RESUMO: O presente trabalho objetiva aprofundar, sem a irrazoável pretensão de exaurir, o estudo acerca da responsabilidade do poder concedente pelos danos causados pelas concessionárias de serviços públicos, à vista da Constituição da República, da legislação pertinente, da moderna doutrina administrativista e da jurisprudência recente dos tribunais superiores. Neste processo, parte-se, em linhas genéricas, da noção de serviço público, abordando-se aspectos concernentes à sua titularidade e execução para, finalmente, destrinchar os modelos de concessão e permissão. Em sequência, adentra-se no tema da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, aplicável à espécie, cotejando desde seus fundamentos até alguns aspectos processuais relevantes. Ao final, conclui-se que a responsabilidade do Estado pelos danos causados por suas delegatárias de serviços públicos é, em regra, subsidiária – dotada, porém, de características próprias –, concretizando a justiça social e a repartição dos encargos públicos pela coletividade beneficiada pela atuação estatal.
Palavras-chave: administrativo, responsabilidade civil do Estado, serviços públicos, concessão.
ABSTRACT: The present study aims to deepen without unreasonable claim to exhaust the study of the State's responsibility for damages caused by concessionaires of public utilities, based on the Constitution, the relevant legislation, the modern administrative law doctrine and recent jurisprudence of Brazilian’s superior courts. The study starts by analyzing the notion of public service, approaching aspects concerning its ownership and execution to finally unravel models and granting permission. In sequence, it focuses on the theme of State’s responsibility, discussing since its foundations up to some procedural relevant aspects. At the end, it concludes that the State's responsibility for damages caused by concessionaires of public services is generally subsidiary - surrounded, however, by its own characteristics - realizing social justice and burden shared by the community that is benefited by State´s public action.
Keywords: administrative law, State’s responsibility, public service, concession.
Nos termos do art. 175 da Constituição da República, os serviços públicos são precipuamente prestados pelo Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação. O mencionado dispositivo confere a irrenunciável titularidade do serviço público ao Estado, podendo este delegar a sua execução material a particulares, atuando sob o regime de colaboração.
Reflexo dos processos “desestatizantes” que passaram a ser implementados no Brasil, por influência da ideologia “neoliberal” (em que pesem as críticas a essa nomenclatura), em perfeita sintonia com a previsão constitucional, a partir da primeira metade da década de 1990, a prestação de serviços públicos vem sendo, cada vez mais, repassada à iniciativa privada, através dos institutos da concessão e da permissão – formas de descentralização de serviços por colaboração, que dão ensejo à chamada delegação negocial.
Ao passo em que tais modelos integram o perfil moderno da Administração Pública, que deve primar pela eficiência dos serviços e comodidades oferecidos aos administrados, indubitavelmente dão margem ao surgimento de situações jurídicas problemáticas, merecedoras da devida tutela, no que tange à responsabilidade civil por danos causados a terceiros (usuários ou não usuários dos serviços). São as vicissitudes da amplamente difundida “reforma do Estado”, operada globalmente nas últimas décadas.
Destarte, discute-se a amplitude da responsabilidade estatal pelos prejuízos provocados por suas delegatárias de serviços públicos, à vista do art. 37, § 6º, da Constituição, segundo o qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Não se discute que a responsabilidade dessas delegatárias de serviços públicos é objetiva, calcada na teoria do risco administrativo, amplamente acolhida pela doutrina e pela jurisprudência. Tampouco se deixa de afirmar que quem responde é a própria concessionária ou permissionária do serviço, já que é ela quem o está prestando, por sua conta e risco. O texto constitucional, afinal, é dotado de clareza meridiana a esse respeito. A polêmica reside, repita-se, na delimitação da responsabilidade do Estado pelos danos causados pelas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
É preciso esclarecer, de antemão, que, quando o direito trata da responsabilidade, induz de imediato a circunstância de que alguém, o responsável, deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente – em regra, ilícito, mas o ordenamento jurídico faz nascer, em ocasiões especiais, a responsabilidade até mesmo por fatos lícitos. Responsabilidade civil, em suma, é a que se traduz na obrigação de reparar danos patrimoniais, e se exaure com a indenização.
Fato é que o tema da responsabilidade civil do Estado tem recebido tratamento diverso no tempo e no espaço, tendo sido elaboradas inúmeras teorias a respeito, inexistindo, contudo, dentro de um mesmo direito, uniformidade de regime jurídico que abranja todas as hipóteses. O presente trabalho perquire, especificamente, a análise do quadro atual da responsabilidade patrimonial extracontratual do poder concedente por danos causados pelas concessionárias de serviços públicos, à vista da Constituição da República, da legislação pertinente, da moderna doutrina administrativista e da jurisprudência recente dos tribunais superiores.
Neste processo, parte-se, em linhas genéricas, da noção de serviço público, abordando-se aspectos concernentes à sua titularidade e execução para, em nota derradeira, destrinchar os modelos de concessão e permissão. Em sequência, adentra-se no tema de responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, aplicável à espécie, cotejando desde seus fundamentos até alguns aspectos processuais relevantes.
