art. 461, §§ 4º, 5º e 6º todos do CPC além do artigo 84, § 4º, da Lei nº 8.078/90 do Código de Defesa do Consumidor e artigo 52, V, da Lei nº 9.099/95 que dispõe sobre os Juizados Especiais, têm sido o instrumento mais utilizado para inibir a prática da desobediência de ordens judiciais. Todavia, a busca da efetividade tem encontrado limite na impossibilidade de enriquecimento ilícito, o que tem sugerido aos tribunais brasileiros aplicarem-nas de forma tímida e quantitativamente limitada, fato que como já era de se esperar, tem despertado certo “destemor” ou “sensação de impunidade”, principalmente, naqueles litigantes detentores de forte poder econômico.
A indagação que aflige a maior parte dos processualistas brasileiros é se a limitação das astreintes é a solução mais acertada em relação a sua aplicabilidade com vistas à necessidade de se garantir a eficácia das decisões judicias no Brasil.
2. A natureza das astreintes:
A razão de ser das astreintes apesar de bastante debatida na doutrina ainda é objeto de indagações, as quais levaram recentemente a jurisprudência brasileira a se posicionar pela sua natureza híbrida, ou seja, ao mesmo tempo em que é multa coercitiva estipulada para conceder força e efetividade às decisões judiciais, também possui natureza satisfativa quando permite a destinação do produto em favor da parte a qual o direito ali perseguido lhe é benéfico, o qual pode ser objeto de execução, ainda que provisória.
“PROCESSUAL CIVIL. OBRIGAÇÃO DE ENTREGAR COISA CERTA. MEDICAMENTOS. ASTREINTES. FAZENDA PÚBLICA. MULTA DIÁRIA COMINATÓRIA. CABIMENTO. NATUREZA. PROVEITO EM FAVOR DO CREDOR. VALOR DA MULTA PODE ULTRAPASSAR O VALOR DA PRESTAÇÃO. NÃO PODE INVIABILIZAR A PRESTAÇÃO PRINCIPAL. NÃO HÁ LIMITAÇÃO DE PERCENTUAL FIXADO PELO LEGISLADOR. 1. A obrigação de fazer permite ao juízo da execução, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa cominatória ao devedor, ainda que seja a Fazenda Pública, consoante entendimento consolidado neste Tribunal. Precedentes: AgRg no REsp 796255/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeiro Turma, 13.11.2006; REsp 831784/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, 07.11.2006; AgRg no REsp 853990/RS, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, DJ 16.10.2006; REsp 851760 / RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, 11.09.2006. 2. A multa processual prevista no caput do artigo 14 do CPC difere da multa cominatória prevista no Art. 461, § 4º e 5º, vez que a primeira tem natureza punitiva, enquanto a segunda tem natureza coercitiva a fim de compelir o devedor a realizar a prestação determinada pela ordem judicial. 3. Os valores da multa cominatória não revertem para a Fazenda Pública, mas para o credor, que faz jus independente do recebimento das perdas e danos. Consequentemente, não se configura o instituto civil da confusão previsto no art. 381 do Código Civil, vez que não se confundem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor. (...) . 7. Recurso especial a que se nega provimento.”[1]
“AGRAVO INTERNO. RESPONSABILIDADE CIVIL. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EFEITO SUSPENSIVO. INDEFERIDO. TRANSFERÊNCIA DO NUMERÁRIO PENHORADO PARA O BANRISUL. POSSIBILIDADE. ASTREINTE. DESTINATÁRIO. CREDOR. 1.No caso em exame não estão presentes os requisitos para a concessão de efeito suspensivo previsto no artigo 457-M do Código de Processo Civil. Ademais, em se tratando de questão obrigacional esta poderá ser solvida com a devida reparação. 2.No que tange ao pedido de suspensão da ordem judicial de transferência dos valores constritos via BACEN JUD para a conta judicial no Banco Banrisul S/A, não merece guarida a pretensão da parte recorrente, tendo em vista que este possui legitimidade para gerir os depósitos judiciais no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, nos termos do artigo 3º do Provimento n. 31/2006 da Corregedoria-Geral de Justiça. 3. A multa prevista no artigo 461 do Código de Processo Civil tem como destinatário o credor da obrigação descumprida, não o Estado, como se depreende do §2º do dispositivo precitado. 4. Os argumentos trazidos no recurso não se mostram razoáveis para reformar a decisão monocrática. Negado provimento ao agravo interno.”[2]
Todavia, é imperiosa a constatação de que a conversão do produto da multa diária imposta em favor do destinatário da tutela jurisdicional concedida seja por decisão interlocutória (tutela antecipada) seja por sentença, não foi prevista pelo legislador ordinário. O que está previsto é a possibilidade do juiz, utilizando seu livre arbítrio motivado, alterar a periodicidade ou valor da multa fixada com vistas a garantir a sua eficácia conforme disciplina o § 6º do art. 461 do CPC.
