O artigo em tela ocupa-se do protagonismo que a função jurisdicional tem exercido no campo das instituições do Estado Democrático nesse cenário de infindáveis desafios que a ela incumbe enfrentar, culminando por despontar o juiz multifacetário, incumbido da solução de problemas de inúmeras matizes nos campos da psicologia, da sociologia, da família e das instituições, dentre outros.
O Poder Judiciário encontra-se na pauta do dia. Nos diversos meios de comunicação, nos ambientes de trabalho, em encontros sociais ou em simples conversas reservadas, é difícil deixar de ver ou ouvir alguma matéria informativa a respeito de julgamentos proferidos por nossa Justiça, seja pelo Supremo Tribunal Federal, de atuação, obviamente, mais destacada, seja por outros tribunais ou por juízes de primeira instância, estes, em tese, mais próximos e cujas decisões transmitem-se mais facilmente.
A Justiça se tornou mais popular e o acesso a ela, consequentemente, mais facilitado. Paralelamente, nunca um Poder recebeu tantas aclamações quanto críticas, o que é tributário do imenso grau de visibilidade alcançado. Transformaram-se os juízes em refúgio para todos os problemas, consubstanciando o paradoxo em que vive hoje a função jurisdicional: convite e rejeição, proatividade e contenção, solução institucional e déficit de legitimidade. E não há surpresas nisso tudo.
No Brasil hodierno, poucas questões têm suscitado tanta discussão entre os estudiosos do Direito como a referente à ascendência do Poder Judiciário no cenário nacional, fenômeno derivado, além de outros fatores, da incapacidade de os Poderes eminentemente políticos – o Legislativo e o Executivo – atenderem aos interesses desejáveis de uma coletividade extremamente complexa e, cada vez mais, conscientizada e ávida pela realização de seus direitos.
Não se olvida, justo dizer, a consagrada função precípua do Poder Executivo de realizador das políticas públicas, sobretudo no que tange à efetivação dos comandos gerais consignados no ordenamento jurídico e à implementação dos programas necessários à prestação de serviços para a coletividade.
É verdade, também, que a atividade fiscalizadora do Poder Legislativo imbui-se de extrema relevância com seu controle sobre a atuação do Executivo na realização dos fins previstos na Constituição, especialmente no que diz respeito aos direitos fundamentais cujo gozo depende tanto ou diretamente da materialização dos comandos da Administração. Na mesma direção, a concepção do Legislativo como o programador dos meios para o desenvolvimento do Estado, a par de sua ligação com os fenômenos da formação do direito positivo, denota sua imprescindibilidade para a constituição de uma sociedade democrática.
A indispensabilidade desses Poderes para a sustentabilidade do Estado Democrático, todavia, não consegue ocultar sua insuficiência como instrumentos de legitimação política. Especialmente no que alude ao Legislativo, as mazelas que afligem o Congresso Nacional, seja na ausência de vontade política, seja no descaso com o interesse coletivo, seja nas denúncias de corrupção, desnudam o desgaste sofrido hoje por nossos representantes, incapazes de oferecer à população a credibilidade e a confiança de que o jogo ordinário do sistema político democrático necessita.
Nessa linha, a crise de legitimidade do Poder Legislativo soma-se à insuficiência da atuação do Executivo em seu dever de concretizar políticas públicas e, pois, efetivar os direitos e os objetivos que o Estado constitucional proclama. Sob esse prisma, Vianna, et al. (1999, p.18) endossa o episódio de decadência representativa desses Poderes:
[...] os parlamentos amiúde são excessivamente abundantes e por demais empenhados em questões de política geral e partidária para estarem em condições de responder, com a rapidez necessária, à demanda desmedidamente aumentada da legislação. Paradoxalmente, os parlamentos ‘atribuíram-se tarefas tão numerosas e diversas’ que, para evitar a paralisia, encontraram-se ante a necessidade de transferir a outrem grande parte da sua atividade, de maneira que suas atribuições terminaram em abdicação (...) Tem-se, então, que a abdicação do Legislativo na administração política do welfare, aliada à capacidade de o Estado gerir o “circuito” da representação funcional, seriam os elementos responsáveis pela configuração da outra face do Welfare State – a do Estado administrativo, com sua burocracia autonomizada do controle político, tutelando de modo paternalista cada região da vida social. Do Welfare State derivaria, por isso, um onipresente aparelho administrativo, inacessível à cidadania e conversor dos indivíduos em clientes, gerando um “sentimento de impotência e de abandono” em todos aqueles que não conseguem se reunir em “grupos poderosos com condições de obter acesso às inumeráveis alavancas da máquina burocrática” (grifos do autor).