Objetiva-se, pois, em última análise, desenvolver uma abordagem minuciosa, embora sem pretensão de ser exauriente, da temática ora proposta, orientada pelos princípios da justiça social e da repartição dos encargos públicos pela coletividade beneficiada pela atuação estatal, sem embargo das características próprias delineadas pelo ordenamento jurídico vigente.
Definir com precisão um conceito de serviços públicos constitui tarefa das mais árduas para a doutrina moderna. Trata-se, afinal, de expressão plurívoca, cujo conceito sofreu diversas mutações em decorrência da própria evolução das funções estatais, apresentando aspectos diversos entre os elementos que o compõem. De fato, o conceito de serviço público é variável e “flutua ao sabor das necessidades e contingências políticas, econômicas, sociais e culturais de cada comunidade, em cada momento histórico, como acentuam os modernos publicistas”. [1]
Não se furtando de apresentar uma definição, Celso Antônio Bandeira de Mello, aproximando-se da noção mais atual a respeito do tema, conceitua esta espécie de serviço estatal da seguinte maneira:
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interessados definidos como públicos no sistema normativo.[2]
O conceito de serviço público desenvolveu-se na França, sob influência de Duguit, sendo naquele país utilizado para indicar, de modo amplo, todas as atividades estatais. No Brasil, entretanto, é adotado, pela parcela majoritária da doutrina, um conceito mais restrito, que não abrange inúmeras atividades estatais, traduzindo-se, ainda, num atributo da sociedade, ainda que a competência para sua organização e regulamentação seja formalmente atribuída ao Estado[3].
Em suas origens, os autores adotavam três critérios para definir o serviço público, quais sejam: o orgânico, considerando serviço público aquele prestado pelo Estado; o material, entendendo-o como a atividade que tem por objeto a satisfação das necessidades coletivas; e o formal, pelo qual serviço público seria aquele exercido sob regime de direito público derrogatório e exorbitante do direito comum.[4]
José dos Santos Carvalho Filho, analisando a evolução histórica do instituto, leciona que a expressão serviço público admite, hodiernamente, dois sentidos fundamentais: um subjetivo e outro objetivo. O primeiro leva em conta os órgãos do Estado responsáveis pela execução das atividades voltadas à coletividade; o segundo, por outro lado, abrangendo conceito mais amplo, abstrai-se da noção de quem executa a atividade para se prender à ideia da atividade em si mesma[5]. É justamente nesse sentido objetivo, pelo qual se leva em conta a natureza do serviço – ou seja, a atividade que tenha por objeto a satisfação das necessidades coletivas –, que o tema é desenvolvido pela doutrina mais moderna, conceituando o eminente professor que serviço público é “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”.[6]
Aspecto relevante – e, portanto, digno de nota neste trabalho – é a titularidade do serviço público, a qual não deve ser confundida com a titularidade da prestação do serviço. Uma e outra são, afinal, realidades jurídicas visceralmente distintas, não se podendo perder de vista que o fato de o Estado ser titular de serviços públicos – ou seja, de ser o sujeito que lhes detém a “senhoria” – não significa que deva, necessariamente, prestá-los por si ou por “criatura” sua, estando, na maioria das vezes, obrigado a tão somente discipliná-los e a promover-lhes a prestação.[7]
Decorre, então, conforme os conceitos clássicos do direito administrativo, que o serviço público é de titularidade do Estado, ainda que sua gestão possa ser atribuída a particulares[8]. Tal disciplina encontra fundamento no artigo 175 da Constituição da República, segundo o qual “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
Hely Lopes Meirelles, a esse respeito, já observava, logo após a promulgação da Constituição de 1988, a existência de serviços que, por sua própria natureza, são privativos do Poder Público – e só por seus órgãos deveriam ser executados –, e outros comuns ao Estado e aos particulares, podendo ser realizados por aqueles e/ou estes. Estariam distribuídos, assim, ora exclusivamente com o Estado, ora com o Estado e particulares, e ora unicamente com particulares, concluindo, contudo, que “essa distribuição de serviços não é arbitrária, pois atende a critérios jurídicos, técnicos e econômicos, que respondem pela legitimidade, eficiência e economicidade na sua prestação”[9].
Justamente por ser o titular do serviço público, não podendo renunciar tal condição, e em função do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição da República, o Poder Público concedente responderá, em regra, objetivamente pelos danos causados pelas empresas concessionárias[10], como será devidamente explorado adiante.
Reflexo dos processos “desestatizantes” que passaram a ser implementados no Brasil, por influência da denominada ideologia “neoliberal” (em que pesem as críticas a essa nomenclatura), a partir da primeira metade da década de 1990, a prestação de serviços públicos vem sendo, gradativamente, repassada à iniciativa privada, através dos institutos da concessão e da permissão – formas de descentralização de serviços por colaboração.
