1. RESUMO: O presente ensaio visa a fazer uma análise crítica da evolução do entendimento do STJ a respeito dos reflexos processuais da indicação errônea da autoridade coatora na petição inicial de mandado de segurança. Nesse processo, destaca-se, em linhas gerais, o tratamento constitucional do aludido remédio heroico, para, em sequência, sob uma perspectiva histórica, cotejar o entendimento jurisprudencial e as lições doutrinárias que embasam a aplicação da teoria da encampação e a possibilidade de emenda à petição inicial, com ênfase em seus pressupostos e hipóteses de incidência. Ao final, conclui-se que o entendimento hoje dominante no STJ é o que melhor se coaduna com os princípios informadores do moderno direito processual civil.
Palavras-chave: Mandado de segurança – autoridade coatora – indicação errônea –encampação – emenda à inicial.
2. INTRODUÇÃO
O mandado de segurança destina-se a proteger direito individual ou coletivo líquido e certo contra ato ou omissão de autoridade pública não amparado por habeas corpus ou habeas data, sendo previsto no art. 5º, LXIX e LXX, da Constituição da República de 1988. Atualmente, é disciplinado pela Lei nº 12.016/09, a qual revogou a Lei nº 1.533/51, que lhe regulamentava desde constituições pretéritas.
Considerando a inegável importância do writ of mandamus no ordenamento jurídico pátrio, adquire relevância a discussão acerca dos reflexos processuais da indicação errônea da autoridade coatora. Nesse sentido, o presente estudo busca analisar de forma crítica, sob uma perspectiva histórica, a evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito da matéria.
3. DESENVOLVIMENTO
O mandado de segurança, típica criação brasileira, é uma ação constitucional de natureza civil, qualquer que seja a natureza do ato impugnado (administrativo, criminal, eleitoral, trabalhista etc.), constitucionalizado desde o texto de 1934, cuja origem histórica tem como fonte imediata de inspiração a “teoria brasileira do habeas corpus”, o art. 13 da Lei nº 221/1894 (ação anulatória de atos da Administração) e o instituto dos interditos possessórios[1]. Acerca deste remédio heroico, lapidar a lição de HELY LOPES MEIRELLES[2]:
O mandado de segurança é ação civil de rito sumário especial, sujeito a normas procedimentais próprias, pelo que só supletivamente lhe são aplicáveis disposições gerais do Código de Processo Civil. Destina-se a coibir atos ilegais de autoridade, que lesem direito subjetivo, líquido e certo do impetrante. Por ato de autoridade, suscetível de mandado de segurança, entende-se toda ação ou omissão do Poder Público ou de seus delegados, do desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las. Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração [...].
Em linhas gerais, como especialização do direito de proteção judicial efetiva – de ampla utilização, abrangendo todo e qualquer direito subjetivo público sem proteção específica, desde que se logre caracterizar sua liquidez e certeza[3] –, “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” (art. 5º, LXIX, da Constituição da República).
3.1. Legitimidade passiva e entendimento tradicional do STJ.
Doutrina e jurisprudência divergem acerca da legitimidade passiva no mandado de segurança, havendo, de um lado, quem identifique a própria autoridade como parte passiva e, do outro, quem entenda que o polo passivo seria preenchido pela pessoa jurídica de Direito Público.
LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, citando PONTES DE MIRANDA, argumenta que a autoridade, no mandado de segurança, é a pessoa jurídica presente em juízo – ou seja, ela presenta a pessoa jurídica. “Significa que a pessoa jurídica está no processo, desde o início, na pessoa da autoridade, cuja função é, apenas, prestar informações”.[4]
O Superior Tribunal de Justiça, aparentemente filiando-se à primeira corrente, tratando a autoridade coatora como ré na aludida ação constitucional, manteve, por um longo período, o arcaico entendimento de que a indicação errônea da autoridade coatora ensejaria a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 267, VI, CPC. Nesse sentido, colaciona-se o julgado in verbis:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INDICAÇÃO ERRÔNEA DA AUTORIDADE COATORA. EXTINÇÃO DO FEITO.