No mesmo sentido, tecendo considerações sobre o declínio da confiança no Parlamento, diz Cappelletti (1993, p.44):
[...] os parlamentos demonstraram o caráter fantasioso da sua pretensão de se erigirem em instrumentos onipotentes do progresso social. Demasiadas leis foram emanadas demasiadamente tarde, ou bem cedo tornaram-se totalmente obsoletas; muitas se revelaram ineficazes, quando não contraprodutivas, em relação às finalidades sociais que pretendiam atingir; e muitas, ainda, criaram confusão, obscuridade e descrédito da lei. Nem se esqueça que os parlamentos, nas sociedades pluralísticas, compõem-se na maior parte de políticos eleitos localmente, ou vinculados eleitoralmente a certas categorias ou grupos. Os valores e prioridades desses políticos são, por isso, muito amiúde valores e prioridades locais, corporativos ou de grupo (1993, p. 44).
Diante, pois, de um Executivo atrelado a acordos políticos e econômicos circunstanciais e de um Legislativo desprestigiado, ganha destaque a figura do poder Judiciário, chamado a efetivar as conquistas constitucionalizadas e a promover a cidadania social preconizada pelo texto fundamental.
É, nesse quadro, que entra em cena a crescente atuação da função jurisdicional, que tem deparado, nos últimos anos, com um desafio tão instigante quanto de árdua superação: cumprir, de maneira satisfatória, a agenda de intermináveis compromissos que uma sociedade complexa, pluralista e, cada vez mais, ciente de seus direitos está a exigir-lhe.
Nesse ambiente político carente de bons projetos inclinados ao bem comum, onde ainda é inconteste o baixo grau de realização das promessas constitucionais, uma sociedade civil desacreditada e repleta de reclamos deposita no Judiciário enormes esperanças para o alcance de interesses por cuja satisfação não pode mais esperar. Reforça Barroso (2009, p.373):
Nos últimos vinte anos, o Judiciário ingressou na paisagem institucional brasileira. Já não passa despercebido nem é visto com indiferença ou distanciamento. Há mais de uma razão para esse fenômeno. A ascensão do Poder Judiciário se deve, em primeiro lugar, à reconstitucionalização do país: recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Uma segunda razão foi o aumento da demanda por justiça na sociedade brasileira. De fato, sob a Constituição de 1988, houve uma revitalização da cidadania e uma maior conscientização das pessoas em relação à proteção de seus interesses. Além disso, o texto constitucional criou novos direitos e novas ações, bem como ampliou as hipóteses de legitimação extraordinária e de tutela coletiva. Nesse ambiente, juízes e tribunais passaram a desempenhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo.
Não é fortuito, sabe-se, esse exponencial alargamento das funções que o Judiciário, exponencialmente, tem sido chamado a desempenhar. Resultado, como, apesar de apenas ligeiramente, aqui já se evidenciou, do declínio institucional dos outros Poderes da República e do neoconstitucionalismo, o ativismo judicial possui seus pontos positivos e negativos, e ambos necessitam ser ponderados, em que pese ser impossível, nos estreitos limites deste trabalho, esmiuçá-los.
O lado benéfico desse ativismo é bem conhecido e consubstancia-se no potencial proativo e transformador que os fins, princípios e valores difundidos pelo constitucionalismo dos novos tempos oferecem a esse Poder. A figura de um Judiciário indiferente e mero espectador dos litígios sociais não é, em absoluto, compatível com o volumoso catálogo de atribuições que a vigente Constituição brasileira lhe confia. Ao contrário, tal texto, pródigo no estabelecimento de tamanho rol de tarefas e compromissos a serem dirimidos pela atividade jurisdicional, harmoniza-se com o ativismo que ora desponta. Eis uma assertiva que os críticos da assunção, pelo Poder Judiciário, desse atuante papel parecem não querer absorver. Nesse diapasão, aduz Pellegrini (2013, p. 81):
A visão social do Estado social não admite a posição passiva e conformista do juiz, pautada por princípios especialmente individualistas. O processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito. A pacificação social almejada pela jurisdição sofre sério risco quando o juiz permanece inerte, aguardando passivamente a iniciativa instrutória da parte.