O fenômeno versado parece espelhar uma mudança de cunho ideológico na forma de conceber o Estado, a Administração Pública e sua relação com os particulares. Busca-se não mais o Estado prestador de serviços, mas o Estado que estimula, ajuda, subsidia a iniciativa privada. Vislumbra-se a democratização da Administração Pública, com o aumento da participação dos cidadãos e a redução do tamanho do Estado, em favor da iniciativa privada e da eficiência na prestação dos serviços, em desapego ao modelo autoritário e burocrático anteriormente vigente. [11]
Faz-se mister, pois, ante tal cenário, distinguir os conceitos elencados, a fim de melhor ilustrar o propósito do presente trabalho.
Caracteriza-se a descentralização, conforme mencionado, quando o Estado delega a outras pessoas a prestação de serviços que por lei lhe são atribuídos. Quando se trata de transferência a pessoas integrantes da própria Administração, a descentralização enseja a chamada delegação legal, ao passo que a transferência da execução dos serviços a pessoas da iniciativa privada, através de atos e contratos administrativos, constitui a denominada delegação negocial, em vista do seu inegável aspecto de bilateralidade nas manifestações volitivas.[12]
A delegação negocial, portanto, consuma-se através de negócios jurídicos, materializados nas concessões e nas permissões de serviços públicos, celebrados entre o Estado e o particular. Distingue-se por receber, obrigatoriamente, o influxo de normas de direito público, haja vista a finalidade a que se destina, qual seja, o atendimento a demandas (primárias ou secundárias) da coletividade ou do próprio Estado.[13]
Em linhas gerais, passa-se, então, a abordar os conceitos de concessão e permissão de serviço público. Na dicção de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço.[14]
A permissão de serviço público, por outro lado, genericamente, é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público (permitente) transfere a um particular (permissionário) a execução de certo serviço público, nas condições estabelecidas em normas de direito público[15]. Nesse sentido, a Lei nº 8.987/95 – a qual, dentre outras providências, dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos –, precisamente em seu art. 2º, inciso IV, definiu-a como: “delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para o seu desempenho, por sua conta e risco”.
Tradicionalmente, afirmava-se que a permissão consistiria em ato unilateral, precário e revogável a qualquer tempo, praticado no desempenho de competência discricionária, enquanto a concessão seria contrato bilateral, gerando direitos e obrigações para ambas as partes. Embora o desenvolvimento do Estado democrático de direito, garantidor dos interesses privados, tenha esmaecido tal distinção[16] – de modo que ambos os institutos são hoje tidos, pela doutrina mais atualizada, como típicos contratos de adesão celebrados com o Poder Público –, os dois regramentos permanecem inconfundíveis, diferenciando-se, sobretudo, no que tange ao grau de precariedade.[17]
Por fim, discute-se, em sede doutrinária, a existência (ou não) de serviços públicos autorizados. José dos Santos Carvalho Filho afirma que não se cogita falar em autorização para a prestação de serviços públicos, sendo estes sempre objeto de concessão ou de permissão. Em síntese, aduz que “a autorização é ato administrativo discricionário e precário pelo qual a Administração consente que o indivíduo desempenhe atividade de seu exclusivo ou predominante interesse, não se caracterizando a atividade como serviço público”[18].
Partindo da leitura do art. 175 da Constituição da República, a autorização não seria forma de delegação de serviço público, pois esse dispositivo só mencionou expressamente a concessão e a permissão. Também o art. 30, V, e o art. 25, § 2º, da Carta Magna, só falam em concessão e permissão. In verbis, com destaques acrescidos:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Art. 30. Compete aos Municípios:
(…) V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
(…) § 2º - Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.
Nesse ponto, filia-se à tese de que, por não constar do art. 175 da Constituição da República, a autorização não é forma de delegação, mas apenas um ato de consentimento expedido pelo Poder Público para que o particular possa desempenhar uma atividade de seu interesse, em consonância com o interesse público[19]. Apenas excepcionalmente a autorização poderá ser utilizada como forma de delegação, para evitar solução de continuidade no serviço. Há, ainda, uma única hipótese legal em que a autorização é indiscutivelmente instrumento de delegação. Trata-se do art. 131 da Lei da Anatel, que prevê a autorização para exploração de serviço de telecomunicações. Por estes motivos, não se fará menção, nos tópicos subsequentes, à autorização como forma de delegação de serviços públicos, ressalvando-se eventuais citações em sentido diverso.
O Estado brasileiro atua sob o direito e, por isso, é responsável por suas ações e omissões, quando infringirem a ordem jurídica e lesarem terceiros. A responsabilidade jurídica, então, consiste no dever legal de vinculação aos efeitos da conduta própria ou alheia e traduz, no que se refere à estrutura administrativa estatal, uma característica própria da democracia republicana. A responsabilidade do Estado, numa acepção ampla, significa o dever de reconhecer a supremacia da sociedade e a natureza instrumental do aparato estatal.[20]
A responsabilidade que se pretende imputar ao Estado pelos danos causados a terceiros por delegatárias de serviços públicos é a de natureza extracontratual, concretizando-se o fundado princípio da repartição dos encargos públicos pela coletividade beneficiada pela atuação estatal e a própria justiça social. Por tal razão, no presente estudo, afasta-se qualquer discussão mais aprofundada acerca da responsabilidade contratual do Estado.