Para MARINONI[3] “A multa referida nos arts. 461 do CPC e 84 do CDC possui o visível objetivo de garantir a efetividade da sentença e da tutela antecipatória, fazendo com que a ordem de fazer ou de não-fazer nelas contidas sejam efetivamente observadas.”
Por sua vez, para THEODORO JUNIOR[4] a astreinte tem força intimidativa no sentido de que pela coação econômica procura-se retirar o devedor de sua postura de resistência ao cumprimento da decisão judicial.
Com efeito, a conversão do produto da multa diária em favor daquele a quem se destina à prestação de direito objeto do mandamento judicial, não passa de uma lacuna na legislação que tem sido suprida pelo método da integração utilizado pelos tribunais brasileiros, quando não há dispositivo aplicável à situação específica ou quando a lei não trás em seu bojo os critérios objetivos para a sua aplicação.
No entanto, é curial o fato de que as astreintes são mecanismos existentes na ordem jurídica e que estão à disposição do estado-juiz para usá-los em prol da efetividade de suas decisões, cujo cumprimento não é uma faculdade da parte, mas um dever de todos os seus destinatários, sob pena de comprometer a função do Poder Judiciário no Estado de Direito e, por via de consequência, introduzir-se na sociedade a insegurança e a barbárie.
3. Contempt of Court e a Satisfatividade das Decisões Judiciais:
A ofensa a qualquer dos órgãos que compõem o poder judiciário é denominada pela doutrina como “contempt of court”, sendo que o ordenamento jurídico brasileiro é dotado de mecanismo processual adequado ao combate a todo e qualquer ato praticado pelas partes dentro da relação processual que venha colocar a instituição jurisdicional em estado de indignidade.
O art. 14, V e § único do Código de Processo Civil prescreve:
Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.
Assim sendo, a intolerância às ordens judiciais seja de natureza antecipatória ou final constitui-se como ato atentatório ao exercício da jurisdição em razão da qual é lícito ao magistrado impor multa processual no limite de 20% sobre o valor da causa, cujo produto se reverte ao próprio Estado, sendo o crédito, caso não pago, objeto de execução fiscal.
Por outro lado, tem-se a satisfatividade dos provimentos judiciais que, por meio da execução pela parte credora do direito ali determinado contra aquele a quem a ordem judicial se dirige, permite ao estado-juiz o alcance do escopo de fazer justiça, sendo o processo seu instrumento técnico e ético como bem já ensinou DINAMARCO[5]:
“Dizia-se que a missão do juiz seria a efetivação das leis substanciais, não lhe competindo o juízo do bem ou do mal, do justo ou do injusto. Sentenças injustas seriam o fruto de leis injustas e a responsabilidade por essa injustiça seria do legislador e não do juiz. Mas o juiz moderno tem solene compromisso com a justiça. Não só deve participar adequadamente das atividades processuais, endereçando-as à descoberta de fatos relevantes e correta interpretação da lei, como ainda (e principalmente) buscando oferecer às partes a solução que realmente realize o escopo de fazer justiça.”
Partindo-se de tais premissas, é imperiosa a compreensão que o não cumprimento das decisões judiciais afeta simultaneamente dois interesses que não podem ser desprezados: 1) o interesse público, de estado, cuja efetividade das decisões emanadas pelo poder judiciário garante a estabilidade das relações jurídicas e a manutenção da ordem a fim de se preservar as suas próprias instituições democráticas e; 2) o interesse particular, do titular do direito perseguido, cuja satisfação da tutela jurisdicional concedida tem como finalidade precípua a garantia de justiça.
Portanto, para a compreensão lúcida do sistema processual no que se refere à atuação efetiva do Poder Judiciário, não há como desassociar tais interesses aqui envolvidos, pois apesar de distintos por natureza convergem para uma única razão: a aplicação da justiça, seja do ponto de vista de quem tem esta função, seja dos seus destinatários.