As novas exigências sociais proclamam reivindicações cujas soluções desejadas não se encontram plenamente nos demais órgãos estatais. Cheios de anseios, os cidadãos batem às portas dos magistrados exigindo-lhes a concretização de direitos tão reiteradamente proclamados quanto bastante esquecidos. Urge, então, o ingresso na arena de um “terceiro” capaz de pôr fim a litígios declaradamente irresolúveis: o Poder Judiciário, com as esperanças que se lhe depositam e com a autoridade que representa.
A atividade jurisdicional, antes circunscrita à pacificação de conflitos intersubjetivos mediante a aplicação do método neutro e objetivo da subsunção, vê-se compelida a cuidar de uma miríade de assuntos complexos para cuja solução não foi, naturalmente, preparada. O grau de intensidade das lutas a serem enfrentadas é imenso e contribui para justificar por que o Poder Judiciário tem recebido a pecha de vitrine das instituições públicas.
Garapon (1996, p. 227-228), outrossim, descrevendo as características do Estado Providência e vaticinando o aflorar de um novo modelo de organização judiciária, evidencia o papel indispensavelmente multifacetário do juiz moderno:
[...] Com o advento do Estado provedor, o juiz passa a ser “treinador”, intimado a reparar todas as injustiças do mercado e de cuidar dos sinistros da industrialização. Enquanto a justiça resumia-se a resolver alguns aspectos da vida social, como no século passado, ela podia contentar-se em oficiar alguns poucos belos processos. As exigências do Estado provedor obrigam-na a adotar um funcionamento burocrático. O gabinete, isto é, o escritório do juiz, é sucessor da sala de audiência como o melhor lugar da justiça: ali, o juiz, assistido por todo um areópago de peritos e de assistentes sociais, pode mostrar-se mais atuante. O direito passa a apoiar-se em conhecimentos que lhe são completamente estranhos, como a psicologia, a contabilidade etc. Os papéis do juiz, do perito e do administrador se confundem. A razão do juiz torna-se instrumental, ele não deve apenas aplicar princípios, mas também buscar os meios mais seguros e mais rápidos para chegar ao fim esperado. Este segundo modelo apresenta hoje sintomas profundos de esgotamento. Hoje em dia fala-se muito de um “retorno do direito”, mas na verdade trata-se do fim da omissão do direito sobre o Estado provedor. Depois dos modelos do direito formal e do direito material, como conceber, hoje, o papel do direito? Se o direito liberal do século XIX foi o do poder legislativo, o direito material do Estado provedor do século XX, o do executivo, o direito que se anuncia poderia bem ser o do juiz.
A expressão ativismo judicial, em resumo, liga-se ao maior grau de ingerência do Judiciário na agenda político-institucional do país. Ingerência não em seu sentido pejorativo, a despeito dos grandes prejuízos que podem derivar de uma eventual atuação judicial arbitrária e desmedida, como ainda se mencionará, mas construtiva, inclinada a tarefas verdadeiramente atuantes, comprometidas com os direitos fundamentais e com a efetivação dos objetivos plasmados na Constituição.
Outro norte deve ser buscado, a conceber nossa Justiça mais como meio de direção e promoção social, de correção de desigualdades e consecução de equilíbrio nas relações socioeconômicas que como instrumento tecnicista de garantia de certeza e segurança de direitos já tão historicamente declarados em nossos ordenamentos, objetivando-se
[...] a transformação do juiz um legislador ativo e criativo, consciente de que a justiça não pode ser reduzida a uma dimensão exclusivamente técnica, devendo ser concebida como instrumento para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa, [...] capaz de identificar e esclarecer o significado político das profissões jurídicas, possibilitando-lhes assim um distanciamento crítico e uma clara consciência das inúmeras implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades socioeconômicas (FARIA, 1989, p. 96-97).
Sem embargo, é importante dizer, também, que alguns autores associam o ativismo judicial a um fenômeno vicioso, consistente na desobediência aos limites normativos elementares da função jurisdicional e, pois, vinculado a uma “disfunção” no exercício desta, em detrimento, sobretudo, da função legislativa (RAMOS, 2010, p. 107 e 138).
Para este trabalho, porém, o eventual desvio funcional do papel para o qual o Judiciário está, institucionalmente, legitimado a exercer é reflexo de uma conduta contextualizada viciada, que, longe de ser uma constante na vasta gama de decisões judiciais proferida por nossa Justiça, representa chaga também presente em outras esferas de poder, de sorte que eventual ilegítima atuação não empana as virtudes do fenômeno. É injusto, pois, conferir ao ativismo judicial um sentido negativo quando tal exorbitância apenas constitui uma parcela reduzida e excepcional das controvérsias inerentes a esse movimento de incursão judicial, as quais, enfatize-se, são, em sua maioria, benquistas.