Deve-se realçar: a menção aos princípios supra, no que tange à discussão ora proposta, não é despicienda. É que, como cediço, os princípios jurídicos, especialmente os de natureza constitucional, vivenciaram um vertiginoso processo de ascensão que os levou de fonte subsidiária do direito, nas hipóteses de lacuna legal, ao centro do sistema jurídico. No ambiente pós-positivista, afinal, marcado pela reaproximação entre o direito e a ética, os princípios alcançaram maior proeminência valorativa, sendo consenso na dogmática contemporânea a ideia de que princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica.[21]
Retomando o enfoque, observe-se que quando o direito trata da responsabilidade induz de imediato a circunstância de que alguém, o responsável, deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente – em regra, ilícito, mas o ordenamento jurídico faz nascer, em ocasiões especiais, a responsabilidade até mesmo por fatos lícitos[22]. Fixe-se, ademais, que, consoante lição de Hely Lopes Meirelles, “responsabilidade civil é a que se traduz na obrigação de reparar danos patrimoniais, e se exaure com a indenização”[23].
Acerca da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, Celso Antônio Bandeira de Mello anota as seguintes observações:
Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.[24]
Fato é que o tema da responsabilidade civil do Estado tem recebido tratamento diverso no tempo e no espaço, tendo sido elaboradas inúmeras teorias a respeito, inexistindo, contudo, dentro de um mesmo direito, uniformidade de regime jurídico que abranja todas as hipóteses. Em alguns sistemas, como o anglo-saxão, prevalecem os princípios de direito privado, ao passo que em outros, como o europeu-continental, adota-se o regime publicístico.[25]
Por muito tempo, vigorou a regra da irresponsabilidade do Estado (the king can do no wrong, como se afirmava na Inglaterra), confundindo-se com a própria essência do Estado Liberal, que pouco ou nada intervinha nas relações particulares. Caminhou-se, depois, em progresso, para a responsabilidade subjetiva, vinculada à culpa, ainda hoje aceita em várias hipóteses. Posteriormente, evoluiu-se para a teoria da responsabilidade objetiva, aplicável, no entanto, diante de requisitos variáveis de um sistema para outro, em conformidade às normas impostas pelo direito positivo.[26]
Como regra geral, a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 (art. 37, § 6º) e o próprio ordenamento infraconstitucional (art. 43 do Código Civil Brasileiro) albergaram a chamada teoria do risco administrativo, responsabilizando objetivamente as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Nesse sentido, para a configuração da responsabilidade do Estado, segundo a teoria em comento, bastaria a presença conjugada dos seguintes elementos: fato administrativo, evento danoso e nexo de causalidade – dispensando-se, portanto, o elemento subjetivo.
Destaque-se, a teoria do risco administrativo é aplicável, inicialmente, quando a responsabilidade tem origem em relação jurídica extracontratual ou patrimonial e o dano decorrer de ação (leia-se: conduta comissiva) lesiva do Estado. Diferentemente, segundo doutrina majoritária, que tem como expoente o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, dá-se nos danos por omissão (conduta omissiva), nos quais resta imprescindível a demonstração de culpa do Estado[27], caracterizando-se a teoria da culpa administrativa – também denominada de culpa anônima ou falta do serviço. Nesse sentido, precisa a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.[28]
Não bastará, então, para configurar a responsabilidade estatal, a simples relação entre ausência do serviço (omissão estatal) e o dano sofrido, devendo ser rigorosamente apurada a culpa do ente público. O que se denota, pois, é que a responsabilidade do Estado é, em regra, objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento danoso omissivo.
Di Pietro anota, contudo, no que interessa aos efeitos processuais da responsabilidade subjetiva, a existência de uma presunção de culpa do Poder Público. Assim, o lesado não precisaria fazer prova de que existiu a culpa ou o dolo, cabendo ao Estado demonstrar que agiu com diligência, utilizando os meios adequados e disponíveis e que, se não o fez, é porque a sua atuação estaria acima do que seria razoável exigir. Somente feita essa demonstração é que não incidiria a responsabilidade.[29] Não se deve perder de vista, porém, que a Fazenda Pública, figurando no polo passivo da relação jurídico-processual, não se sujeita ao ônus da impugnação especificada dos fatos, em razão da indisponibilidade do direito tutelado e da inadmissibilidade de confissão, pelo que não lhe são aplicáveis os efeitos materiais da revelia[30].