1. No mandado de segurança, a autoridade tida por coatora é aquela que pratica concretamente o ato lesivo impugnado. 2. Precedentes desta Corte do c. STF no sentido de que a errônea indicação da autoridade coatora pela impetrante impede que o Juiz, agindo de ofício venha a substituí-la por outra, alterando, assim, os sujeitos que compõem a relação processual. 3. Verificando-se a ilegitimidade passiva ‘ad causam’ da autoridade apontada como coatora, impõe-se a extinção do processo sem julgamento do mérito, pela ausência de uma das condições da ação. 4. Recurso a que se nega provimento, para confirmar a extinção do processo. (grifos nossos)
(RO no MS 15.124/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ acórdão Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 10/06/2003)
Tendo em vista que o Mandado de Segurança representa poderoso instrumento de proteção dos direitos individuais e eficaz arma de controle da Administração Pública[5], sendo tratado pela Constituição da República como garantia fundamental, o rigor formalista do STJ sempre mereceu ácidas críticas da doutrina mais moderna.
Nos últimos anos, contudo, a própria jurisprudência do STJ, reconhecendo que a burocrática estrutura da organização administrativa não poderia constituir óbice ao pleno acesso à justiça, constitucionalmente assegurado aos jurisdicionados, criou exceções à mencionada regra, flexibilizando o rígido entendimento que outrora prevalecia.
3.2. A teoria da encampação.
Inicialmente, foi desenvolvida a “teoria da encampação”, pela qual se reconhece que a autoridade coatora apontada equivocadamente possa prestar as informações e integrar a relação jurídica no lugar da verdadeira autoridade coatora, desde que verificada a presença simultânea de três requisitos, perfeitamente delineados no julgado abaixo transcrito:
PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – INDICAÇÃO ERRÔNEA DA AUTORIDADE COATORA – INFORMAÇÕES PRESTADAS SEM ENCAMPAÇÃO DO ATO TIDO COMO COATOR.
1. Inexistindo encampação do ato coator pela autoridade hierarquicamente superior, não se há como aproveitar a demanda direcionada em face de autoridade ilegítima. 2. Conforme jurisprudência pacífica desta Corte Superior, a teoria da encampação é aplicável ao mandado de segurança, tão-somente, quando preenchidos os seguintes requisitos: a) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado; b) ausência de modificação de competência estabelecida na Constituição Federal; e, c) manifestação a respeito do mérito nas informações prestadas. [...] (grifos nossos)
(AgRg no RMS 27.578/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009).
A aplicação da teoria da encampação, pois, em vista da processualística moderna, surgiu como reflexo da promessa constitucional de prestígio aos princípios da economia, celeridade e efetividade processuais (materializados no princípio-maior da “razoável duração do processo”), “configurando importante instrumento para os operadores do direito e, principalmente, para os indivíduos que necessitem da tutela emergencial dessa ação constitucional” [6].
Ressalte-se que o prudente avanço jurisprudencial da teoria da encampação – observados, evidentemente, os limites supramencionados – torna possível vislumbrar a extensão de sua aplicação às demais ações constitucionais, como o habeas corpus e o habeas data. Nesse sentido, já decidiu o STJ que “a teoria da encampação aplica-se ao habeas data, mutatis mutandis, quando o impetrado é autoridade hierarquicamente superior aos responsáveis pelas informações pessoais referentes ao impetrante e, além disso, responde na via administrativa ao pedido de acesso aos documentos” [7].
3.2. Possibilidade de emenda à petição inicial para corrigir equívoco na indicação da autoridade coatora.
Posteriormente, o Tribunal da Cidadania promoveu avanço jurisprudencial ainda mais significativo, passando a admitir a emenda à petição inicial para corrigir vício na indicação da autoridade coatora:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMENDA À PETIÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA PARA RETIFICAÇÃO DA AUTORIDADE COATORA.
Deve ser admitida a emenda à petição inicial para corrigir equívoco na indicação da autoridade coatora em mandado de segurança, desde que a retificação do polo passivo não implique alteração de competência judiciária e desde que a autoridade erroneamente indicada pertença à mesma pessoa jurídica da autoridade de fato coatora. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.222.348-BA, Primeira Turma, DJe 23/9/2011; e AgRg no RMS 35.638/MA, Segunda Turma, DJe 24/4/2012. (grifos nossos)
(AgRg no AREsp 368.159/PE, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 1º/10/2013).