4. O critério de aplicação das astreintes pelos tribunais brasileiros:
Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade têm sido o farol de aplicação das astreintes no Brasil, de forma a conduzir o juiz quanto à fixação da multa, caso a decisão seja descumprida pela parte a quem se destina o seu comando.
Por não haver critério objetivo definido na lei processual, o subjetivismo ganha importância, fazendo com que o valor e a periodicidade das multas aplicadas pelo descumprimento das decisões judiciais partam do livre arbítrio do juiz, porém, sempre motivado na razoabilidade e proporcionalidade, permitindo, inclusive, a sua modificação de ofício ou mesmo sua limitação quantitativa para efeito de execução de seu montante nos termos do § 6º do art. 461 do CPC.
Neste sentido, tem prevalecido o seguinte entendimento:
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL. PROPÓSITO INFRINGENTE. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MULTA DIÁRIA. ASTREINTES. VALOR. EXCESSO. RAZOABILIDADE. PROPORCIONALIDADE. POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO. PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO. ADMISSÃO. I. A multa por descumprimento de decisão judicial não pode ensejar o enriquecimento sem justa causa da parte a quem favorece, devendo ser reduzida a patamares razoáveis. II. Admite-se o prequestionamento implícito, configurado quando a tese jurídica defendida pela parte é debatida no acórdão recorrido. III. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, sendo negado provimento a este.[6]
É cediço que a função do Poder Judiciário não pode ser distorcida pela pretensão de qualquer das partes em tirar vantagem econômica excessiva ou desproporcional do processo, no entanto, tal aspecto, não menos importante, tem ensejado certa timidez quanto à aplicação integral da medida coercitiva pecuniária, considerada de fundamental relevância à efetividade das decisões judiciais.
Não tem sido poucos casos no Brasil, em que os litigantes de grande poderio econômico vêm menosprezando decisões judiciais em razão da previsível limitação das astreintes impostas pelo eventual descumprimento, o que vem sendo mais agravado pelo fato de já existir em alguns juízos brasileiros uma espécie de “tabelamento” ou “teto“ no valor correspondente ao montante das mesmas como critério de quantificação, o mesmo utilizado para auferir atualmente o quantum indenizatório nas ações de danos morais.
Entretanto, diferentemente dos danos morais, pelo qual se busca em primeiro plano a satisfação do interesse particular envolvido na demanda, as multas pecuniárias impostas no cumprimento de decisões judiciais visam prioritariamente à segurança jurídica como princípio de estabilidade das relações jurídicas por meio da necessidade de obediência aos provimentos advindos do Poder Judiciário, sendo que, neste caso, o interesse particular envolvido é secundário em que pese o produto da multa ser convertido à parte beneficiária da decisão de natureza mandamental.
Ademais, é de se vislumbrar que o critério limitador utilizado para fixação e aplicação das astreintes carece de melhor adequação à sua própria finalidade, o que vem degenerando o instituto que deve ser compreendido como meio de eficácia do mandamento judicial e não somente meio de satisfatividade do interesse particular envolvido.
5. O caráter pedagógico das “astreintes” como critério de sua aplicação integral:
Como já analisado, não é concebível limitar a aplicabilidade das astreintes sob o argumento de que em assim não o fazendo o processo se tornaria um meio inidôneo de enriquecimento, o que, segundo esta corrente do pensamento jurídico, afronta princípios consagrados na ordem jurídica como o da razoabilidade e proporcionalidade.
Contudo, tal limitação retira o caráter pedagógico que deve ser observado como importante instrumento jurídico de efetividade das decisões judiciais, as quais não devem ser desprestigiadas pela sensação de impunidade ou mesmo hegemonia econômica de alguns litigantes que ousam em desobedecer aos mandamentos judiciais por contar com a inoperância de mecanismos coercitivos que possam garantir a segurança jurídica dos mesmos.
Importante sopesar que não há previsão expressa na legislação de que sempre o produto da multa aplicada pelo descumprimento da decisão judicial deverá ser convertido em benefício da parte prejudicada, salvo na hipótese de perdas e danos com a verificação de malícia da parte devedora (art. 52, inciso V, da Lei 9.099/95), assim como não há qualquer impedimento legal ao magistrado de calibrar a aplicação da multa com vistas a garantir a efetividade do provimento concedido (§ 6º do art. 461 do CPC).
