Pretendemos sintetizar as regras atualmente vigentes no que toca aos descontos facultativos na remuneração dos servidores, com especial enfoque nos empréstimos consignados oferecidos à exaustão no mercado hodierno. Registraremos os principais conceitos, as limitações de percentual da renda consignável e as consequências de seu desatendimento a luz da constituição federal e das normas consumeristas.
A lei 8.112/91, regulando o regime jurídico dos servidores federais, abre a possibilidade de incidirem descontos cunhados de facultativos nas suas remunerações, ao lado dos já conhecidos descontos compulsórios judiciais e legais, como a pensão alimentícia judicial, no primeiro caso, e os descontos tributários no segundo. Verbis:
Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento.
Parágrafo único. Mediante autorização do servidor, poderá haver consignação em folha de pagamento a favor de terceiros, a critério da administração e com reposição de custos, na forma definida em regulamento. (grifo nosso)
Perceba-se que o legislador traçou diretrizes básicas fundantes do sistema (voluntariedade do servidor e reposição de custos administrativos com a implantação) no entanto, abriu as portas para a regulamentação procedimental através de decreto executivo que determinará o preenchimento de certos requisitos. (quando registra: “a critério da administração”)
Após sucessivas alterações regulamentares, hoje a norma vigente é o decreto 6.386/08, que regulamenta o art. 45 da Lei no 8.112/90, e dispõe sobre o processamento das consignações em folha de pagamento no âmbito do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos - SIAPE.
Mister termos em mente as figuras desta relação jurídica de modo a identificar os interlocutores: o consignante; o consignado e o consignatário, conforme dispõe o decreto:
Art. 2o Considera-se, para fins deste Decreto:
I - consignatário: pessoa física ou jurídica de direito público ou privado destinatária dos créditos resultantes das consignações compulsória ou facultativa, em decorrência de relação jurídica estabelecida por contrato com o consignado;
II - consignante: órgão ou entidade da administração pública federal direta ou indireta, que procede, por intermédio do SIAPE, descontos relativos às consignações compulsória e facultativa na ficha financeira do servidor público ativo, do aposentado ou do beneficiário de pensão, em favor do consignatário;
III - consignado: servidor público integrante da administração pública federal direta ou indireta, ativo, aposentado, ou beneficiário de pensão, cuja folha de pagamento seja processada pelo SIAPE, e que por contrato tenha estabelecido com o consignatário relação jurídica que autorize o desconto da consignação;
Bilhões em reais por ano são gerados através da contratação de empréstimos bancários consignados. Ocorre que o crédito pode ser uma porta de entrada para um poço sem fundo de dívidas, e cuidados precisam ser tomados pelos servidores e consumidores em geral, como a consulta comparativa às taxas de juros; registro da instituições financeiras junto ao banco central e, sobretudo, com a limitação legal do comprometimento de rendimentos com este tipo de operação.
Chama-se atenção para dois importantíssimos dispositivos, muitas vezes esquecidos pelas instituições financeiras: Dispõe o decreto 6.386/08:
Art. 8o A soma mensal das consignações facultativas de cada consignado não excederá a trinta por cento da respectiva remuneração, excluído do cálculo o valor pago a título de contribuição para serviços de saúde patrocinados por órgãos ou entidades públicas, na forma prevista nos incisos I e II do art. 4o.
(...)
Art. 9o As consignações compulsórias prevalecem sobre as facultativas.
§ 1o Não será permitido o desconto de consignações facultativas até o limite de trinta por cento, quando a sua soma com as compulsórias exceder a setenta por cento da remuneração do consignado.
(...)
grifo nosso.
Reputamos de máximo relevo jurídico as previsões estampadas, eis que materializadoras do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CF/88), fundamento da república e centro onde gravitam diversos direitos fundamentais. A margem consignável de 30% dos rendimentos líquidos denota plena reverência à manutenção do mínimo existencial e condição da vida com dignidade, não sendo licita sua transação. Trata-se, pois, de norma de ordem pública.
A livre concorrência e a oferta de crédito não podem ser vistas como direito ilimitado, em que pese seremos incutidos pela maciça publicidade em sentido contrário.