De qualquer sorte, entende-se que o Judiciário dos novos tempos, assumindo um papel de inédito relevo, tem de ser acreditado, não só cumprindo com racionalidade consistente sua função institucional, mas, também, permitindo que a sociedade civil confie que tal atuação é legítima e justa o suficiente para ser bem reconhecida como a última instância à qual se recorrer para que sejam dirimidos os conflitos existentes no interior da massa social. Ensina Junqueira de Azevedo (2013, p. 123-129):
Após um primeiro susto, os muitos séculos de história do direito devem, na verdade, levar o jurista a aplaudir as tentativas de desconstrução. A história comprova a existência de mudanças, e, por outro lado, nada melhor para a realização da justiça que a tomada de consciência do que está subjacente à lei ou à sentença. O reconhecimento da precariedade da razão, se, de um lado, leva à não-admissão de dogmas lógicos (esses dogmas, de resto – e nisto é preciso atenção -, não se confundem com os dogmas da fé e moral, que têm outros fundamentos), de outro não impõe a conclusão de que estamos a viver a consagração do irracionalismo. Verificada a fragilidade da razão, não deve, pois, o jurista afastá-la, mas, sim, colocar a seu lado, como um arrimo, a intuição do justo. Afinal, interpretar, como revelam alguns profundos trabalhos de hermenêutica (Coreth, Grondin), não é apenas “entender intelectualmente”, é também intuir – especialmente no caso do direito, em que o objetivo final é manter a vida e resolver problemas existenciais da pessoa humana no seu relacionamento recíproco. Saudemos, pois, sem medo, também esse aspecto do mundo pós-moderno.
O ativismo judicial, longe de ser imprevisto ou repentino, é corolário de seu tempo. Porém, convém advertir que o fato de ser natural não implica torná-lo inteiramente aceitável, contra tudo e contra todos. Há outros valores protegidos pelo ordenamento jurídico, e é função do intérprete igualmente resguardá-los, sopesando os interesses em jogo e realizando as escolhas que devem ser priorizadas num contexto específico.
Com efeito, a ascendência do Judiciário na agenda nacional não é imune a riscos, não podendo seus aspectos virtuosos ofuscarem seus defeitos, como os que se consubstanciam na crítica à possibilidade de uma minoria de juízes, não eleitos democraticamente pelo povo, possuir autoridade para sobrepor-se aos demais órgãos do poder (tese do déficit democrático).
Impende sublinhar, neste momento, haver uma estreita ligação entre constitucionalismo e democracia. Resumidamente, a democracia identifica-se com o governo do povo, pretendendo o predomínio da vontade da maioria, ao passo que o constitucionalismo volta-se à limitação do exercício do poder, como forma de contenção da soberania popular. Assim, a segunda credita à vontade da maioria a legitimação do exercício do poder, e o primeiro, sabedor dos arbítrios que tal vontade pode ocasionar, põe-lhe um freio, delimitando sua atuação.
A igualdade de condições que simboliza o modelo democrático não é desvestida de imperfeições. O prestígio à isonomia de direitos e de valores, marca da horizontalidade social propugnada pela democracia, contribuiu, inequivocamente, para repelir os vetustos privilégios baseados na autoridade da ordem, no nascimento e na religião, contestados por uma sociedade, paulatinamente, crente de seus direitos e desejosa por participar da construção de seu próprio destino.
De fato, a legitimidade dos antigos regimes autoritários restava enfraquecida, e a democracia, nesse contexto, emergiu, para conferir, com assento no princípio da soberania popular, autonomia política aos cidadãos, comandantes, agora, dos rumos da nação. Entretanto, se, por um lado, o regime democrático é reputado quase universalmente válido e justo no mundo, por outro, não se podem desprezar os problemas por ele ocasionados.
As autoridades tradicionais e os costumes antigos, generalizadamente, não possuem bom espaço no regime democrático, no qual grassam a incessante busca pela igualdade e o repúdio à diferença. No entanto, generalizadamente, os regimes anteriores, quer sob o prisma do seio familiar, quer sob o prisma da ordem estabelecida pelo déspota, tinham, para o bem ou para o mal, com lastro na moral e no respeito, suas maneiras de resolver seus conflitos, cujo procedimento de solução era delegado à presidência da correspondente autoridade.