Porém, é de se vislumbrar que a observância dos princípios razoabilidade e proporcionalidade na aplicação das astreintes reside na necessidade pujante de adequação de seus fins quais sejam: 1) salvaguardar o direito material da parte reconhecido no provimento judicial concedido e; 2) garantir a efetividade do provimento judicial pela fiel observância por àqueles a quem se destina o seu cumprimento.
Atualmente, o que se observa é que o critério adotado pela jurisprudência pátria ainda está longe de adequar, simetricamente, a dupla finalidade das astreintes, pois o que se tem considerado é tão somente a necessidade de evitar o enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento a indispensável efetividade e segurança que as decisões judiciais devem ser lastreadas, o que não é possível sem o uso de meios coercitivos pedagógicos contra a parte recalcitrante.
A desobediência às ordens judiciais é tão nefasta à justiça como um fim (a garantia do direito perseguido pela parte que o reclama) como também o é enquanto meio idôneo e inafastável de solução de conflitos e garantia de manutenção da ordem no Estado Democrático de Direito.
6. Caráter Pedagógico e Interesse Público:
O cumprimento fiel das decisões judiciais, cujos efeitos não se encontram suspensos ou cassados por recurso, não pode ser desestimulado pela timidez do próprio Poder Judiciário em impor a sua força sob o argumento de que estaria propiciando favorecimento excessivo à parte, especialmente, quando se tratar de multas diárias impostas, cujo produto poderá ser convertido ao litigante prejudicado.
Mutatis mutandis, a lógica do sistema é: quanto mais pesadas as astreintes mais garantida é a efetividade da decisão judicial, tanto é assim que os litigantes de grande poderio econômico deste país vêm descumprindo decisões judicias pela insignificância patrimonial da multa coercitiva imposta em razão da lei mercadológica do “custo x benefício”.
A estabilidade dos provimentos judiciais permitem a segurança jurídica esperada com vistas à manutenção da ordem e o equilíbrio necessário às relações jurídicas, por isso ser interesse de Estado a efetividade de suas decisões balizadoras do controle jurídico indispensável à manutenção das estruturas políticas democráticas, uma vez que o recuo da função jurisdicional abre caminho para o autoritarismo político e a barbárie social e econômica em que os mais fortes se sobrepujarão aos mais fracos.
A pergunta ao problema enfrentado aqui ainda carece de resposta e possivelmente solução: qual seria o critério para se garantir a efetividade das decisões judiciais sem propiciar favorecimento desproporcional ao direito perseguido pela parte?
Se o problema é a destinação do produto da multa diária imposta, o que a legislação aplicável não prevê expressamente, por que então não garantir a sua integralidade aplicando harmonicamente os princípios da razoabilidade e proporcionalidade de forma a permitir na sua execução que o montante que for considerado excessivo para ser destinado em particular à parte prejudicada, seja transferido, por ordem do próprio juiz, ao Fundo de Reaparelhamento do Judiciário (FRJ) à luz do Poder de Cautela conferido pelo § 5º do art. 461 do CPC bem como da necessidade de se preservar o interesse público também violado no caso?
Para fins de melhor compreensão, é importante trazer à baila, por exemplo, a Lei Estadual (SC) nº. 8.067/90 a qual dispõe sobre o FRJ do Estado de Santa Catarina/SC, chamando atenção para os artigos 2º e 3º, inciso X:
Art. 2º O Fundo de Reaparelhamento da Justiça – FRJ, tem por finalidade o fortalecimento de recursos financeiros, destinados ao reequipamento físico e tecnológico do Poder Judiciário, Ministério Público, das unidades prisionais e dos estabelecimentos destinados a atendimento da política de proteção aos direitos da Criança e do Adolescente, principalmente na: (grifo nosso).
I – elaboração e execução de planos, programas e projetos;
II – construção , ampliação e reformas de prédios;
III – aquisição de equipamentos, veículos utilitários e outros materiais;
IV – implementação dos serviços de informática;
V – manutenção e conservação de edificações, compreendendo o custeio dos serviços e dos materiais de consumo;
VI – implementação da sistemática de aquisição e controle do selo de fiscalização, instituído pela Lei Complementar nº 175, de 28 de dezembro de 1998;
VII – contratação de estagiários para atuarem junto ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, nas unidades prisionais e nos estabelecimentos destinados a atendimento da política de proteção aos direitos da Criança e do Adolescente;
VIII – capacitação de recursos humanos.