Tomando como base as normas de ordem publica descritas, acaso haja superação do limite legalmente previsto entendemos que deve haver imediata suspensão do desconto da quantia que o macule, ainda que em prejuízo da instituição financeira responsável, eis que na ponderação de valores constitucionalmente protegidos, não temos dúvida em defender a preleção antropocêntrica da CF/88 a prevalecerem as condições mínimas de existência do consignado.
Tanto os servidores responsáveis pelo desconto devem diligenciar sobre a legalidade da consignação, inclusive sob pena de sofrem as devidas consequências administrativas quanto e principalmente as instituições consignatárias, as quais possuem amplo acesso as informações financeiras do mercado e de seus clientes em potencial. [1]
Imaginemos que o cidadão tome empréstimo em determinada instituição atingindo o limite legal de 30%, posteriormente, atingido pela facilidade de crédito e pela sua necessidade (momentânea ou não) assume novo empréstimo...
Em que pese a autonomia da vontade do servidor, somos paritários da possiblidade de suspensão administrativa ou judicial deste segundo desconto enquanto perdurar a situação de ilegalidade.
Ora, são imposições do ordenamento jurídico que assim nos fazem concluir, em especial: A proteção a dignidade da pessoa humana; o dever de diligência da instituição financeira em atentar para o mínimo de resguardo legal em suas operações; as diretrizes da politica de proteção do consumidor estampadas na lei 8.078/90 em preservar o consumidor em sua saúde, segurança, proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia nas relações de consumo.
O próprio decreto, embora sem especificar em que condições ocorrerá, preverá a suspensão da consignação, ou seja, de novidade não estamos tratando para o sistema.[2]
Trazemos a colação dois recentes julgados aplicáveis ao caso:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO SOBRE PROVENTOS. LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS AO PERCENTUAL DE TRINTA POR CENTO DOS PROVENTOS LÍQUIDOS (DESCONTADOS O IRRF E A CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA). SUSPENSÃO DO EXCESSO. I. A requerente/ apelante ajuizou a presente cautelar a fim de garantir a limitação dos descontos a 30% da sua remuneração até o julgamento final da ação ordinária, em que pretende a revisão das cláusulas contratuais dos empréstimos contratados e a repetição de eventual indébito. II. Afirmar eventual falta de interesse em virtude da dicção do art. 273, parágrafo 7º, da lei adjetiva, na verdade, implica em negar vigência ao artigo 798, do CPC. III. Mostra-se presente o requisito do perigo da demora no caso, tendo em vista se tratar de descontos levados a efeito sobre a remuneração da requerente, que estaria recebendo R$ 142,30 (cento e quarenta e dois reais e trinta centavos) líquidos por mês, tendo mais de 94% dos seus rendimentos abatidos na fonte. V. Em se tratando dos aposentados pelo Regime Geral de Previdência Social, a Lei nº 10.820/2003, em seu artigo 6º, parágrafo 5º, dispõe que os descontos e as retenções mencionados no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite de 30% (trinta por cento) do valor dos benefícios. Por seu turno, os arts. 3º e 5º, do Decreto Estadual 32.554/11, limita a 30% dos rendimentos brutos a amortização de empréstimos em geral concedidos por instituições financeiras e cooperativas de crédito aos servidores do Estado da Paraíba. IV. Assim, se mostra pouco razoável - e fere o princípio da dignidade da pessoa humana, admitir que a parte tenha que aguardar o julgamento do processo principal subsistindo com uma quantia irrisória, insuficiente para o próprio sustento, quando a legislação na qual se fundamenta o pedido indica que os proventos da apelante efetivamente estão sofrendo descontos exagerados. V. Apelação provida, para manter a suspensão dos descontos relativos aos empréstimos consignados obtidos pela apelante, no que exceder a 30% dos proventos líquidos (descontados o IRRF e a contribuição previdenciária).
(AC 00030155020114058201, Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, TRF5 - Quarta Turma, DJE - Data::19/12/2013 - Página::601.) grifo nosso.