Observe-se, no julgado supratranscrito, que há dois requisitos semelhantes ao da aplicação da teoria da encampação, quais sejam: (i) a retificação do polo passivo não implique alteração de competência judiciária; e (ii) a autoridade erroneamente indicada pertença à mesma pessoa jurídica da autoridade de fato coatora.
É preciso reconhecer, contudo, que, ao contrário do que ocorre na aplicação da teoria da encampação, não se exige, para a emenda à inicial, que a autoridade apontada seja hierarquicamente superior à verdadeira autoridade coatora. Por óbvio, também não se exige que a autoridade coatora apontada na exordial defenda o mérito nas informações prestadas, uma vez que a determinação para emenda à inicial se dará em momento anterior a essa fase processual.
Preenchidos os requisitos acima elencados, o magistrado determinará que o impetrante emende a petição inicial, no prazo de 10 (dez) dias, na forma do art. 284 do Código de Processo Civil. Somente em caso de o autor não cumprir a diligência será indeferida a exordial, extinguindo-se o processo sem resolução e mérito.
4. CONCLUSÃO
Ante o exposto, observa-se que a evolução jurisprudencial do STJ, tendente a concretizar a promessa constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVII da CRFB/88, incluído pela EC 45/2004), flexibiliza o engessado entendimento de que a indicação errônea da autoridade coatora enseja a extinção do processo sem resolução de mérito para, diante do preenchimento de requisitos específicos, criar modalidade excepcional de legitimação superveniente (aplicando a teoria da encampação) ou admitir a possibilidade de emenda à petição inicial.
Em suma, a teoria da encampação, admitindo o prosseguimento de MS impetrado contra autoridade coatora apontada equivocadamente, é aplicada quando preenchidos os seguintes pressupostos: (i) ausência de modificação de competência estabelecida na constituição Federal; (ii) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado; (iii) manifestação a respeito do mérito nas informações prestadas. Tal inovação jurisprudencial, pelo que se observa, pode ter aplicação estendida às demais ações constitucionais, conforme, embora ainda timidamente, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça.
A possibilidade de emenda à petição inicial, por sua vez, possui requisitos próprios, com alguma semelhança aos da aplicação da teoria da encampação. Basicamente, exige-se que a retificação do polo passivo não implique alteração de competência judiciária e que a autoridade erroneamente indicada pertença à mesma pessoa jurídica da autoridade de fato coatora.
4. REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RO no MS 15.124/SC, proferido pela primeira turma. Relator: Min. Luiz Fux. Relator para Acórdão: Min. José Delgado. Data do julgamento: 10 jun. 2003. Data da publicação: 22 set. 2003.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RMS 27.578/RS, proferido pela Segunda Turma. Relator: Ministro Humberto Martins. Data do julgamento: 04 ago. 2009. Data da publicação: 17 ago. 2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 368.159/PE, proferido pela Segunda Turma. Relator: Ministro Humberto Martins. Data do julgamento: 01 out. 2013. Data da publicação: 09 out. 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989.
MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.
RODRIGUES, Renata Knackfuss. A aplicação da teoria da encampação em sede de mandado de segurança. Da Dogmática jurídica tradicional ao pós-positivismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2641, 24 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17471>. Acesso em: 12 ago. 2012.
[1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 943-944.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989. p. 612.
[3] MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 512.
[4] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2010. p. 481.
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 1030-1031.
[6] RODRIGUES, Renata Knackfuss. A aplicação da teoria da encampação em sede de mandado de segurança. Da Dogmática jurídica tradicional ao pós-positivismo. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2641, 24 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17471>. Acesso em: 25 fev. 2014.
[7] HD 84/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Terceira Seção, julgado em 27/09/2006, DJ 30/10/2006, p. 236.
Advogado. Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIRA, Frederico Jorge Magalhães Pereira de. Indicação errônea da autoridade coatora em sede de mandado de segurança à luz da jurisprudência do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38485/indicacao-erronea-da-autoridade-coatora-em-sede-de-mandado-de-seguranca-a-luz-da-jurisprudencia-do-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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