Parágrafo único. É expressamente vedada a aplicação de quaisquer recursos do Fundo de Reaparelhamento do Judiciário - FRJ, em despesas de pessoal.
Art. 3° Constituem recursos do Fundo de Reaparelhamento do Judiciário -FRJ:
X - outros recursos de qualquer origem, que lhe forem transferidos. (grifo nosso).
Assim, a natureza inibitória das astreintes deve ser mais utilizada pelo Poder Judiciário, pois não somente garantirá a satisfação do direito individualmente tutelado na decisão, mas também a efetividade dos provimentos em prol da manutenção da ordem inerente ao equilíbrio das estruturas democráticas do País.
Atualmente, o grande número de lides existentes no Brasil, nas quais as ordens judiciais são desprestigiadas ou pela sensação de impunidade ou pela falta de rigor na utilização dos mecanismos processuais capazes de promover a garantia de eficiência da justiça, é que torna imperiosa a discussão ao nível de academia acerca dos critérios objetivos que satisfaçam os anseios da Segurança Jurídica indispensável à manutenção do Estado, por meio da efetividade de seus poderes constituídos.
7. Conclusão:
A célebre frase de Rui Barbosa “A justiça atrasada não é justiça; é injustiça qualificada” reflete perfeitamente o não cumprimento das decisões judiciais na atualidade, cujos efeitos se perdem em razão do decurso do tempo sem que a parte possa ver efetivada a tutela jurisdicional outrora reconhecedora do direito perseguido.
O direito sendo uma ciência social aplicada não pode falecer ante as complexidades da sociedade moderna que está totalmente rendida ao utilitarismo, como sendo o mais atual instrumento do sistema econômico capitalista capaz de enquadrá-lo e, por conseguinte, impor as prioridades à própria sociedade que a ele está submetida.
A teoria do custo/benefício é que sustenta a indiferença daqueles que desprezam as ordens judiciais, afrontando a Segurança Jurídica e o Estado Democrático de Direito, o que forçosamente deve levar à reflexão da comunidade jurídica nacional se realmente, neste sentido, o Brasil está no caminho certo.
Bibliografia:
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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil vol. I. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2005;
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica (arts. 461, CPC e 84, CDC), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000;
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, Tomo V;
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 9 ed. São Paulo: RT. 2006;
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WATANABE, Kazuo. Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não fazer - arts. 273 e 461, CPC. Revista direito do consumidor, vol. 19.
[1] REsp 770753/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/02/2007, DJ 15/03/2007, p. 267.
[2] Agravo Nº 70047001045, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 28/03/2012.
[3] Luiz Guilherme Marinoni. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. 2001, p. 72.
[4] Humberto Theodoro Junior. Curso de Direito Processual Civil. 2006, p. 22.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil vol. I. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 79.
[6] STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL AgRg no REsp 1041518 DF 2008/0061890-0
Advogado militante em São Paulo e no Pará. Sócio fundador e diretor do Escritório Reis & Brandão Advogados Associados S/S com sede na cidade de Belém/PA. Membro da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo (AASP). Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PA. Especialista e pós-graduado Lato Sensu em Direito Tributário e Direito Processual Civil pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais São Paulo/SP (Antigo Centro de Extensão Universitária - CEU). Pós-graduado Lato Sensu em Direito do Consumidor pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas em São Paulo (UNIFMU-SP). Estudou Doutorado em Direito Civil na Universidade de Buenos Aires - Argentina/AR. Professor de Direito Tributário, Direito Processual Civil e Direito do Consumidor da Faculdade de Belém (FABEL), Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). Professor de Direito Processual Civil da UNINASSAU - Faculdade Maurício de Nassau. Professor Convidado de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Processual Civil da Escola Superior da Advocacia do Pará (ESA). Professor convidado do Instituto de Pesquisas Aplicadas INPA em Fortaleza-CE. Professor em Cursos Preparatórios para Concursos Públicos, Articulista com diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. É conferencista em eventos nacionais e internacionais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAIO ROGéRIO DA COSTA BRANDãO, . A integralidade das astreintes e o estado de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 fev 2014, 08:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38371/a-integralidade-das-astreintes-e-o-estado-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
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