Como a concessionária e a permissionária prestam serviços públicos, sua responsabilidade por danos causados a terceiros é regida pelo art. 37, § 6º, da Constituição da República, segundo o qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Significa dizer que a responsabilidade dessas delegatárias de serviços públicos é objetiva, calcada na teoria do risco administrativo, amplamente acolhida pela doutrina e pela jurisprudência. Note-se, ademais, que, pelos termos do dispositivo constitucional, quem responde é a própria concessionária ou permissionária do serviço, já que é ela quem o está prestando, por sua própria conta e risco. Até aí, nenhuma dúvida. [31]
A polêmica reside na delimitação da responsabilidade do Estado pelos danos causados pelas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Inicialmente, importa destacar que o STF, modificando entendimento anti-isonômico outrora consolidado, há algum tempo pacificou sua jurisprudência no sentido de que a responsabilidade das concessionárias e permissionárias de serviços públicos será de natureza objetiva, ainda que o dano tenha sido causado a terceiro não usuário daquele serviço público oferecido. In verbis, com destaques acrescidos ao original:
CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM RELAÇÃO A TERCEIROS NÃO-USUÁRIOS DO SERVIÇO. RECURSO DESPROVIDO. I - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. II - A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado. III - Recurso extraordinário desprovido.
(RE 591.874/MS, Rel. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, TRIBUNAL PLENO, julgado em 26.08.2009, DJ 17.09.2009)
No referido julgado, obtemperou-se que não se pode interpretar restritivamente o alcance do art. 37, § 6º, sobretudo porque a Constituição, interpretada à luz do princípio da isonomia, não permite que se faça qualquer distinção entre os chamados “terceiros” – ou seja, entre usuários e não usuários do serviço público –, haja vista que todos eles, de igual modo, podem sofrer dano em razão da ação administrativa do Estado, seja ela realizada diretamente, seja por meio de pessoa jurídica de direito privado. Observou-se, ainda, que o entendimento de que apenas os terceiros usuários do serviço gozariam de proteção constitucional decorrente da responsabilidade objetiva do Estado, por disporem do direito subjetivo de receber um serviço adequado, contrapor-se-ia à própria natureza do serviço público, que, por definição, tem caráter geral, estendendo-se, pois, indistintamente a todos os cidadãos, beneficiários diretos ou indiretos da ação estatal.
A responsabilidade imputada ao Estado pelos danos causados a terceiros por concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, na forma preconizada pela moderna doutrina administrativista, é subsidiária, sendo-lhe conferido o benefício de ordem. Significa dizer que o Poder Público só responderá pelo dano diante da circunstância de o responsável primário não ter condições de reparar o dano por ele causado.
Explique-se: a responsabilidade do Estado será primária quando o dano tiver sido provocado por um de seus agentes. Há situações, entretanto, nas quais pessoas jurídicas exercem suas atividades como efeito da relação jurídica que as vincula ao Poder Público – como ocorre, por exemplo, com as delegatárias de serviços públicos, por força de contrato administrativo. Nessas hipóteses, a responsabilidade primária há de ser imputada à pessoa jurídica causadora do dano. Contudo, embora não se possa atribuir responsabilidade direta ao Estado, certo é que também não será lícito eximi-lo inteiramente das consequências do ato lesivo. Nesses casos, sua responsabilidade será subsidiária, ou seja, somente nascerá quando o responsável primário não tiver mais forças para cumprir sua obrigação de reparar o dano ao qual deu causa.[32]
Segundo doutrina majoritária, não há que se falar, na hipótese, em responsabilidade solidária, uma vez que a solidariedade só pode advir da lei ou do contrato[33], inexistindo norma legal atribuindo solidariedade ao Estado em relação à pessoa jurídica com a qual celebra contrato administrativo. Logo, o Estado responde apenas subsidiariamente, uma vez exauridos os recursos da (insolvente) responsável primária.