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGTR. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. UNIVERSIDADE ESTADUAL, BANCOS PRIVADOS E CEF. INCOMPETÊNCIA PARCIAL DA JUSTIÇA FEDERAL. EXCLUSÃO DA LIDE. MANUTENÇÃO DA CEF. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. OBEDIÊNCIA AO LIMITE DE 30% DA REMUNERAÇÃO. EXTINÇÃO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. AGRAVO PREJUDICADO. 1. A decisão agravada, nos autos da ação ordinária de origem, deferiu parcialmente a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, para determinar a suspensão dos descontos em folha relativos aos empréstimos consignados obtidos pelo autor junto à CEF, Banco Cruzeiro do Sul, Banco BGN e Banco Santander, ressalvando que os respectivos contratos de empréstimos permanecerão válidos, podendo as respectivas prestações ser cobradas por outros meios legais cabíveis, que não o desconto em folha (fls. 68/71). 2. Nas instâncias ordinárias de jurisdição, as condições da ação e pressupostos processuais são passives de cognição de ofício, a qualquer tempo, nos termos do art. 267, parágrafo 3.º, do CPC, aplicando-se essa disposição legal, inclusive, em sede de agravo de instrumento. 3. Na hipótese, verifica-se que as requeridas, exceto a Caixa Econômica Federal - CEF, são instituições estadual e privadas, o que afasta a competência da Justiça Federal, devendo ser excluídas da demanda originária. 4. Considerando que apenas a CEF deve permanecer como parte ré na demanda e considerando, ainda, que a parcela do empréstimo consignado, contraído com aquele banco, perfaz um total de R$ 2.356,64, e que a remuneração bruta do agravado consiste em R$ 14.029,59 (fls. 30), não restou ultrapassado o limite pleiteado na demanda, visto que 30% de sua remuneração bruta correspondem ao valor de R$ 4.208,87. Dessa forma, não restou demonstrado o seu interesse de agir, haja vista a ausência de utilidade e de necessidade do provimento judicial. 5. Em situação análoga, já se posicionou essa Primeira Turma em recentes julgados de relatoria dos Desembargadores Federais FRANCISCO CAVALCANTI E MANOEL DE OLIVEIRA ERHARDT (AC 492.291-CE, REL. DES. FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, julg. 20.09.12; MC3117/PB, REL. DES. FEDERAL MANOEL ERHARDT, julg: 31.01.13). 6. Ante o exposto, reconheço, de ofício, a ilegitimidade passiva da Universidade Estadual da Paraíba e dos Bancos BGN S/A, ABN AMRO REAL S/A, FIBRA S/A e Cruzeiro do Sul, e a ausência de interesse processual do autor, ora agravado, nos termos do art. 267, incisos IV e VI, e parágrafo 3º, do CPC, julgando prejudicado o exame do mérito da pretensão recursal deduzida nesta agravo de instrumento. 7. Agravo de Instrumento prejudicado (AG 00025183020134050000, Desembargadora Federal Niliane Meira Lima, TRF5 - Primeira Turma, DJE - Data::29/05/2013 - Página::69.)
Este último julgado, embora trate de questão processual relacionada a competência, é elucidativo ao indicar a possiblidade de suspensão dos descontos acaso ultrapassado o patamar legal. O mesmo se diga em relação ao primeiro acórdão, embora tratando do empregados da inciativa privada.
Registramos, por fim, não estar em discussão a legalidade em si da contratação, a qual, pode ou não estar presente e independe da suspensão dos descontos.
Concluímos que a vulnerabilidade do consumidor e a natureza pública das normas de regência permitem a suspensão temporária da consignação enquanto o limite legal estiver extrapolado.
BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo. Atlas. 2012.
[1] A LC 105/01 assevera: art. 1°, §3°: Não constitui violação do dever de sigilo: I – a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrai
s, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil.
[2] Art. 2o Considera-se, para fins deste Decreto: (...) VI - suspensão da consignação: sobrestamento pelo período de até doze meses de uma consignação individual efetuada na ficha financeira de um consignado;
Procurador- AGU/PGF. Pós-graduação em Advocacia Pública (2015) - Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Coimbra. Pós-Graduação em Direito Processual Civil (2009) - PUC/SP. Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia- UNAMA (2002). Atuação profissional na área cível, em direito público, com destaque para Direito Ambiental, Tributário, Administrativo, Constitucional.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NORAT, Ygor Villas. O crédito consignado no serviço público federal e suas limitações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38462/o-credito-consignado-no-servico-publico-federal-e-suas-limitacoes. Acesso em: 27 dez 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
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