A democracia, porém, nasce carente de liderança. As funções de cada membro do corpo social, antes hierarquicamente delimitadas, são substituídas por um modelo de organização que culmina por delegar ao alvedrio de todos o exercício legítimo do poder. Há, sem dúvidas, resultados positivos nessa sistemática, porquanto a realização da isonomia, ideal que caminha em paralelo à democracia, é alicerce, objetivo e promessa do Estado Democrático de Direito. Isonomia que, outrossim, corresponde à garantia da igualdade de direitos, consubstanciada na similaridade das posições fática e jurídica dos indivíduos: sem privilégios, sem favores, múltiplas concessões, horizontalidade.
Sem embargo, uma sociedade que intenta o bônus da proclamação da igualdade absoluta de seus cidadãos deve pagar o preço respectivo: mais direitos proclamados, mais demandas instauradas, e o excesso de judicialização ganha um palco onde protagonizar. O sucesso da democracia, ademais, construtor da independência política dos indivíduos, relega a segundo plano a figura da autoridade, dado à titularidade, nas mãos do povo, do exercício do poder.
Sobram múltiplos valores, faltam, contudo, referências comuns. A pluralidade de interesses subsistentes numa sociedade complexa torna dificílima a resolução pacífica dos conflitos pelos próprios contendores. O fracasso oriundo do próprio sucesso da democracia liga-se, pois, à impossibilidade de tal regime solver, de maneira satisfatória, os impasses que ela mesma suscitou. O que antes se resolvia quase unilateralmente, quer pelo chefe autoritário do grupo social, quer pelo líder do grupo familiar, agora pende de solução: a democracia tem suas necessidades de socorro.
O aumento vertiginoso da litigiosidade judicial, portanto, está longe de ser fortuito e reflete a decadência e o paradoxo do homem democrático, incapaz de dirimir as diferenças que afloram no convívio com seus pretensamente iguais. Num cenário de descrédito das instituições políticas e de desnorteamento da sociedade civil, a Justiça aparece como último refúgio, símbolo da pacificação e referência da moralidade.
Contemporaneamente, os magistrados são convocados como últimos baluartes de uma democracia desiludida, que, apesar de muito desejar, pouco, verdadeiramente, tem. São eles o depositário das últimas promessas e a confiança de arbitramento de confrontos para cuja solução não se encontra bem uma resposta capaz de a todos agradar.
Crise na família, crise nas instituições, crise nos cidadãos. A judicialização e o ativismo judicial são produtos de uma sociedade litigante, que reclama bastante, mas que pouco contribui para evitar ou apaziguar os acirramentos sociais. Não há como, em absoluto, reputar surpreendente o gigantesco crescimento das tarefas do Judiciário, nem considerar-lhes a execução necessariamente ilegítima em face do ordenamento constitucional, o qual, como se vislumbrará mais adiante, antes convoca a atuação de tal Poder do que a repele.
O ativismo é um reflexo do sistema. Se o Judiciário “caiu na boca do povo”, é devido ao fato de que este, titular do poder constituinte, chamou-o para atuar. Uma sociedade pluralista e conflituosa, órfã de referências comuns, precisa de um árbitro para orientá-la. Assume relevo, então, a função jurisdicional, à qual se recorre como derradeiro amparo contra a falta de símbolos ou de autoridade moral. Há de se elogiar a proatividade do Judiciário, e não repudiá-la, o que não corresponde, contudo, a blindá-la de críticas, sempre bem-vindas e relevantes para um mais comedido estudo acerca do tema, o que, pelos óbvios limites, não se pode aprofundar mais intensamente neste espaço.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. Revista de Direito do Consumidor, n. 33, Jan-Mar.2000.
BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. In: AGRA, Walber de Moura (org.). Retrospectiva dos 20 anos da Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2009.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993.
FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça: a função social do Judiciário. Sâo Paulo: Ática, 1989.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
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RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
VIANNA, Luiz Werneck, et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Ex-Advogado da União. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (CE). Pós-Graduado em Processo Civil pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Autor do livro: Constitucionalismo, direitos sociais e atuação do Poder Judiciário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Lucas Sales da. O Juiz Múltiplo - sociólogo, psicólogo, gestor, comunicador, cidadão, membro de família, conciliador e agente de poder Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38421/o-juiz-multiplo-sociologo-psicologo-gestor-comunicador-cidadao-membro-de-familia-conciliador-e-agente-de-poder. Acesso em: 23 dez 2024.
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