Não há que se abonar, pois, o pensamento minoritário de que o Poder Público tem responsabilidade solidária pelos danos causados por pessoa privada à qual compete prestar determinado serviço público, só pelo fato de ter havido delegação do serviço. Tal radical conclusão, em que pese o relevo das vozes dissonantes, não encontra guarida nos cânones jurídicos que regem a matéria. Nesse sentido, é o lúcido magistério de José dos Santos Carvalho Filho:
O Poder Público não é, repita-se, o segurador universal de todos os danos causados aos administrados. O que é importante é verificar a conduta administrativa. Se a Administração concorreu com a pessoa responsável para o resultado danoso (o que ocorre algumas vezes por negligência e omissão administrativa), haverá realmente solidariedade; a Administração terá agido com culpa in ommittendo ou in vigilando, podendo ser demandada juntamente com o autor do dano. Contudo, se a culpa é exclusiva da pessoa prestadora de serviço público, a ela deve ser imputada a responsabilidade primária e ao Poder Público a responsabilidade subsidiária. Resulta, pois, nessa hipótese que eventual demanda indenizatória deve ser dirigida em face exclusivamente do causador do dano, sendo a Administração parte ilegítima ad causam na referida ação.[34]
Não é outro o entendimento sedimentado nos tribunais superiores, que asseveram, inclusive, em apreço ao princípio da actio nata, que a pretensão de responsabilização subsidiária do Estado somente surgiria no momento em que a empresa concessionária de serviços públicos torna-se insolvente para a recomposição do dano, sendo este o termo a quo para a contagem do lapso prescricional. É o que se observa do julgado adiante transcrito, com destaques não constantes do original:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. PODER CONCEDENTE. CABIMENTO. PRESCRIÇAO. NAO OCORRÊNCIA. 1. Há responsabilidade subsidiária do Poder Concedente, em situações em que o concessionário não possuir meios de arcar com a indenização pelos prejuízos a que deu causa. Precedentes. 2. No que tange à alegada ofensa ao art. 1º, do Decreto 20.910/32, mostra-se improcedente a tese de contagem da prescrição desde o evento danoso, vez que os autos revelam que a demanda foi originalmente intentada em face da empresa concessionária do serviço público, no tempo e no modo devidos, sendo que a pretensão de responsabilidade subsidiária do Estado somente surgira no momento em que a referida empresa tornou-se insolvente para a recomposição do dano. 3. Em apreço ao princípio da actio nata que informa o regime jurídico da prescrição (art. 189, do CC), há de se reconhecer que o termo a quo do lapso prescricional somente teve início no momento em que se configurou o fato gerador da responsabilidade subsidiária do Poder Concedente, in casu , a falência da empresa concessionária, sob pena de esvaziamento da garantia de responsabilidade civil do Estado nos casos de incapacidade econômica das empresas delegatárias de serviço público. 4. Recurso especial não provido.
(REsp 1.135.927/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 10.08.2010, DJ 19.08.2010)
A responsabilidade subsidiária do poder concedente, pois, é a regra no ordenamento jurídico pátrio. Tal regra, não obstante, encontra temperamentos – inicialmente visualizados no trecho supratranscrito –, que serão detalhados no tópico subsequente.
Como se vem afirmando, o poder concedente responderá subsidiariamente quando os bens do concessionário não forem suficientes para arcar com os ônus decorrentes dos danos causados a terceiros. Cabe, entretanto, alertar para a correta ressalva feita por Celso Antônio Bandeira de Mello no sentido de que a responsabilidade subsidiária do poder concedente somente se justifica quando o dano for decorrente de atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço.
Assevera o ilustre autor que os prejuízos de terceiros oriundos de comportamento do concessionário alheios à própria prestação do serviço, ainda que assumidos a fim de se instrumentar para a prestação dele, não são suportáveis pelo concedente, no caso de insolvência do concessionário. Quem contrata ou se relaciona com este, tanto como em sua relação com qualquer pessoa, deve acautelar-se com respeito às condições de solvência da outra parte. Não pode, em suma, contar antecipadamente com que o Estado respalde economicamente o concessionário, o que não se coadunaria com o ordenamento vigente. O concessionário, pessoa de direito privado, de objetivos econômicos, está, ao agir nessa qualidade, sujeito, como qualquer empresa, aos percalços naturais da atividade empresarial, fato que não pode ser ignorado pelos usuários. [35]
Yussef Said Cahali acentua, ainda, com irreparável acerto, que a responsabilidade do Estado por ato do concessionário pode ser solidária, e não meramente subsidiária, em determinadas circunstâncias nas quais se verifique a omissão do poder concedente no controle da prestação do serviço concedido ou falha na seleção do concessionário. Nesse sentido, afirma o renomado publicista:
A exclusão da responsabilidade objetiva e direta do Estado (da regra constitucional) em reparar os danos causados a terceiros pelo concessionário (como também o permissionário ou autorizatário), assim admitida em princípio, não afasta a possibilidade do reconhecimento de sua responsabilidade indireta (por fato de outrem) e solidária, se, em razão da má escolha do concessionário a quem a atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço foi concedida, ou de desídia na fiscalização da maneira como este estaria sendo prestado à coletividade, vem a concorrer por esse modo para a verificação do evento danoso. [36]
Por derradeiro, importante mencionar antigo posicionamento do STJ segundo o qual o Poder Público, nas ações coletivas que discutam interesses metaindividuais, também responderia solidariamente com o concessionário, em razão de sua omissão no dever de fiscalizar, mormente quando estiverem em discussão interesses que tenham por escopo a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurado constitucionalmente. In verbis, com grifos acrescidos:
DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. ARTIGOS 23, INCISO VI E 225, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO MUNICÍPIO. SOLIDARIEDADE DO PODER CONCEDENTE. DANO DECORRENTE DA EXECUÇÃO DO OBJETO DO CONTRATO DE CONCESSÃO FIRMADO ENTRE A RECORRENTE E A COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO - SABESP (DELEGATÁRIA DO SERVIÇO MUNICIPAL). AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO POR ATO DE CONCESSIONÁRIO DO QUAL É FIADOR DA REGULARIDADE DO SERVIÇO CONCEDIDO. OMISSÃO NO DEVER DE FISCALIZAÇÃO DA BOA EXECUÇÃO DO CONTRATO PERANTE O POVO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA RECONHECER A LEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO. I - O Município de Itapetininga é responsável, solidariamente, com o concessionário de serviço público municipal, com quem firmou "convênio" para realização do serviço de coleta de esgoto urbano, pela poluição causada no Ribeirão Carrito, ou Ribeirão Taboãozinho. II - Nas ações coletivas de proteção a direitos metaindividuais, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a responsabilidade do poder concedente não é subsidiária, na forma da novel lei das concessões (Lei n.º 8.987 de 13.02.95), mas objetiva e, portanto, solidária com o concessionário de serviço público, contra quem possui direito de regresso, com espeque no art. 14, § 1° da Lei n.º 6.938/81. Não se discute, portanto, a liceidade das atividades exercidas pelo concessionário, ou a legalidade do contrato administrativo que concedeu a exploração de serviço público; o que importa é a potencialidade do dano ambiental e sua pronta reparação.
(REsp 28.222/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA TURMA, julgado em 15.02.2000, DJ 15.10.2001)
Em tais casos, nos quais o dano foi provocado por uma conduta omissiva do poder concedente, restará caracterizada a responsabilidade subjetiva do Estado (exceto em matéria de dano ambiental, conforme julgado supra), com base na teoria da culpa administrativa – também denominada de culpa anônima ou falta do serviço. [37] Saliente-se, todavia, que as específicas hipóteses aventadas, nas linhas propostas por este estudo, são excepcionais. A regra, como amplamente repisado, é a responsabilidade subsidiária do poder concedente.
Por estarem voltados à satisfação de uma finalidade coletiva, os bens particulares das concessionárias afetados à prestação do serviço público submetem-se a uma distinta duplicidade de regime jurídico.
A natureza híbrida do patrimônio da empresa delegatária de serviços públicos é bem explorada, em sede doutrinária, por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que distingue os bens inseridos no comércio jurídico de direito privado, podendo ser objeto de qualquer relação jurídica regida pelo direito civil ou comercial – próprios, portanto, da condição de “empresa privada” –, dos afetados à prestação do serviço público. Nesse sentido, assevera a autora:
Como empresa concessionária de serviço, ela dispõe de bens que estão vinculados à prestação de serviço, sob pena de paralisação que infringe o princípio da continuidade. Esses bens estão submetidos a regime jurídico de direito público, da mesma forma que os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial, referidos no art. 99 do Código Civil. Eles incluem-se na categoria de bens extra comercium, ainda que a lei não o diga expressamente; trata-se de característica inerente ao princípio da continuidade do serviço público. Como consequência, tais bens estão fora do regime jurídico privado, não podendo ser objeto de relações jurídicas regidas pelo direito civil ou comercial.[38]
Na Lei nª 8.987/95 – que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, dentre outras providências –, inclusive, há expressa referência a essa categoria de bens, com interessante emprego da expressão “bens públicos”. É o que se denota do art. 7º, VI, do mencionado diploma, segundo o qual é obrigação do usuário “contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços”.
A conclusão ora esposada acarreta importantes reflexos processuais, alargando, em certa medida, o campo de incidência da responsabilidade estatal. É que, na execução judicial, esgotados os bens e rendas da concessionária passíveis de penhora (porque não afetados à prestação do serviço público), o Poder Público responderá subsidiariamente pelas obrigações da concessionária.[39] Portanto, o acervo patrimonial da concessionária apto à constrição judicial restringe-se aos não vinculados à prestação do serviço, porquanto os vinculados, enquanto mantiverem essa qualidade, em prestígio ao princípio da continuidade dos serviços públicos, não são passíveis de penhora – do que se denota uma importante peculiaridade à responsabilidade subsidiária comum.
A responsabilidade das concessionárias e permissionárias de serviços públicos por danos causados a terceiros é regida pelo art. 37, § 6º, da Constituição da República, segundo o qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Significa dizer que a responsabilidade dessas delegatárias de serviços públicos é objetiva, calcada na teoria do risco administrativo, amplamente acolhida pela doutrina e pela jurisprudência. Nos termos do dispositivo constitucional, ademais, quem responde é a própria concessionária ou permissionária do serviço, já que é ela quem o está prestando, por sua conta e risco. A Carta Magna de 1988, portanto, esmaeceu quaisquer dúvidas outrora existentes a respeito do tema.
A polêmica, objeto do estudo em apreço, reside na delimitação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por concessionárias e permissionárias de serviços públicos. Destaque-se, a matéria adquire especial relevo e atualidade em face aos processos “desestatizantes” que se sucederam no Estado brasileiro, a partir do final do século XX, realçando o moderno perfil da Administração Pública, com a transferência da prestação de serviços públicos, gradativamente, à iniciativa privada, formalizada por intermédio dos institutos da concessão e da permissão – formas de descentralização de serviços por colaboração que concretizam a denominada “delegação negocial”.
Observou-se que o Estado brasileiro atua sob o direito e, por isso, é responsável por suas ações e omissões, quando infringirem a ordem jurídica e lesarem terceiros. A responsabilidade jurídica, então, consistente no dever legal de vinculação aos efeitos da conduta própria ou alheia, traduz, no que se refere à estrutura administrativa estatal, uma característica própria da democracia republicana. A responsabilidade do Estado, numa acepção ampla, significa o dever de reconhecer a supremacia da sociedade e a natureza instrumental do aparato estatal.
A conclusão deste estudo é que a responsabilidade extracontratual patrimonial imputada ao Estado pelos danos causados a terceiros por concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, na forma preconizada pela moderna doutrina administrativista, bem como pela jurisprudência dos tribunais superiores, é subsidiária, sendo-lhe conferido o benefício de ordem. Ou seja, o Poder Público só responderá pelo dano diante da circunstância de o responsável primário não ter condições de reparar o dano por ele causado.
Por ser o titular do serviço público, não podendo renunciar tal condição, e em função do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição da República, o Poder Público concedente, para além da subsidiariedade, responderá, em regra, objetivamente pelos danos causados pelas empresas concessionárias, concretizando-se o inafastável princípio da repartição dos encargos públicos pela coletividade beneficiada pela atuação estatal e a própria justiça social. A aludida responsabilidade subsidiária do poder concedente, contudo, somente se justifica quando o dano for decorrente de atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço.
Consoante reconhecido pela jurisprudência dos tribunais, em apreço ao princípio da actio nata, merece destaque o entendimento dominante de que a pretensão de responsabilização subsidiária do Estado somente surge no momento em que a empresa concessionária de serviços públicos torna-se insolvente para a recomposição do dano, sendo este o termo a quo para a contagem do lapso prescricional.
Tem-se, ainda, que, excepcionalmente, a responsabilidade do Estado por ato do concessionário pode ser solidária, e não meramente subsidiária, em determinadas circunstâncias nas quais se verifique a omissão do poder concedente no controle da prestação do serviço concedido ou falha na seleção do concessionário, mormente em matéria de dano ambiental.
Por fim, concluiu-se que a subsidiariedade destacada é dotada de características próprias, que evidenciam peculiaridades típicas do regime híbrido a que se submete o patrimônio da empresa privada concessionária de serviços públicos. É que, na execução judicial, esgotados os bens e rendas da concessionária passíveis de penhora (porque não afetados à prestação do serviço público), o Poder Público responderá subsidiariamente pelas obrigações da concessionária. Portanto, o acervo patrimonial da concessionária apto à constrição judicial restringe-se aos não vinculados à prestação do serviço, porquanto os vinculados, enquanto mantiverem essa qualidade, em prestígio ao princípio da continuidade dos serviços públicos, não são passíveis de penhora.
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[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989. p. 288
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 687.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 478-481.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 92.
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 323.
[6] IBIDEM, p. 324.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 697.
[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 488.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989. p. 289
[10] CAHALI, Yusef Said. Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 151.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 02.
[12] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 349-350.
[13] IBIDEM, p. 350.
[14] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 717-718.
[15] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 418.
[16] A Lei nº 8.987/95 estabelece algumas poucas distinções formais: a concessão de serviço público pode ser feita a pessoa jurídica ou consórcio de empresas, sempre mediante licitação na modalidade de concorrência; já a permissão de serviço público pode ser feita a pessoa física ou jurídica, mediante qualquer modalidade de licitação compatível com o seu objeto.
[17] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 545.
[18] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 446.
[19] A Constituição da República só faz referência expressa à “autorização” no art. 21, incisos XI e XII, que versam sobre competências administrativas específicas da União. Consoante regra básica de hermenêutica, deve prevalecer, então, para a presente discussão, o dispositivo que cuida dos serviços públicos em geral e não o que trata de ente federativo específico.
[20] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 791.
[21] BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 318.
[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 548.
[23] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989. p. 548.
[24] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 1009.
[25] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 607.
[26] IBIDEM, p. 607.
[27] Exceção à teoria apresentada reside nos casos em que se verifica a chamada “omissão específica” do Estado (ou seja, quando a falta de agir do Poder Público é causa direta e imediata do dano), diante das quais os tribunais pátrios têm adotado a responsabilidade civil objetiva.
[28] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 1029.
[29] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 619.
[30] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2010. p. 100.
[31] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 92.
[32] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 570.
[33] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 267.
[34] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 571.
[35] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 773-774.
[36] CAHALI, Yusef Said. Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 97.
[37] Vide tópico 2.1.
[38] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 91.
[39] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 92.
Advogado. Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIRA, Frederico Jorge Magalhães Pereira de. Responsabilidade do Estado pelos danos causados por delegatárias de serviços públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38518/responsabilidade-do-estado-pelos-danos-causados-por-delegatarias-de-servicos-publicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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